sábado, 26 de março de 2022

Daniel Maurício (Poética) 26


 

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XL

TEMPLO DOS TROVADORES

MOTE:
Em nossa crença elevada,
num mundo de paz e flores,
a trova é hóstia sagrada
no templo dos trovadores.
Luiz Otávio  
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1977, Santos/SP


GLOSA:
Em nossa crença elevada,
cheia de fé e emoção ,
em nossa grande escalada,
o verso é nossa oração.

Nós rezamos, versejando,
num mundo de paz e flores,
mais amigos, conquistando
e amando novos amores.

Numa união inigualada,
que nos traz imensa paz,
a trova é hóstia sagrada
que somente o bem nos faz!

Nessa nossa comunhão,
misturamos mil sabores
e a amizade, cresce, então,
no templo dos trovadores.
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TEUS POEMAS

MOTE:
Li teus livros de poemas
e até chorei comovida,
ao ver que todos os temas
têm muito de nossa vida.
Maria Nascimento S. Carvalho  
Rio de Janeiro/RJ    

GLOSA:
Li teus livros de poemas
e foi neles que encontrei
joias puras, diademas,
e tudo o que eu mais amei!

Balançou meu coração
e até chorei comovida,
vi sorrir minha emoção
em poemas, renascida!

Do nosso amor, as algemas,
muito mais fortes, ficaram,
ao ver que todos os temas
só do nosso amor falaram!

Os teus versos, eu bebi
numa ânsia descabida,
pois os poemas que eu li
têm muito de nossa vida.
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CAVALGANDO ESTRELAS...

MOTE:
Cavalgando sem rodeios
por galáxias estreladas,
o poeta, em seus anseios
tece trovas requintadas.
Nilton Manoel de Andrade Teixeira
Ribeirão Preto/SP


GLOSA:
Cavalgando sem rodeios
entre luzes, a vagar,
os poemas são esteios
com forma própria de amar!

Perdido nos universos,
por galáxias estreladas,
vai deixando lindos versos
no espaço cheio de nadas.

Faz vibrar, com seus enleios,
todo e qualquer coração,
o poeta, em seus anseios
vive cheio de emoção.

Segue, assim, o seu caminho,
nessas doces cavalgadas...
Com amizade e carinho
tece trovas requintadas.
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PERTO DE TI

MOTE:
Quando em meus braços te aperto,
todo o infinito sorri,
porque a vida é um céu aberto
quando estou perto de ti.
Orlando Woczikosky
Curitiba/PR, 1927 – 2019

GLOSA:

Quando em meus braços te aperto,
eu sinto que o mundo é meu,
meu paraíso mais certo,
emerge do abraço teu!

Quando juntos, nós estamos,
todo o infinito sorri,
ao ver, quando nos amamos,
todo o amor que eu dou pra ti!

Deste sonho eu não desperto,
sigo a sonhar, vida afora,
porque a vida é um céu aberto
e o futuro é o meu agora!

Aumenta a minha emoção,
e eu me sinto em frenesi,
explode o meu coração
quando estou perto de ti.
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MEU CAMINHO CONFUSO...

MOTE:
Meu caminho é tão confuso
que, muitas vezes, me sinto
como se fosse um intruso
vagando num labirinto!
Renata Paccola
São Paulo/SP

GLOSA:

Meu caminho é tão confuso
é tão negro e tão sem sol,
que me parece um abuso
sonhar com um arrebol!

A vida é tão sem beleza,
que, muitas vezes, me sinto
prisioneira da tristeza,
com meu coração faminto!

Meu sonho, quase em desuso,
segue um rumo diferente,
como se fosse um intruso
no próprio sonho da gente!

Sozinha, sem ter ninguém,
vendo todo o amor extinto,
sigo sem rumo, também
vagando num labirinto!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXIV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Março 2005.

Marcos Rey (Gnomos na gaveta)

Tive um parente que sempre contava ter visto um gnomo ciclista passar por ele, rente ao chão, segurando o guidão da bicicleta com a mão esquerda, enquanto com a direita lhe fez um dilatado gesto obsceno.

Cafajestinho!

Ouvi-o contar isso dezenas de vezes a partir de uma época em que os gnomos não estavam na moda. Convivência mais longa com esses seres diminutos teve meu amigo Egydio, que me assegurou haver enclausurado um deles na gaveta de sua escrivaninha.

– Com o canto dos olhos, eu o vi espiar a gaveta, alguns centímetros aberta. Não satisfeito, resolveu entrar. Pum! Fechei-a com uma cotovelada.

– Ainda está lá dentro?

– Está. Com um conta-gotas, tenho pingado água na gaveta para ele não passar sede. E jogo farelos de biscoito para alimentá-lo.

– Vocês conversam?

– Não, porque pelo traje ele é tirolês ou austríaco. Além do mais, os gnomos só se comunicam com os humanos telepaticamente.

– O que pretende agora?

– Tentarei com uma linha transferi-lo para uma garrafa. Como se faz com miniaturas de navios. Com um gnomo engarrafado, espero ganhar uma fortuna. Duvida?

Mas o gnomo escapou graças a uma empregada que abriu a gaveta, embora advertida para mantê-la fechada. Eles são espertos, sabem incutir nas pessoas, enviar certas ordens.

Essa intenção de ganhar dinheiro com o esotérico, incluindo ou não gnomos, fadas ou duendes, faturar no astral, no invisível, tornou-se ideia fixa para minha mulher.

Estávamos numa pior e tínhamos de sair do buraco.

– Por que não escreve um livro do tipo Shirley MacLaine? – ela sugeriu. – O povo não está suportando mais essa realidade poluída. Sufoca, pesa, cheira mal. O que se quer é embarcar na fantasia, comunicar-se com extraterrenos e seres lendários. Entende?

Argumentei que nasci materialista e com o tempo fui ficando mais ainda. Nunca transei o esotérico. O mundo para mim é justamente esse que está aí, grosseiro, fedido, perigoso.

– Os gnomos não existem! – garanti, bradando. – Tudo não passa de mais um jeitinho de ganhar dinheiro. Nada do que se diz sobre eles tem o menor fundamento. É piração.

A cara-metade estranhou a veemência.

– Você pode provar?

– Provar o quê?

– Provar que os gnomos não existem? Se puder, pondo tudo num livro, bem explicadinho, ótimo. Escrever contra eles e as ondinas, salamandras e silfos talvez também dê dinheiro. Nosso problema é financeiro, não importa se contra ou a favor.

Fazia sentido. Retirei-me para pensar. Minutos depois já tinha o título da obra: Não acredito em gnomos. E daí? Ela aprovou o tom agressivo do título. Desafiador.

Consultei um editor, que me deu o sinal verde.

– Vá em frente. O polêmico sempre vende bem.

Antes de começar a escrever, teria de ler tudo sobre a matéria. E não só em português. Minha consorte se dispôs a me auxiliar. Depois da leitura geral, registramos as observações em dezenas de fichas. Uma boa organização ajuda. Dividi o livro em partes. Cada uma com dez capítulos. Mostrei a planificação ao editor. Animado, decidiu me dar um adiantamento. Voltei radiante, exibindo o cheque.

– Acabe com eles! – disse-me minha mulher.

– Com quem?

– Com os gnomos. Arrase.

Fui à máquina de escrever e bati num meio de página: Não acredito em gnomos. E daí?

Estou com o livro todo nas pontas dos dedos. É só escrever uma frase e sai tudo como pisar num tubo de pasta de dente. Mas não está dando. Não está mesmo. Ele dificulta, impede. Olha para mim gozador e com a mão direita faz gestos obscenos.

Quem?

O maldito homenzinho de cinco centímetros, dando voltas de bicicleta ao redor de minha máquina de escrever. Quer me enlouquecer.

Uso o aspirador?

Fonte:
Marcos Rey. O coração roubado e outras crônicas. Publicação original em 1996.

sexta-feira, 25 de março de 2022

Varal de Trovas n. 553

 

Raul Pompéia (O Piano)

Dó... ré... mi... fá... sol... mi... fá... ré... dó...

Grande coisa o piano!

Os dotes da educação, pensava Maria das Dores, suprem perfeitamente a falta de dotes físicos... Por que não? Cada um caça como pode.

Pois, uma insinuante escala cromática não valerá um requebro de olhar, uma semicolcheia não valerá um sorriso, o pianíssimo não poderá fazer vezes de um traço de meiguice diluído pela fisionomia?!

A arte poderosa inventa beleza. Uma donzela desprestigiada pela boa fada da formosura bem pode salvar o deficit, adquirindo um dote artístico. A música... a música, por exemplo, impressiona, cativa como os belos olhos!

Dó... ré... mi... fá... sol... mi... fá... re... dó...

Maria das Dores era feia.

Cara comprida, o queixo a estender-se-lhe para baixo como se quisesse alojar-se entre as clavículas,; o nariz, delgada lâmina em forma de leme, erguida no meio do rosto, com receio talvez de que se vissem um ao outro os implicantes olhinhos; os olhos negros, miúdos, brilhantes, encravados em fundas órbitas; testa larga, cabelos rareados... Feia incontestavelmente.

Os dezessete anos sugeriram a arrojada hipótese do casamento. Arrojada é bem dito, porque Maria das Dores tinha a difícil franqueza de se achar feia. Feia de cara, pior de corpo..... uma carcaça.

Aos dezessete anos encontraram-se de frente a carcaça e a hipótese.

Maria das Dores, a principio, recuou espavorida como se houvesse visto um espelho. Em nossos maiores desalentos, porém, encontramos sempre a saída falsa de uma esperança. A donzela lembrou-se oportunamente da arte. Sabia que algumas moças haviam inspirado até paixão sendo feias, graças aos sedutores recursos do talento musical, muito capaz de acordar sentimentos simpáticos que só um belo semblante, em geral, produz.

De combinação com o pai, a moça atirou-se ao método de Huntem.

Dó... ré... mi... fá... sol... mi... fá... ré... dó...

Alguns anos rodaram. Maria das Dores ficou mais velha.

O pai dava festinhas em casa. Os rapazes apareciam. A menina tocava piano. Não fizera muito progresso, é certo; mas a arte é longa, já o disse Goethe, e o piano custa.

Maria das Dores, animada por um dito amável de qualquer rapaz, fantasiava logo ideais castelos... sonhos deleitosos de ménage... vida de família... filhinhos... ternuras... Quase esquecia o nariz e os olhinhos pretos muito unidos e o queixo.

Era já a influência da arte!

Dó... ré... mi... fá... sol... mi... fá... ré... dó...

Entretanto, bate a bota o velho.

Morreu ab-intestato, mas a partilha do espólio era fácil. Deixou viúva e filha por herdeiros; como herança, um piano usado de Bord e um nome sem mácula. Ficou o nome imaculado para a viúva em meação e o Piano de Bord para a filha.

Passados os meses de luto, Maria das Dores voltou ao querido instrumento. Voltou com gana. Precisava agora, mais do que nunca. Quase na miséria, vivendo dos milagres de recursos da mãe, era preciso apressar os preparativos do casamento. Está entendido que o preparativo era o estudo do piano. Armava-se a rede, depois era só precisar o noivo.

Fazia gosto vê-la a estudar.

Dó... ré... mi... fá... sol.

Passa o tempo..

Maria das Dores envelhece. Aos desagradáveis traços fisionômicos, junta-se agora o incidente. pé-de-galinha. Maria não desanima... Ataca pós de arroz... e corre ao piano.

Ainda hoje, que ela dobrou o cabo dos trinta, passem-lhe pela casinha, ali na rua... passem por lá bem tarde, na hora em que os arrabaldes ressonam, ao barulho das primeiras vassouradas da limpeza pública, à hora em que se fecham os teatros, passem que hão de ver, através das venezianas da rótula e da bandeira envidraçada, luz na sala e hão de ouvir o piano. É Maria das Dores que até aquelas horas estuda. É Maria das Dores a esperançosa, embevecida na sua fé.

Não há mais festas em casa; os rapazes não aparecem mais. Ela espera ainda, espera sempre, confiada na onipotência da arte e do merecimento da educação das donzelas...

Dó... ré... mi... fá... sol... mi... fá... ré... dó…

Fonte:
Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da UFSC.

Contos e Lendas do Paraná - 9 (Campo Mourão – Paranaguá)


CAMPO MOURÃO
A lenda do profeta


A história que vou lhes contar aconteceu há muito tempo atrás. Guarapuava ainda era um lugarejo, cercado por fazendas em toda a extensão geográfica que vai do rio Piquiri ao Ivaí e Corumbataí. Conta-se que por volta de 1850 o tráfico de escravos negros, embora proibido, era praticado vergonhosamente. Com a emancipação política do Paraná, em 1853, iniciou-se a marcha para o progresso do Estado. Entre os anos de 1856 a 1858, o toldo dos índios Kaingang, no vale do Piquiri, foi cruelmente atacado e destruído. A partir dessa data, tropeiros paranaenses começaram as suas passagens pelos campos de Guarapuava e, bem mais tarde, pelo picadão que unia Guarapuava ao Mato Grosso do Sul, sendo Campo Mourão o local de repouso para os peões e as tropas.

Contam os moradores da região de Guarapuava, Pitanga e Campo Mourão, que naquela época prevalecia a lei do mais forte; havia muitas chacinas e emboscadas, pois a ganância era muito grande. Pela região sempre aparecia um senhor idoso, longas barbas brancas, sandálias de couro nos pés, um lenço na cabeça, roupas maltrapilhas, um autêntico andarilho. Homem de poucas palavras, porém de sábias ações, era apenas conhecido como João Maria de Agostinho, “o profeta”. Chamavam-no de São João Maria, o santo profeta que curava pestes, doenças e até domesticava animais ferozes e cobras venenosas.

O incrível é que ele sempre aparecia na hora e no lugar onde estavam precisando. Nada se sabia dele. Só que realizava milagres. Dizem que passou por um olho d’água do Jordão, em Guarapuava, e que até hoje aquela água tem poder de cura para os que têm fé.

Todo mundo queria encontrar e falar com o tal profeta. A fonte virou um verdadeiro local de romeiros que ficavam de molho nas águas e no próprio barro e afirmavam que eram curados. Por onde o monge passava, falava de Jesus e plantava uma cruz. Ensinava sobre o amor, a fé e a caridade para com o próximo. Também ensinava a utilizar ervas caseiras e dizia que até a água pura curava, se a pessoa tivesse fé em Deus, não nele. Sempre ressaltava isso.

Também passou por Campo Mourão e dizem que aqui havia muitas cobras venenosas. Quando aparecia alguma cobra na propriedade era só pensar no profeta e ele aparecia. Ele ia até o local e conversava com a cobra, ordenando que ela e toda a sua prole sumissem dali. Em seguida a essa ordem, fazia uma oração e nunca mais aparecia cobras naquele local.

Em uma ocasião apareceu uma velha beata que começou a tirar vantagens em nome do profeta. Fazia bolinhas de barro e as vendia como pílulas milagrosas de São João Maria, dizendo que curavam todos os males. Era só engolir com um pouco de água e se livrar dos vermes, febres e outras doenças. Um dia, essa senhora adoeceu gravemente, porém nem médicos, nem as pílulas milagrosas conseguiam curá-la. No leito de morte, gritava:

– Perdoe-me profeta, a minha ganância foi maior que minha fé.

Ao anoitecer, ela faleceu. Dizem que o profeta passou a noite sentado num tosco banquinho, próximo à tarimba onde a morta era velada. Cabeça baixa, pernas cruzadas, sem pronunciar uma só palavra.

Quando o cortejo saiu para o sepultamento, ele gritou:

– O amor, a fé e a caridade não têm preço. Jesus Cristo foi exemplo disso. Deu sua vida por nós. Vão em paz. Quando precisarem, basta invocá-lo, que ele está sempre perto de vocês.

A partir daquele dia, nunca mais ninguém viu, ou ouviu falar sobre o profeta, que era sempre o mesmo, com as mesmas roupas e sandálias.
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PARANAGUÁ
A lenda das rosas loucas

Foi no ano de 1680. A Costeira do Rossío (Rocio), da Vila de Nossa Senhora do Rosário de Paranaguá, era habitada por humildes pescadores, que viviam do que o mar lhes dava, nas noites calmas daqueles arrebaldes. Eles vendiam uma parte da pesca, o resto ficava para o sustento da família.

Corria o mês de novembro. Uma noite, na calmaria do verão, estavam eles nas suas canoas ao largo da baía, com suas redes nas águas, à espera de uma boa pescaria. Por um desses acasos, olhando o céu recamado de estrelas, um dos pescadores viu que uma das estrelas despejava um facho luminoso até uma grande moita de rosas, nascidas na barranca da baía. Em minutos desaparecia e reaparecia; isso por várias vezes. Ele chamou, então, a atenção dos companheiros, que presenciaram o fato.

Quando voltaram da faina noturna, acharam, uns, de bom alvitre o aviso; outros, porém, mais medrosos, alegaram que era o prenúncio de grandes males. Todos passaram a comentar o ocorrido nos seus lares. O fenômeno continuou por várias noites, até que os praieiros tomaram uma decisão: decepar a moita das “rosas loucas”.

Num domingo, pela manhã, com facão, enxada e foice, começaram a devastação. Mas, quando estavam na metade do trabalho se depararam com uma pequenina imagem da virgem mãe de Jesus, bem no lugar onde todas as noites descia o facho luminoso. O alvoroço foi grande entre aquela gente inculta.

Um preto velho, por nome Pai Berê, que ali também morava, pediu para fazer uma igrejinha de pau-a-pique, coberta de palha, a fim de colocar a imagem num altar e ficar como guarda do achado. Todos os pescadores concordaram. No mesmo lugar, Pai Berê fez um ranchinho em forma de ermida e todos os domingos os moradores rezavam o terço, pela manhã e à tarde.

A notícia espalhou-se logo pela vila e a curiosidade do povo não se fez esperar; a princípio, para ver; depois, para crer. Os anos foram passando e a devoção crescendo.

Os pedidos e os milagres também foram surgindo, até chegar aos nossos dias; tornando-se, por fim, uma tradição.

Fonte:
Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná. Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

Estante de Livros (“O Coração roubado”, de Marcos Rey)


Sobre o Autor


Marcos Rey, pseudônimo de Edmundo Donato, nasceu e morreu em São Paulo (1925 - 1999), cidade que sempre foi cenário de suas crônicas, contos, novelas e romances. Sua carreira, repleta da glória, foi marcada por um drama pessoal dos mais violentos, que permaneceu oculto até a sua morte. Marcos Rey era portador de hanseníase, doença conhecida até meados do século XX como lepra e que desde os tempos bíblicos carrega o estigma de maldição.

A partir dos anos 30, a hanseníase passou a ser combatida com ferocidade pelas autoridades sanitárias paulistas, que internavam os doentes à força em sinistros leprosários.

Depois de uma segunda denúncia anônima, em 1941, o jovem Edmundo, que contraíra a doença aos dez ou doze anos, foi levado por uma ambulância enquanto jogava bilhar, em um bar na Praça Marechal Deodoro, no Centro de São Paulo. Começava um pesadelo que duraria seis longos anos, até a sua última fuga do sanatório, em 1945.

Sobre a obra

Coração Roubado é um livro de crônicas. Você sabe o que é uma crônica? O autor, no prefácio, ajuda você a entender um pouco melhor esse gênero literário tão gostoso de ler e cultivado no Brasil por excelentes escritores como Machado de Assis, Cecília Meireles, Rubem Braga, Fernando Sabino, Ignácio de Loyola Brandão, Moacyr Scliar e tantos outros...

Marcos Rey agrupou as crônicas em três subtítulos:

1 - Situações embaraçosas

O CORAÇÃO ROUBADO
Narrada em primeira pessoa, esta crônica relembra o tempo da infância do autor: o momento da conclusão do antigo curso primário. O autor ganhara um livro do pai (O coração, do escritor italiano Edmondo de Amicis), um best-seller infanto-juvenil. Na festa de formatura o seu livro desapareceu e ele sofreu uma grande decepção. Encontrou-o sob a pasta escolar de Plínio, o aluno mais comportado da escola. Com vergonha de denunciá-lo, pegou o livro de volta sem dizer nada ao ladrão. Mas, a partir daquele dia, perdeu a fé nos seres humanos e passou a vida toda dando o exemplo de Plínio para demonstrar a corrupção humana. Um dia, caíram alguns livros de sua estante, entre eles, o famoso O coração, de Amicis... Procurou a dedicatória de seu saudoso pai e... surpresa! Encontrou a dedicatória do pai de Plínio.

GNOMOS NA GAVETA
Misturando ficção e realidade o narrador nos conta que atravessava um período de dificuldades financeiras quando a mulher lhe deu a ideia de escrever sobre coisas esotéricas. Afirmava ela, que o povo estava cansado da dura realidade da vida e que escrever sobre gnomos poderia lhes dar um bom dinheiro. Ele afirmou que era materialista e que tudo isso era besteira, ilusão, piração. Então, a mulher insistiu: escreva contra os duendes. Nosso problema é financeiro, não importa se o livro é contra ou a favor.

Ele aceitou a sugestão da esposa e ligou para o editor, este lhe deu sinal verde... pode escrever. O título saiu fácil: NÃO ACREDITO EM GNOMOS. E DAÍ? Até adiantamento em cheque ele recebeu. Quando começou a escrever, não saía nada além do título... e o pior, um homenzinho de cinco centímetros não para de dar voltas de bicicleta ao redor de sua máquina de escrever: “...Olha para mim gozador e, com a mão direita, faz gestos obscenos... Quer me enlouquecer. Uso o aspirador.”

A ÚLTIMA ENTREVISTA
Um homem sonha em ser um grande repórter, daqueles que fazem entrevistas extraordinárias e perigosas. Imagina entrevistas com marcianos, Santos Dumont, Van Gogh... Acaba entrevistando um perigoso fugitivo de penitenciária que se distrai e é preso pela polícia. Um dia, vai entrevistar um maluco que vai voar num avião até a gasolina acabar. Em terra ele pergunta: O que sente um aviador que sabe que vai morrer quando acabar a gasolina? Depois, entra no avião e decola com o suicida.

“Ganhou o primeiro prêmio de reportagem do ano. Seu pai recebeu o troféu por ele. Beleza. Todo banhado a ouro.”

AH! AH! AH!

Esta crônica tece reflexões sobre o RISO. Desde o mais simples até a risada mais intensa. “O humor machadiano, por exemplo, é tão imaterial como o perfume. Exige refinamento do leitor.. Há, na outra ponta, o riso manual, obtido com os dedos através de cócegas. Com habilidade se faz até o conde Drácula dar risada. O riso pode também ser forçado artificialmente por processo mecânico, como se fazia nos circos e parques de diversão, com o antiquíssimo Disco das Gargalhadas. Criava-se um clima postiço de alegria, com efeito mágico sobre os idiotas”. (p. 32)

Depois, o narrador passa a discorrer sobre o riso embaraçoso, aquele que não deveria ocorrer. O riso durante um velório, durante o casamento, dentro de um elevador... Por fim, a sua própria experiência: fora dar uma palestra sobre Contos. A noite chuvosa, pouca gente escutando... começou a rir da situação e de si mesmo... a plateia foi contagiada, todos começam a rir. Ao final, o prefeito lhe parabeniza:

“Volte sempre. Confesso não ter entendido muita coisa, mas nunca se riu tanto por aqui. O senhor é um show!” (p. 33)

A MISSIVISTA SUICIDA
O assunto é o ofício de cronista. O autor relembra um tempo em que produziu crônicas “melosas” para um programa de rádio, nada especial, tanto é que rasgava todas ao final do programa.

De repente, começou a receber cartas esquisitas: “Diga para o Luís voltar já para casa senão tomo veneno. Ele ouve o programa. Assinado: Julinha da Bela Vista. Letra tremida, papel umedecido de lágrimas.” (p. 39)

Emocionado, o cronista decidiu escrever uma crônica para o Luís. Liga um Luís: “... tudo bem, estou voltando pra casa”. Alívio do cronista. Liga outro Luís: “... já estou chamando um táxi para voltar aos braços da Julinha.” O cronista sente uma sensação de dever cumprido. Liga mais um Luís: “... não adianta ficar escrevendo besteiras, por mim ela pode tomar um tonel de veneno... Não estou nem aí.” O cronista fica perplexo: e agora, qual é o Luís da Julinha?

Outro momento hilário: Alguém escreveu uma carta dizendo chamar?se Leão, que era o ser mais solitário do mundo, que ligassem pra ele. Comovido, o cronista fez o que não era normal no programa. Deu o telefone do tal Leão. Resultado, o pessoal do zoológico ligou revoltado com tantos telefonemas para falar com o leão.

2 - Flashes da vida moderna

ELE COMPROU TUDO QUE VAN GOGH PINTOU
Crônica divertida lembra o filme Efeito Borboleta, pois trata da volta no tempo. Um cientista inventara uma máquina para voltar no tempo, mas não divulgara nada. Tinha uma ideia: voltar no tempo e comprar todos os quadros de Van Gogh. Depois voltaria e venderia todos ficando milionário. Começou a fazer testes. Botou uma garrafa de vinho na máquina e atrasou o relógio em um ano. Resultado: voltou um cacho de uvas; experiência 2: colocou uma galinha na máquina... quando a máquina voltou, lá estava um ovo. Pensou em se a máquina funcionava com seres humanos. Convenceu um bêbado (Gera) a entrar na geringonça e atrasou o relógio 50 anos... Gera voltou cantando marchinhas de 50 anos atrás. Deu tudo certo.

Comprou francos velhos (moeda do tempo de Van Gogh) e embarcou na máquina. Encontrou Van Gogh, pobre, desiludido, sem conseguir vender nenhum dos seus quadros. Comprou todos e ainda deu conselhos ao pintor: “Desista de pintar, moço, não nasceu para isso, em seu lugar compraria ações do novo invento, o telefone. Vai ser o maior estouro.” (p. 48)

Ao regressar ao seu tempo, o cientista colocou os quadros à venda... SURPRESA! Ninguém queria os quadros, ninguém conhecia Van Gogh... ao mexer no passado, ele apagara o famoso pintor da história. O que restara era um tal de Van Gogh que ficara rico como acionista da Companhia telefônica.

ESSA MOCIDADE DE HOJE
Reflexão irônica sobre a preocupação dos pais de antigamente e a dos pais de hoje. A crônica é datada como se fosse de 1893, o que é, evidentemente, uma estratégia do cronista para nos surpreender.

Em uma família, os pais estão preocupados. O filho está viciado em cheirar... Quando pensamos em nossos dias, vem à tona: cocaína! Naquela época, o perigo era cheirar rapé, e a consequência era meramente social, já que os viciados em rapé espirravam muito. Por causa disso, o jovem perdia empregos e casamento.

O segundo filho saía no meio da madrugada e os pais, preocupados investigam. O jovem fazia serenatas para as namoradas. O terceiro viciou-se numa tal de lanterna mágica, os pais ficam alucinados. Era apenas um brinquedo que tentava imitar a magia do cinema e que fez muito sucesso entre as crianças do final do século XIX.

E os pais preocupados dizem: “Este fim de século ameaça destruir nossos jovens.” (p. 53)

MARKETING OPORTUNISTA
Crônica que nos chama a atenção para o oportunismo de algumas pessoas. A história acontece na década de 90, tempo em que os dinossauros e os duendes estão na moda. A Xuxa até chegou a ver alguns, lembra?

O narrador se espanta pela facilidade com que o homem daquele tempo caminha pelos extremos. Ou é o duende (minúsculo) ou o dinossauro (gigantesco). Um amigo pergunta se ele está escrevendo alguma coisa e ele diz que está escrevendo uma história que envolve um triângulo amoroso, o amigo não gosta:

“- A ideia é velha. Meta um dinossauro carnívoro, feroz, perseguindo esses três tarados.

- Como posso fazer isso? O romance se passa nos tempos de hoje, entendeu?

- Não faz mal, ponha o dinossauro assim mesmo.

- Ora, é uma história urbana, não acontece em nenhuma floresta desconhecida.

- Melhor ainda! Já imaginou o tal dinossauro no viaduto do chá, na hora do rush, pisando nos carros, derrubando postes, engolindo marreteiros?” (p. 57-58)

O cronista vai para casa impressionado com o mau gosto. Comenta com a mulher esperando uma risada. Ela diz: dá dinheiro...

De noite, o cronista sonha com dinossauros. Um senador que fez propaganda no pescoço de um dinossauro, Iguanodontes andando na rua e sendo alugados... e algumas pessoas defendendo os dinossauros, preocupados com a sua extinção. De repente ele vê um enorme Tiranossauro Rex amarrado e pergunta por que o imobilizaram daquela maneira. Resposta dos defensores de dinossauros: foi imobilizado assim como marketing sensacionalista de um romance que tratava de um triângulo amoroso. Pergunta se a história fez sucesso. E a resposta é: fez, o inescrupuloso escritor ganhou milhões.

Nesse momento o escritor acorda, vai à cozinha e encontra a mulher somando as contas a pagar e diz:

“- Sabe de uma coisa querida? Aquela ideia do dinossauro no viaduto é coisa de louco, sim, mas quem não é hoje em dia?” (p. 60)

3 - Figurinhas carimbadas

A primeira figurinha carimbada é o próprio autor. Nasceu pobre, mas seu pai disse que nascera na cidade deserta (São Paulo). Devido ao seu anonimato, brinca com o recenseador, pedindo que ele apareça mais vezes. O homem do censo faz a gente lembrar quem é.

Nas primeiras décadas da vida, não fez nada e aí, por falta de tempo e cansado do esforço de não fazer nada, começou a escrever. Escreveu um romance imenso, chamado Ulisses, mas descobriu que havia um com o mesmo nome e com a mesma história. Atribui isso às coincidências. Começou a escrever sobre Paris, mas lhe deram uma ideia: fale sobre São Paulo, é mais perto e, quando chove, é só ficar olhando da janela.

Fez um filme sem sucesso nenhum, e brinca: “Se tivéssemos vendido saídas, no lugar de entradas, teria ficado rico.” (p. 78)

Alga que fez anúncios e brinca com a história de Van Gogh (pintor que cortou a orelha); O anúncio era de cola tudo, portanto fez a orelha de Van Gogh sendo colada ao contrário com os dizeres: “Agora não tem mais jeito, ruivo!”.

Na televisão também não deu certo. O primeiro livro foi um fracasso, só não desistiu por insistência da mãe. Ao acabar de escrever o vigésimo, tinha chegado ao completo anonimato.

Afirma que, atualmente, está escrevendo um livro de memórias e aconselha a que ninguém perca. Começa assim: “No mês em que nasci São Paulo estava coberta de neve.” E para que ninguém duvide, não coloquei o ano.

ADÃO FLORES, O DETETIVE
Adão é um detetive diferente. Misto de empresário de cantores e mulheres para casas noturnas e detetive, Adão tem seu escritório no próprio carro (um Corcel 69) que fica estacionado em frente a boate. Sua secretária (Maralice) trabalha no banco traseiro, com uma máquina de escrever sobre as pernas.

Resolvera ser detetive quando um pai aflito lhe pedira que localizasse suas duas filhas gêmeas, loiríssimas, que sonhavam em cantar em dupla. Ele as havia contratado, pintava elas com a cor negra e as apresentava como “as irmãs fulô”. Quando a plateia cansava, retornava-lhes a cor original e elas cantavam como uma dupla de loiras. Também tivera um caso com uma delas antes de se pintarem e com a outra depois de pintada. Os pais choram com a apresentação das filhas.

Adão Flores era gordo (120 quilos, a maior parte na barriga) e Maralice, sua secretária, magra (45 quilos). Um dia um homem lhe procurou para encontrar um cantor que lhe dera um cano. Adão conhecia todos. Era um tal de Ramon Diaz.. Adão o prendeu, mas antes lhe pediu que cantasse o famoso bolero Sabra Dios.

GENTE QUE VAI À FEIRA
O autor começa narrando a mistura de personagens que frequentam às feiras populares. O rico, o pobre, e, às vezes, até mesmo gente famosa. Ele não gosta de feira, lembra do tempo de criança, quando era obrigado a carregar as compras. Sua esposa adora. Um dia uma menina gorducha lhe pediu um autógrafo. Ficou todo feliz, havia acabado de publicar um livro e era bom ser reconhecido. Juntou gente, e ele cada vez mais feliz... até que uma senhora da fila perguntou: quem é? E a outra informou:

“- Não conhece? É o doutor Lilico da novela das 7, o pai da moça... Vai deixar que eles se casem no final? Conte pra gente, conte.” (p. 91)

PROCURANDO TELMA TERNURA
Um jovem repórter está procurando um assunto que emocione os leitores. Lá está, nos arquivos: Telma ternura, a ex-rainha do sexo em São Paulo, a mãe do espetáculo pornô, sumira. Ninguém sabia do seu paradeiro. Ninguém sabia nem do seu verdadeiro nome. Procurou em todos os lugares e... nada. Um dia ligaram para a redação e deram o endereço.

Encontrou uma velhinha magra (40 quilos), ela não dava entrevistas sem receber um bom dinheiro. Desesperado para não perder o furo de reportagem, ele vendeu a eletrola, o casaco, obras de Eça de Queirós.. até um papagaio. Pagou e a velhinha começou a entrevista. Não tinha nenhuma vergonha, contava tudo, figurões e famosos com quem tivera casos... tudo. O repórter pediu uma foto e ela provocou: com roupa ou sem roupa?

Terminada a entrevista, o repórter corre para o jornal, está bem feliz e ansioso. Quando mostra o trabalho ao editor, este começa a rir e informa: Telma morreu há 20 anos. Alguém te enganou. Ele corre atrás da velhinha que o enganara, mas, chegando lá, não encontra ninguém, ela já se mudara. Informam que a velha era uma grande inventora de histórias e que gostava de se passar por uma ex-atriz: Greta Garbo.

Envergonhado, ele sabe que todos ali já sabem que caíra nas mentiras da velhinha.

OS FURTOS DO FURTADO

Furtado era um homem sério, respeitado, sempre bem vestido. Todos o achavam careta. Mas o cronista o conhecia desde a infância. Um fino ladrão era isso que o Furtado era. Estava sempre de olho nos pertences alheios. Jogava o boné e, junto já vinha o compasso. O cronista avisava: Furtado, devolva, eu vi você roubar. E ele corrigia: Roubo é quando se usa violência. Eu apenas furto.

Quando o autor ameaçava denunciar à professora ele dizia: Não faça isso que eu devolvo. Mas não era o compasso que queria devolver, já era a caixa de lápis de cor do denunciante que ele roubara e que devolveria em troca de seu silêncio.

Cresceu dessa maneira, sempre com modos finos e sempre roubando. Já adulto, não resistia ao desejo de contar ao amigo de infância seus furtos. Na feira, no supermercado, nas livrarias... e ainda pedia: Cuidado! Não vá um dia falar de mim em sua crônica.

quinta-feira, 24 de março de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 02

 

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXVII

A lua em seu plenilúnio
esbanja fulgor e encanto,
para que em seu novilúnio
lance à noite o negro manto.
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Ao começar mais um dia
olhe no espelho da vida,
diga à imagem, na alegria,
a luta há de ser vencida!
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A vida esconde segredos,
que nem todo homem entende,
este vive imerso em medos
e em falsas crenças se prende.
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Cada letrinha interposta
no papel branco da vida,
sempre revela a resposta
da pergunta, quando lida.
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Cinco minutos na fila,
têm sabor de eternidade,
pior quando se afunila
e está apenas na metade.
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Com a tarde não se iluda,
a noite vem e a domina,
treva em luz, a lua muda,
e o sol o dia ilumina.
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De cada pedra que arrasa,
ou deturpa o teu projeto,
ergue as paredes da casa
sem esqueceres do teto.
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Fonte da vida mais terna,
família, berço do afeto,
pais e filhos, senda eterna,
trilham sob o mesmo teto.
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Mentir com atrevimento
sem remorso e sem piedade,
nunca falta um argumento
para esconder a verdade.
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O amargo do chimarrão
torna mais doce a amizade
e a cuia, de mão em mão,
distribui felicidade.
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O amor puro e verdadeiro
não deve ser confundido,
com um elo interesseiro
de egoísmo revestido.
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O entardecer na floresta
surge à sombra da magia,
as aves vibram em festa
no final de mais um dia.
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O perdão nunca acontece
longe do arrependimento,
o que pede, sempre cresce,
e quem dá sente um alento.
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O vento sopra voraz
e arrasa tudo onde passa,
cospe o pó, deixando atrás
rastros de espessa fumaça.
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Pelos caminhos terrenos
busca a paz, planta amizade,
colherás frutos amenos
nos campos da eternidade.
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Quando o frio bate à porta
ouve em gritos, do vivente,
fica fora e te comporta,
porque aqui dentro está quente!
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Quando o vivente aparece
de lenço rubro abanando,
de per si a cena esclarece:
um gaúcho vem chegando!
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Quem odeia os semelhantes
pondo-os no fundo do poço,
chora, por nele entrar antes,
com a pedra no pescoço.
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Se o destino tem autor,
esse autor pode ser eu,
pra ser dele o construtor,
liberdade Deus me deu.
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Só Deus sabe o que o futuro
ao mundo tem reservado,
não seja ele um tanto escuro,
nem obscuro ou depravado.
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Só permanece calado
quem nada tem a contar,
para que falar se ao lado,
ninguém para pra escutar?
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Tem a pedra o dom do abate
e o poder da intemperança,
cora a face de escarlate
com o pincel da vingança.
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Tendo o rumo já traçado,
mais fácil é navegar,
mesmo o mar sendo agitado,
são, pode ao porto chegar.
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Todo o respeito rompido
numa relação delgada,
infla na alma do ofendido
uma amizade negada.
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Vento brando, nunca assusta,
da planta balança a flor.
Se forte, mesmo a robusta,
não resiste o seu furor.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Estante de Livros (“Uma paixão no deserto”, de Honoré de Balzac)


Uma Paixão no Deserto (Une passion dans le désert) é um conto de Honoré de Balzac publicado em 1837 nas edições Delloye et Lecou no tomo XVI dos Estudos filosóficos de "A Comédia Humana". Balzac já havia publicado uma versão em 1830 na "Revue de Paris". É considerada uma das suas melhores narrativas breves.

O livro traz três contos de Balzac: Uma paixão no deserto, O carrasco e A estalagem vermelha. Todos os contos ambientados no período das guerras napoleônicas. Uma paixão no deserto narra uma amizade incomum entre um soldado perdido no deserto e uma pantera, O carrasco mostra o extermínio de uma nobre família espanhola e A estalagem vermelha narra o destino de dois amigos que foram cúmplices de um crime,sendo que apenas um deles foi legalmente condenado. Os três contos tem em comum algo peculiar ao ser humano:o instinto de sobrevivência, que o faz cometer atos de qualquer natureza. É um passeio sobre a condição humana, suas ambições, egoísmos e mesquinhez.

O soldado perdido no deserto acha refúgio em uma gruta e consegue domesticar uma pantera pela qual sente alguma forma de amor. Como única companhia no deserto, o homem projeta emoções humanas na fera, com quem vive em miraculosa harmonia. Um dia, contudo, um gesto brusco lhe dá a impressão de que o animal vai devorá-lo e ele o apunhala. Ele se apercebe tardiamente de que o gesto era um sinal de afeição da parte do animal. O narrador é um homem que, um dia, encontrou o soldado num espetáculo de um domador de feras. A historia desse encontro serve de narrativa moldura. Ele conta o relato do soldado à sua companheira.

O conto Uma paixão no deserto de Honoré de Balzac, está carregado de elementos estruturais que o associam à história do colonialismo no tocante ao comportamento das culturas em choque. Sua peculiaridade está na relação que ele apresenta com o realismo do autor, o que permite verificar um tratamento estético ou um questionamento do colonialismo, em certa medida, diferente do que era feito até então, apesar de este tema ter sido exaustivamente explorado pela literatura de todo o período colonial e pós-colonial. A partir das considerações sobre o realismo literário moderno colocadas por Lukács e por Auerbach, é possível demonstrar que o realismo balzaqueano é responsável por uma abordagem muito mais grave do tema, discutindo o Outro dentro da complexidade do universal humano.

Este realismo e a eficiência na representação literária conduzem uma narrativa extremamente tensa e carregada de significado histórico e social, não obstante a brevidade do texto. O conto também oferece uma abertura para o diálogo entre diferentes narrativas (não europeias, inclusive), pois vários de seus aspectos estão presentes de formas peculiares em outros textos literários. O conto de Balzac tem como ponto de partida para traçar uma cadeia de argumentações com base na constatação de que, entre os universais humanos, sempre haverá um lugar para a negação do Outro.

Fontes:
Maria Braga Barbosa. Uma Paixão no Deserto: o conto de Balzac como metáfora do choque de culturas no colonialismo. Excerto do resumo. Disponível no repositório da Universidade de Brasília.
Wikipedia
Skoob

Honoré de Balzac (Uma Paixão no Deserto)


Pensa que os animais não têm suas paixões? Pois é exatamente o contrário: podemos comunicar-lhes todos os vícios decorrentes do nosso estado de civilização.

A primeira vez que vi o sr. Martin, fiquei surpreso. Estava diante de um velho soldado com a perna direita amputada. Seu rosto espantara-me. Tinha uma dessas cabeças intrépidas, nas quais estão escritas as guerras de Napoleão. Com uma franca expressão de bom humor era sem dúvida um desses guerreiros que nada surpreende, que acham motivo para rir das contorções de um camarada agonizante, enterrando-o ou pilhando-o de coração leve, desses que se metem corajosamente nos caminhos das balas, enfim, um desses homens que não perdem tempo em deliberações, e que não hesitariam em se tornar amigos do próprio diabo. Fomos jantar juntos e, à sobremesa, ele contou-me sua história, que lhes vou relatar.

Durante uma expedição ao alto Egito sob o comando do General Desaix, um soldado da Provença caiu nas mãos dos Mangrabinos, e foi preso pelos árabes nos desertos além das quedas do Nilo. Os Mangrabinos pousaram certa noite, acampando sob palmeiras, onde haviam antes escondido provisões. Contentaram-se em atar as mãos do prisioneiro et após comerem algumas tâmaras e alimentarem seus cavalos, foram dormir.

Quando viu que ninguém o estava vigiando, o Provençal furtou com os dentes uma cimitarra, firmou a lâmina entre os joelhos e cortou as cordas que lhe prendiam as mãos. Num momento estava livre. Tomou de um rifle a de uma adaga, de um saco de tâmaras secas, aveia, pólvora e montando a cavalo dirigiu-se a galope para o ponto onde esperava encontrar o exército francês. Tão impaciente estava para encontrar um bivaque, excitou tanto o animal a correr, que este chegou a morrer, deixando-o sozinho no deserto. Após andar algum tempo na areia com toda a coragem de um fugitivo convicto, foi obrigado a parar, pois o dia findava. Apesar da beleza da noite oriental, sentiu que não podia continuar. Felizmente encontrara uma pequena colina, no topo da qual algumas palmeiras se elevavam.

Estava tão cansado que caiu numa rocha de granito, recortada a capricho como um leito, e ali ficou dormindo sem precauções de defesa. Lamentou ter deixado os Mangrabinos, cuja vida nômade lhe sorria agora que estava sem ajuda. Foi despertado pelo sol cujos raios inclementes causavam, caindo com força no granito um calor intolerável. Ao olhar em torno, viu com horror que um oceano sem limite se estendia diante dele. A escura areia do deserto ia para além donde a vista pode alcançar, e vibrava como aço de tão ofuscante. Parecia um mar de espelho, ou lagos misturados formando um grande espelho. O céu era de oriental esplendor e insuportável pureza. Tanto o céu como a terra estavam ambos em fogo.

O silêncio era terrível na sua selvagem e terrível majestade. O infinito e a imensidade fechavam-se sobre a alma, de todos os lados. Nenhuma nuvem no céu, nenhuma vibração no ar, nenhuma fenda na areia, movendo-se em pequeninas ondas. O horizonte terminava como no mar, com uma linha de luz, fina como uma lâmina de uma espada. O provençal abraçou-se com uma palmeira, como se ela fosse o corpo de um amigo e chorou. Sentado, gritou, a fim de medir a sua solidão. Sua voz não despertou ecos. O homem tinha vinte e dois anos. Carregou a carabina, da qual esperava a sua libertação.

Pôs-se a lembrar a França, as cidades que atravessara, os rostos dos companheiros, os menores detalhes de sua vida. E a sua fantasia mostrou-lhe as pedras da amada Provença, na ilusão do calor que ondulava na folha estendida do deserto. Temendo o perigo dessa cruel miragem, dirigiu-se ao lado oposto da colina. Nesse local viu sinais de que fora antes habitado; a pouca distância, palmeiras cheias de tâmaras. Então o instinto que nos prende a vida acordou de novo no seu coração. Desejou viver até a passagem de atuns árabes. Ou talvez ouvisse o som de algum canhão, pois que por esse tempo Bonaparte atravessava o Egito.

Quando provou daquele inesperado maná, teve certeza de que as palmeiras tinham sido cultivadas por algum habitante, tão boas eram a passou, desesperado a uma quase insana alegria. Voltou ao topo da colina e pôs-se a cortar uma das palmeiras estéreis, que lhe serviram abrigo. Lembrou-se dos animais deserto e, no caso de algum vir beber na linfa visível na base das rochas que mais abaixo desaparecia, resolveu resguardar-se nas pedras colocando uma barreira à entrada da sua ermida. Com folhas da palmeira, uniu a esteira em que dormiria. E adormeceu, cansado.

Durante a noite seu sono foi perturbado por um ruído extraordinário, soergueu-se, e o silêncio permitiu-lhe distinguir os acentos alternados de uma respiração cuja selvagem energia não podia pertencer a um humano. Seu coração gelou-se, sobretudo quando percebeu através das sombras dois olhos amarelos. A vívida irradiação da noite no deserto ajudou-o a distinguir os objetos, e viu assim um animal deitado a dois passos. Era um leão, um tigre, ou um crocodilo.

Imaginou as piores coisas, sentindo a respiração mais próxima, coragem para fazer um movimento. Um cheiro forte encheu a caverna, foi quando ele percebeu a presença de um terrível companheiro.

O reflexo da lua, descendo no horizonte, iluminou o abrigo, tornando visível e resplandecente a pele pintada de uma pantera. O leão do Egito abria e fechava os olhos, a face voltada para o homem. Este sou primeiro em matá-lo com a carabina, mas viu que não havia distância bastante entre ambos. E a ideia de despertar a fera o fez enrijecer. Chegava a ouvir as batidas do próprio coração, amaldiçoando esse ruído, com medo que o animal o ouvisse e despertasse, pois enquanto este dormia ele podia raciocinar e encontrar um meio de fugir. Duas vezes pôs a cimitarra para cortar a cabeça do inimigo, mas se falhasse seria morrer na certa; preferiu esperar até amanhecer, que não tardou.

Não podia examinar a pantera à vontade: o focinho estava cheio de sangue. “Ela jantou bem", pensou, sem se lembrar de que o festim poderia ter sido de carne humana. "Felizmente não está com fome".

Era uma fêmea. Os pelos da barriga e dos flancos esbranquiçavam-se. Muitas marcas pequenas parecendo pelúcia formavam lindos braceletes em volta das patas. A cauda sinuosa era também branca, terminando em círculos pretos. Em cima do corpo, vestido de ouro fosco, macio e suave, manchas características em forma de rosetas, que distinguem a pantera das outras espécies felinas.

Essa tranquila e formidável hóspede ressonava numa atitude graciosa como a de um grande gato deitado numa almofada. As patas nervosas, manchadas de sangue, estavam estendidas adiante da cabeça, que nelas descansava. Se a visse numa jaula, o provençal a teria admirado pela graça e pelos vigorosos contrastes de viva cor que lhe emprestavam aos pelos um esplendor imperial; mas perturbava-o o seu sinistro aspecto.

A presença da pantera, embora adormecida, não podia deixar de produzir o efeito que os olhos magnéticos da serpente exercem sobre o rouxinol. Como os homens habituados ao perigo, que desafiam a morte e oferecem o corpo às balas, o homem, vendo na situação um mero episódio trágico, resolveu representar o seu papel honrosamente. Considerando que os árabes o teriam matado, e que, portanto, estava vivo quase que por milagre, esperou corajosamente, com excitada curiosidade, o despertar do inimigo.

Quando o sol raiou, a pantera abriu os olhos, estendeu as patas com energia, bocejou, mostrando o formidável aparelho dos dentes e da língua pontuda. Lambeu o sangue das patas e coçou a cabeça com um gesto gracioso. "Está fazendo a sua toalete", disse o francês para si mesmo. "Agora vamos dizer bom dia ao outro", e tomou da adaga que furtara dos Mangrabinos. Nesse momento a pantera virou a cabeça e olhou-o fixamente, sem se mover. A rigidez dos seus olhos metálicos e aquele brilho insuportável fizeram que ele estremecesse, principalmente quando o animal caminhou para ele. Procurou, porém, olhá-la carinhosamente dentro dos olhos, para magnetizá-la, e quando a teve bem junto a si, com um movimento gentil e amoroso, como se acariciasse a mais belas das mulheres, passou-lhe a mão pelo corpo, da cabeça à cauda, coçando-a. O animal mexeu a cauda voluptuosamente, e seu olhar ameigou-se, e quando, pela terceira vez, o francês acariciou-a, a pantera deu um desses miados que os gatos dão quando sentem prazer. Mas esse som de uma garganta tão poderosa e profunda ressoou na caverna como as vibrações derradeiras de um órgão na igreja.

Compreendendo a importância de suas carícias, o homem redobrou-as, de modo a surpreender e assombrar a sua imperial cortesã. Quando teve a certeza de haver extinguido a ferocidade da caprichosa companheira, cuja fome felizmente fora satisfeita na véspera, levantou-se para sair da caverna; a pantera deixou-o ir, e depois, quando ele se achava no topo da colina, pulou com a leveza de uma andorinha e foi esfregar-se nas pernas dele, espichando as costas para cima fazem os gatos enquanto soltava outro gemido de prazer.

Ele levou a ousadia ao ponto de acariciar-lhe as orelhas, a barriga e a cabeça, o mais que pôde. Quando viu que dava bom resultado, coçou-a com a ponta da adega, esperando o momento oportuno para matá-la, mas a dureza dos ossos dela fê-lo temer um insucesso. A sulina do deserto mostrou-se gentil para com o seu escravo; ergueu a cabeça, esticou o pescoço, e manifestou o seu deleite. E o soldado resolveu dar-lhe uma punhalada na garganta. Levantou a lâmina, quando a pantera, satisfeita, deitou-se graciosamente aos seus pés, olhando-o com certa simpatia, como se o examinasse.

O homem pôs-se a comer tâmaras, enquanto ela o olhava; finda a refeição, ela pôs-se a lamber-lhe as botas, com a língua áspera, limpando com maravilhosa habilidade a poeira acumulada nas dobras. E ele admirou as proporções do animal, certamente um dos espécimes mais esplêndidos da raça. Como era refinada a cabeça, do tamanho do de uma leoa! Havia nela a fria crueldade de um tigre, é verdade, mas também a vaga semelhança com o rosto de uma mulher sensual. Parecia um Nero embriagado: saciara-se de sangue e queria divertir-se.

O soldado experimentou se podia andar, e a pantera deixou-o, contentando-se em acompanhá-lo com os olhos; e foi quando ele verificou os vestígios do cavalo: a pantera arrastara a sua carcaça por ali, já dois terços do animal tinham sido devorados. Isso tranquilizou o homem.

Concebeu ele então a louca esperança de continuar em bons termos com a pantera durante o dia todo; voltou para junto dela e teve a inenarrável alegria de vê-la abanar a cauda, em quase imperceptível movimento.

Sentou-se, sem medo, ao seu lado e começaram a brincar; segurou-lhe as orelhas, virou-a no chão, de costas, bateu-lhe nos flancos mornos e delicados. Ela deixou-o fazer o que quisesse e quando ele puxou os pelos das patas, encolheu as garras cautelosamente. O homem, com a adega na mão, imaginava enterrá-la no peito da pantera, mas temia que ela o envolvesse num abraço fatal, na derradeira convulsão; além disso, sentiu uma espécie de remorso que o fazia respeitar uma criatura que não lhe fizera nenhum mal.

Parecia-lhe ter encontrado um amigo, num deserto ilimitado; meio inconscientemente lembrou-se da primeira namorada, que ele apelidara "Mignonne", por contraste porque era tão atrozmente ciumenta que, durante todo o tempo em que durara aquele amor, vivera apavorado por causa da faca com que ela sempre o ameaçara. E essa lembrança fê-lo pôr na pantera o mesmo nome, agora que a admirava com menos terror. Até o fim do dia estava familiarizado com essa perigosa posição; até quase já gostava do perigo que nela encontrava. E o animal até já se habituava a olhar para ele quando gritava em voz aguda: "Mignonne!”
               
Ao pôr do sol Mignonne deu vários urros profundamente melancólicos. "Ela é muito bem-educada. Está rezando as suas orações", disse o corajoso soldado. "Bem minha lourinha, vou te pôr na cama", disse-lhe, contando, com a atividade das próprias pernas para correr o mais depressa possível assim que ela adormecesse, a fim de procurar outro abrigo para a noite. Esperou com impaciência a hora da fuga, e andou vigorosamente na direção do Nilo; mas mal tinha feito um quarto de milha na areia quando ouviu a pantera correndo-lhe atrás, soltando um daqueles terríveis urros, que eram piores que o ruído de seus pulos. "Bom ela está enrabichada por mim.

Nunca encontrou outro ser humano antes, de modo que é muito interessante ser o seu primeiro amor". Nesse momento o homem caiu numa dessas areias movediça, tão terríveis para os viajantes e das quais é impossível salvar-se. Sentindo-se perdido, deu um grito; a pantera segurou-o pela gola com os dentes e, pulando para trás, retirou-o da areia movediça como que por magia. — "Ah! Mignonne!" exclamou ele acariciando-a entusiasmado. “Estamos unidos para a vida e para a morte! Palavra de honra, que não estou brincando!" E voltou.

Desse momento em diante o deserto pareceu-lhe habitado. Continha um ser com o qual podia falar, e cuja ferocidade lhe parecia até amena, embora não pudesse explicar a si mesmo aquela estranha amizade. Por mais que desejasse ficar vigilante, dormiu.

Ao despertar não encontrou Mignonne; subiu a colina, e a distância saltando em sua direção, como fazem esses animais que não podem correr devido a extrema flexibilidade da coluna vertebral. Mignonne chegou com a boca cheia de sangue; recebeu a carícia do companheiro, mostrando-lhe o quanto isso a fazia feliz. Seu olhar parecia mais amoroso do que na véspera.

"Senhorita, és um amor. Então andaste comendo algum árabe? não faz mal. Eles são tão animais quanto tu. Mas não vás comer franceses, porque então não te quero mais".

Ela brincava como um cão com o dono, por vezes até provocando-o com a pata.

Passaram assim alguns dias. Essa companhia permitiu que o provençal apreciasse a sublime beleza do deserto; a solidão revelou-lhe todos os seus segredos. Descobriu na alvorada e no por-do-sol aspectos desconhecidos do mundo. Estudou na noite o efeito da lua sobre o oceano de areia, onde erguia ondas rápidas. Após o calor e a exaustão do dia, abençoava a noite, porque caía sobre o deserto a saudável frescura das estrelas, e ele ficava a ouvir a música imaginária do céu. E a solidão ensinou-o a desenrolar os tesouros dos sonhos.

Passava horas inteiras lembrando-se de pequenos nadas, comparando a vida presente a passada. Terminou por gostar apaixonadamente da pantera: pois que alguma espécie de afeição era uma necessidade.

Fosse porque a sua força de vontade se projetasse poderosamente modificando o caráter da sua companheira, ou fosse porque ela encontrasse presa abundante nas suas precatórias excursões pelo deserto, o fato é que ela respeitava a vida do homem, e ele deixou de temê-la, vendo-a tão domesticada.

Passava a maior parte do tempo dormindo, mas precisava vigiar para que o momento da libertação não lhe escapasse, caso alguém passasse na linha do horizonte. Sacrificara a camisa para fazer uma bandeira, que prendera ao topo de uma palmeira, cuja folhagem retirara. Arranjara um meio de mantê-la sempre esticada, por meio de uns pauzinhos, pois que o vento podia não estar soprando na hora em que algum viajante passasse ao longe.

E era nas longas horas, em que abandonava a esperança, que se divertia com a pantera. Aprendera-lhe as diferentes inflexões da voz, dos olhos; estudara os caprichosos padrões das rosetas que lhe marcavam de ouro o pelo. Mignonne não se zangava quando ele lhe segurava a cauda para contar os anéis mais escuros e ele sentia prazer em contemplar-lhe a silhueta, a brancura do peito, a postura graciosa da cabeça. Mas quando ela estava brincando é que ele adorava olhá-la; a agilidade e a leveza jovem de seus movimentos eram-lhe contínua surpresa; gostava de ver o jeito ágil com que ela pulava e subia e lambia o pelo. Por mais rápido que fosse o pulo, por mais incerta que fosse a pedra onde ela se encontrasse, parava sempre ao escutar a palavra "Mignonne".

Um belo dia, enorme pássaro atravessou o espaço. O homem deixou a pantera para ver o novo hóspede; mas após esperar um pouco a sultana do deserto protestou com um miado profundo. "Meu Deus? será que ela está com ciúme?" exclamou ele, vendo o olhar que ela lhe lançou. A águia desapareceu no ar, enquanto o soldado admirava o contorno recurvo da pantera. A profusa luz do sol tornava-lhe a pele de puro ouro, queimando-se de um modo infinitamente atraente. O homem e a pantera olharam-se como se se compreendessem, a coquete estremeceu ao sentir a carícia da mão na sua cabeça, os olhos brilharam como relâmpagos, e depois fecharam-se.

“Ela tem alma", disse ele, olhando para a tranquilidade dessa rainha das areias, dourada, branca, solitária e ardente tal como elas.

E ambos terminaram como terminam sempre as grandes paixões, com um desentendimento. Por algum motivo um suspeita do outro, teme uma traição. Não chegam a se explicar, devido ao orgulho e também por teimosia. Às vezes basta urna palavra ou um olhar.

E o soldado provençal contou-me que, sem saber se a ferira ou não, viu-a de repente virar-se furiosa e enterra-lhe na perna os agudos dentes... gentilmente, quase... E ele, pensando que ela ia devorá-lo, meteu-lhe a adaga no peito. Ela rolou, soltando um grito que lhe gelou o coração, e viu-a morrendo, olhando-o porém sem ressentimento. Teria dado o mundo inteiro — até a sua condecoração, que nessa ocasião ainda não recebera — para fazê-la voltar à vida. Era como se tivesse assassinado uma pessoa! e os soldados que viram a bandeira e foram salvá-lo encontraram-no em prantos.

Fonte:
Honoré de Balzac. Uma paixão no deserto. Publicado em 1837.

quarta-feira, 23 de março de 2022

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 20

 

Cecy Barbosa Campos (Noite da saudade)

A reunião de amigas se formara a pretexto de comemorar a chegada da mais nova à idade sexy. As outras quatro já se haviam tornado sexagenárias e comentavam, galhardamente, as proezas cometidas depois de ultrapassada a barreira dos sessenta.

— Nesta idade, eu me sinto livre como um passarinho e não preciso ficar constrangida em falar o que penso e rir bastante das piadas que ouço quando participo das excursões da terceira idade. — comentou Marina.

Vilma, que sempre achara a amiga "escrachada" demais para o seu gosto, observou que nunca tivera que se conter para não rir das bobagens que ouvia, pois, realmente, não achava graça nos programas apimentados da televisão e não se interessava pelo teatro, quando eram apresentadas comédias que ela considerava vulgares. Da mesma forma, evitava as pessoas que falavam palavrões e que pretendiam se tornar muito íntimas.

Julina, sempre conciliadora, admitiu que não se incomodava quando, entre amigos mais liberais, a conversa descambava para certas inconveniências, mas não se sentia em condições de "dar corda", preferindo rir discretamente e não estender o assunto.

Daí, passaram a outro tópico e as mudanças de comportamento das gerações, que se seguiram à geração delas, foram abordadas. Em muitos casos, criticaram as atitudes dos jovens; em outros, elogiaram a postura mais liberal dos pais de adolescentes nos dias de hoje e, no fundo, demonstraram uma ponta de inveja por não terem vivido em tempos mais permissivos. Reconheciam que sentimentos de culpa impediam-nas de extravasarem seus desejos e ansiedades.

A reunião tornou-se, a partir de então, uma verdadeira Noite da Saudade. Foram lembrados os primeiros namorados, os primeiros bailes, os primeiros beijos. Os encontros escondidos, os beijos furtivos, os abraços sufocantes e rápidos, pois sempre havia alguém por perto.

Zuíeika lembrou do dia em que, ao sair de casa, despistadamente, para encontrar o namoradinho na esquina, viu a irmã menor ao seu encalço e a convenceu a voltar. Ela teria a incumbência de distrair a mãe simulando uma forte dor na barriga. Assim, a mãe não perceberia a ausência de Zuíeika. A irmã sentiu-se importante pela tarefa que lhe foi atribuída, mas cobrou uma taxa que foi paga várias vezes, até que Zuleika chegou à conclusão de que o namorado não valia o rombo na mesada, tantas eram as balas e bombons que tinha de gastar para subornar a irmã.

— Ih, as irmãs menores sempre davam muita despesa - lembrou Celina. – Também comprei muita bala para que as minhas irmãs não contassem que, ao apagar das luzes no cinema, havia sempre algum namorado que se sentava ao meu lado.

— Vocês se lembram quando começamos a frequentar bailes depois da formatura do ginásio? — perguntou Marina. — Nossos pais ficavam sentados às mesas, com os olhos fixos, seguindo nossos passos. Papai até se levantava para não me perder de vista quando, espertamente, o meu par me conduzia para o miolo, Eu adorava, mas levei o maior susto quando um, mais avançadinho, me sapecou um beijo no rosto. Até parei de dançar com ele quando chegamos à extremidade da pista, de tanto medo que fiquei de meus pais terem visto tanta ousadia. E logo eu, que sempre gostei de um bom beijo tipo saca-rolhas! — contou às gargalhadas.

Vilma, a mais recatada, recordou o seu momento especial.

— Susto levei eu, numa noite em que meus pais saíram para jantar fora. Comentei com o garoto que eu estava namorando. Ele era do científico, mais sabido, e logo teve a ideia de ir lá para casa. Pouco depois da chegada dele, Mamãe entra na sala, voltando antes do esperado. Papai havia esquecido a carteira e não chegaram a entrar no restaurante. A minha sorte foi que o meu pai ficou esperando na garagem e só a minha mãe voltou ao apartamento. Mesmo assim, as consequências não foram nada agradáveis, pois a Mamãe armou um cerco de vigilância intensivo e ficou horrorizada de pensar que um rapaz estivera sozinho comigo no apartamento. É claro que a sua maior preocupação foi de que o fato fosse comentado pelos porteiros ou tivesse sido visto por algum vizinho o que me tornaria "falada", o termo usado naqueles tempos.

Todas riram, mas não deixaram de se surpreender, pois, logo a Vilma, que era considerada o exemplo das certinhas, fora a mais audaciosa e cometera o pecado mais grave na faixa dos seus quinze anos.

Brincando, insistiram que ela contasse outra das suas proezas. Entretanto, a recatada senhora não poderia demorar na reunião para não provocar desconfianças no ciumento marido.

Despedindo-se, as velhas amigas comprometeram-se a marcar um outro encontro, no qual, sem falta, haveriam de fazer o Jogo da Verdade.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora.

Domingos Freire Cardoso (Poemas Escolhidos) VIII


ASSIM EM SUAS MÃOS NOS TROCA A VIDA

(Sophia de Mello Breyner Andresen in "Mar novo")

Assim, em suas mãos nos troca a vida
As sendas que escolhemos percorrer
Só porque ela quer, pode e tem prazer
Em ver a nossa sorte confundida.

Não vale a pena a um sonho dar guarida
Por no peito um desejo de viver
Que a vida tem o modo e o poder
De nos abrir na alma uma ferida.

Impotentes ficamos para dar
Outros rumos ao nosso caminhar
Sujeitos aos caprichos do destino.

Aos ombros carregando cruz tão má
Indo o Homem, por onde quer que vá
Será sempre um eterno peregrino.
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BUSCANDO A LUZ DA MADRUGADA PURA
(Sophia de Mello Breyner Andresen in "Mar novo")

Buscando a luz da madrugada pura
Vou perseguindo o rasto desta aurora
Do sol, o raio primo não demora
A dividir em duas a planura.

O sol, quebrando a noturna clausura
Nos montes crava a ardente e rubra espora
E queima o céu e traz a fúlvida hora
Em que a anemia desce à sepultura.

Pleno, sento-me à beira do crepúsculo
Saboreando o dom de ser minúsculo
Mas peça deste mundo singular.

Desponta a branca lua, como gesso
E eu cerro os olhos lassos e adormeço
À espera já de um novo despertar.
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NÃO HÁ DISTÂNCIA ENTRE UM NADA E UM NADA
(Narciso Alves Pires in "Para Além do Adeus")

Não há distância entre um nada e outro nada
Já que todos os nadas são iguais
Mas o nada que dizes me dói mais
Do que a mágoa que fosse a mais pesada,

Já sei que a minha sorte foi traçada
Para morar num barco preso ao cais
Sem provar o mar chão e os temporais
E não tive, sequer, uma largada.

Ê tudo igual nos tempos que medeiam
As horas destes dias que semeiam
No meu peito uma ausência de porto.

Confinado ao tão pouco que hoje sou
Fico aqui, sei que não chego nem vou
No ponto de partida eu já estou morto.
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NUNCA A CASA FICOU SÓ DE TÃO VAZIA
(Rui Balsemâd da Silva in "Meu grito meu canto")

Nunca a casa ficou só de tão vazia
Como nesse dia trinta de Agosto
Quando os olhos te fechei, e o teu rosto
Ficou da mesma cor da cama fria.

A tua alma pura é que aquecia
Esta tua casa onde tinhas posto
Coisas poucas, pequenas, mas com gosto
Com esse amor que à vida te prendia.

Mas da vida, sem ódios, te esvaíste
E nesse dia negro tu partiste
Para onde pertencias; o Além.

Regressaste ao lugar de onde vieste
E já que aos outros tudo de ti deste
Daqui nada levaste, ó minha Mãe!
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ONDE SÓ HAJA ESPUMA SAL E VENTO
(Sophia de Mello Breyner Andresen in "Mar novo")

Onde só haja espuma, sal e vento
Irei plantar o germe da Poesia
Deixando que ela cure essa anemia
Que mói lugar tão ermo e avarento.

Por efeito do lírico fermento
Que a pobreza do chão e ar vencia
O verso cometeu a ousadia
De florir onde não havia alento.

A frase tudo vence quando prima
Pela pujança forte dessa rima
Que é gerada na verve de um poeta.

E o poema faz-se arma de batalha
Que peleja no chão por onde espalha
O Belo que na alma se arquiteta.

Fonte:
Domingos Freire Cardoso. Por entre poetas. Ilhavo/Portugal, 2016.
Livro enviado pelo poeta.

Isabel Furini (Escritor não tem nada para fazer na vida?)

Há pouco tempo, estava saindo de uma aula, quando uma pessoa aproximou-se e disse: “Você é escritora porque não tem nada para fazer na vida, eu tenho muitas coisas para fazer... não tenho tempo para escrever”.  

Olhei-a, se essa frase tivesse sido pronunciada por um estressado executivo paulista teria sentido, mas não, ela é aposentada.

E escritor é escritor por opção ou porque não tem nada para fazer da vida? Será que escritor não tem outras atividades para ocupar o seu tempo.

Bom, no meu caso, além de escrever livros, oriento Oficinas para futuros escritores no Solar do Rosário e em outros locais, e não é só ministrar a aula, é preciso preparar o material para cada aula é isso leva tempo. Todos os professores têm o mesmo problema, preparar aulas e corrigir os textos dos alunos exige tempo.

Entre outras atividades, eu mantenho esta coluna semanal no ICNews.  E para resenhar um livro, primeiro é necessário lê-lo. Pode até ser uma leitura rápida, mas é preciso conhecer o livro. Também ministro palestras. Não são muitas, mas exigem um trabalho especial.  Faço leitura crítica, ou seja, eu leio, analiso e faço a crítica de originais. Geralmente são os novos escritores que enviam suas obras para que eu possa dar orientações.

Em síntese, para uma pessoa que é escritora “porque não tem nada para fazer na vida”, eu considero que realizo bastantes atividades.  Como disse minha amiga Helena, é bom gritar: “Oh, como estou cansada!  Fiz a leitura crítica de um livro enorme”. Ou “Hoje demorei a manhã inteirinha resenhando um livro, essa coluna dá muito trabalho!”.

É, talvez essa seja uma boa opção falar do que faço para que as pessoas vejam que escrever livros não é tarefa para desocupados nem para vagabundos.

Nos anos 90, tive a honra de visitar várias vezes Helena Kolody. Lembro-me que uma vez ela disse: “Você é humilde demais, Isabel, e humildade demais prejudica”. Maravilhosa Helena! Seu olhar sempre era certeiro. Quando escutei essa aposentada desprestigiar meu esforço e meu trabalho dizendo: “você é escritora porque não tem nada para fazer na vida”, eu percebi claramente que devia mudar minha atitude. Ao final até a galinha sai cacarejando depois de botar um ovo, ou seja, até ela faz alarde para que reconheçam seu trabalho.

Fonte:
Livros e dicas para escritores
https://livrodoescritor.blogspot.com/search/label/cr%C3%B4nica

terça-feira, 22 de março de 2022

Versejando 105

 

André Carneiro (Planetas habitados)

– Olhe como são bonitas, milhares de estrelas...

— E quase todas devem ser rodeadas de planetas como o nosso, habitados, provavelmente...

— Custa-me acreditar...

— Os cientistas dizem que há milhões, talvez trilhões de planetas, só nas galáxias mais próximas. A vida existiria como aqui.

— Devo ter pouca imaginação. Acho difícil visualizar planetas habitados, com seres iguais a nós, vivendo como nós.

— Por que "iguais e vivendo como nós"? É pretensão injustificável deduzir que só animais semelhantes tenham desenvolvido inteligência. E os objetos de forma arredondada, vistos em nossa órbita? Muita gente os vê a olho nu.

— Não seriam pessoas sugestionáveis ou com defeitos na vista? Li num artigo: essas aparições são fenômenos naturais pouco estudados, ou máquinas voadoras feitas aqui mesmo, em experiências secretas.

— Talvez, em parte. Mas já há uma boa documentação e não vejo motivo de espanto em supor que outros planetas do nosso sistema sejam habitados.

— Mas os seres que comandam ou pilotam essas naves espaciais, por que não pousam e entram em contato?

— Não passa de orgulho gratuito pensar que habitantes de outros planetas estejam interessados em dialogar conosco. Esses engenhos talvez sejam minúsculos, comandados a distância. Estarão apenas nos estudando com seus aparelhos? E é bem possível que eles sejam tão diferentes de nós que não haja uma possibilidade de entendimento imediato.

— Falariam línguas impossíveis de se aprender? Quem sabe emitam ruídos, ou comuniquem-se por gestos...

— Nossos cientistas acabariam descobrindo a chave. Ou eles, mais inteligentes, nos ajudariam a compreendê-la.

— Aquela estrela brilhante não é um planeta?

— É. Ali há condições para a vida. Talvez primitiva e diversa da nossa, pois sua temperatura é extraordinariamente alta.

— Escrevem muitas histórias sobre aquele planeta. Costumam inventar seus habitantes como sendo monstros destruidores, interessados em conquistar a galáxia...

— Histórias e hipóteses... Quem sabe eles têm mesmo duas antenas na cabeça, um olho atrás, outro na frente, quatro braços e seis patas.

— Seria engraçado se fosse assim.

— Por quê?

— Pior se tivessem dois braços, um par de olhos em cima do nariz.,.

— Seu conceito de beleza é muito exclusivista.

— Gente normal como nós poderia se entender com monstros pavorosos?

— Fique tranquilo. É provável que eles só existam nas histórias. E descobriram que lá a atmosfera é oxigênio puro. De mais a mais, o terceiro planeta possui só um terço de matéria sólida. O resto é uma substância líquida onde a vida é improvável.

— Esta conversa me abala os nervos. Imaginar monstros pernaltas, com dois olhos na frente. Toque aqui a antena.

  — Adeus. Não pense mais no assunto. E saia com cuidado para não incomodar as crianças. Seis patas fazem muito barulho...

Fonte:
André Carneiro. O homem que adivinhava. Publicado originalmente em 1966.
Livro enviado pelo autor.

André Carneiro (1922 – 2014)


Nota do Editor do Blog José Feldman: 
André Carneiro foi uma espécie de mentor para mim, desde quando o conheci nos anos 90, quando ministrava o Curso Ficção Científica na Literatura e no Cinema, na Casa Mário de Andrade, em São Paulo. Graças a ele peguei o gosto por escrever contos, até então era apenas um leitor. Escrevíamos contos e líamos no curso, fazíamos cópias a todos os que participavam do curso e para o André, e todos dissecavam o conto, sempre com a palavra final dele explicando o que estava bom e o que estava “fora da casinha” no conto, geralmente era um massacre (rsrs). Recordo que ele tinha predileção pelo escritor Kurt Vonegut Jr. e nos deu um conto deste autor para dissecarmos. Achamos falhas no conto e questionamos ele sobre o autor, e ele sempre bem humorado disse ao final: "Gosto de Kurt Vonegut Jr... menos este conto". Fizemos amizade desde então, até a morte dele em 2014, em Curitiba. André Carneiro, Artur da Távola e Nilto Maciel (de Fortaleza) são 3 escritores e amigos muito queridos que guardo com muito carinho.
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André Carneiro teve uma carreira artística e literária eclética. Considerado um dos mais importantes escritores brasileiros de ficção científica de todos os tempos, também foi poeta, fotógrafo, cineasta, artista plástico, publicitário, crítico, hipnotizador clínico, entre outras atividades.

Inserido como um dos poetas mais respeitados da chamada Geração de 45 e um dos primeiros fotógrafos artísticos do Modernismo brasileiro, também foi um dos destaques da chamada Geração GRD da ficção científica brasileira durante a década de 1960, ao lado de Rubens Teixeira Scavone, Fausto Cunha, Jeronymo Monteiro e Dinah Silveira de Queiroz. É o autor do gênero com maior destaque internacional, com seus contos e romances publicados em 16 países.

Natural de Atibaia, cidade do interior paulista, André Granja Carneiro nasceu em 09 de maio de 1922. Filho de Recaredo Granja Carneiro, provedor da Santa Casa de Atibaia e vereador na cidade durante muitos anos, e de Engracia de Almeida Carneiro, a primeira funcionária pública do sexo feminino no estado de Goiás, descendente do bandeirante Bartolomeu Bueno.

Foi diretor de Cultura e Turismo da Prefeitura de Atibaia e secretário da Sociedade Amigos de Atibaia, quando conseguiu para a cidade o título de Estância Hidromineral e Turística. Antes, em 1946, já havia criado a primeira biblioteca pública da cidade, que originou a Biblioteca Municipal atual. E também fundou o Clube de Cinema, com César Mêmolo Jr., que promovia debates após as sessões semanais. Além disso, como membro do Conselho de Turismo de Atibaia, criou os primeiros guias e cartazes ilustrados com fotos para a divulgação da cidade.

No Brasil é mais reconhecido como poeta. Em 1947, com outros escritores e poetas jovens, funda a Revista Brasileira de Poesia, divulgadora dos preceitos estéticos do que foi conhecida a chamada Geração de 45: a revalorização da palavra; a criação de novas imagens; a revisão dos ritmos e a busca de novas soluções formais. O poeta vê na poesia, mais do que produto intuitivo, o resultado da experiência da linguagem e da existência humana.

Junto com Péricles Eugênio da Silva Ramos, e outros organiza o 1º Congresso Paulista de Poesia (que oficializou a Geração de 45), realizado na Biblioteca Municipal de São Paulo, em abril de 1948. Tendo sido eleito secretário e com forte participação nos debates, Carneiro ganhou destaque e chamou a atenção de Oswald de Andrade, presente no evento junto com outros grandes escritores da época e que se tornou seu amigo, passando a visitá-lo com frequência em Atibaia. De acordo com o crítico Antônio Cândido (o convidado para fazer o discurso de abertura), após o Congresso Paulista, ocorreu um aumento expressivo de estreias em livros dos novos autores.

Assim, André Carneiro teve o seu primeiro livro de poesia, Ângulo e Face, publicado em 1949, pelo poeta Cassiano Ricardo, através do Clube de Poesia de São Paulo, do qual era presidente, ganhando prêmios e homenagens com sucesso nacional.

O poeta e crítico Ferreira Gullar lamenta que “a poesia sóbria e humana de um poeta como André Carneiro passe despercebida do grande publico. Ângulo e Face encerra em suas poucas páginas uma deliciosa e purificada mensagem lírica, feita de angústia e melancolia. Poemas construídos arquiteturalmente, num equilíbrio de verbalismo e emoção”. Para Oswald de Andrade, a poesia de André Carneiro neste livro “é uma continuidade modelar do Modernismo numa renovada e luminosa expressão”.

Em abril de 1949, criou o jornal literário Tentativa, junto com Cesar Mêmolo Jr. e sua irmã Dulce Carneiro (também poetisa), que alcançou grande repercussão nacional e internacional, sendo considerado, na época, o melhor jornal literário do Brasil. Uma das razões do seu sucesso foi sua isenção das polêmicas modernistas e por abrir espaço a várias tendências dos escritores das gerações 20, 30 e 45 e poetas em fase de ascensão. Além disso, sua distribuição era feita diretamente para os intelectuais e livrarias das grandes cidades e de outros países.

Em seu primeiro número, Tentativa teve a apresentação de Oswald de Andrade e o logotipo desenhado pelo pintor Aldemir Martins. Uma das grandes repercussões do jornal foi a publicação na edição nº 4, em outubro de 1949, de uma entrevista com o escritor Graciliano Ramos, falando sobre os textos e poetas da época. Vale ressaltar que Graciliano nunca havia dado nenhuma declaração à imprensa até então.

O jornal tinha entre seus colaboradores os maiores nomes da literatura nacional, seja da nova geração, como Domingos Carvalho da Silva, Lorival Gomes Machado e Cassiano Nunes, seja das gerações mais antigas, com seus autores já consagrados como Sérgio Millet e Oswald de Andrade; ou em processo de consagração, como Murilo Mendes e Otto Maria Carpeaux. Aparecem ainda, compondo a extensa lista de colaboradores, nomes como Guilherme de Almeida, José Lins do Rêgo, Murilo Mendes, Vinícius de Moraes, Henriqueta Lisboa, Graciliano Ramos, Lêdo Ivo, Emílio Moura, Lygia Fagundes Teles, Autran Dourado, José Paulo Paes, Décio Pignatari e muitos outros, com participações especiais ou inéditas como Hilda Hilst, publicada ali pela primeira vez. E ainda contava com correspondentes estrangeiros em Paris, Buenos Aires, Lisboa e nas principais capitais brasileiras. Foi publicado até maio de 1951, em treze edições bimestrais.

Numa ação conjunta da prefeitura de Atibaia e do Arquivo Público do Estado de São Paulo o jornal foi reeditado em fac-símile, no livro A Geração 45 através do jornal Tentativa (Arquivo do Estado, 2006), com as principais edições impressas na época. A edição conta com artigos introdutórios do próprio André, do professor Osvaldo Duarte, da Universidade Federal de Rondônia, do jornalista Alberto Dines, entre outros.

A publicação seguinte de André Carneiro, Espaçopleno (Clube de Poesia, 1963), ganhou o prêmio Pen Clube de São Paulo. Era uma caixa de papelão no formato de 15,5×23 cm, que acondicionava 27 fólios soltos com 27 poemas ilustrados com xilogravuras. O prefácio foi de Domingos Carvalho da Silva e o planejamento gráfico e xilogravuras de Luis Dias. O crítico Wilson Martins ressaltou que “é uma obra de arte em si mesmo. Qualquer coisa como uma tradução tipográfica da poesia e nos remete ao clima intelectual de que os poemas de Mário Quintana são uma das expressões. Um dos melhores livros ultimamente publicados”.

Espaçopleno também recebeu, em 1966, o Prêmio “Alphonsus de Guimaraens”, da Academia Mineira de Letras. No prefácio, o escritor Domingos Carvalho da Silva escreveu: “O que distingue André Carneiro como poeta é principalmente a sua oposição a qualquer solução retórica. A emoção estética que ele busca é essencialmente a da revelação da beleza e do mistério das coisas. Sua poesia – que é de recusa total aos mitos clássicos, às confidências pessoais e a qualquer forma de misticismo - começa, sob o aspecto da temática e do léxico, nos dias atuais, e a celebração do submarino, da nave espacial, do engenho atômico, da radiologia, do robô, da cerâmica esmaltada, do polietileno, da publicidade subliminar e do amor também, mas um amor doméstico e quotidiano com considerações práticas”.

Mais outro livro de poesias premiado, desta vez o Prêmio Nacional Nestlé, foi Pássaros Florescem (Scipione, 1988), traduzido em inglês por Leo L. Barrow, da Universidade do Arizona, dez anos depois, com o título de Birds Flower (Las Arenas Press, Tucson, 1998), em edição bilíngue. O editor-chefe de O Estado de São Paulo e membro da Academia Paulista de Letras, Nilo Sclazo, assinala que “os poemas reunidos neste livro suscitam no leitor aquela sensação de estranheza que, segundo os estudiosos de teoria literária, constitui traço fundamental da criação original”.

O tradutor Leo Barrow já havia publicado a poesia de André Carneiro na primeira antologia do Modernismo brasileiro em língua inglesa em An Introduction to Modern Brazilian Poetry: Verse Translations (Poetry Club of Brazil, 1954), com retratos e ilustrações apresentando os poetas resenhados com desenho de Darcy Penteado, em bico de pena.

Nos anos 1960 e 1970, foi colaborador do prestigioso Suplemento Literário, caderno semanal do jornal O Estado de São Paulo, com seus contos, poesias, críticas e fotografias. Dirigido por Antônio Cândido e Décio de Almeida Prado, o Suplemento tinha como preocupação a ideia de garantir na imprensa um espaço regular para o debate de ideias e a divulgação de autores novos e consagrados, especialmente os escritores brasileiros.

O último livro de poesia de André Carneiro, a antologia Quânticos da Incerteza (Redijo, 2007), com organização de Osvaldo Duarte, numa realização da prefeitura da Estância de Atibaia, apresenta suas poesias mais maduras. Para o artista plástico, poeta e arte-educador Nestor Isejima Lampros, Quântico da Incerteza, decorre da “interposição do poeta frente à era das máquinas, da era espacial, com lirismo e às vezes com um humor que acontece quando reconhece que o mundo não pode ficar alheio à fissão atômica, mesmo às inclusões de naves espaciais, que podem infestar o meio universal, e que por sermos desacreditados, somos forçados a repudiar como conversa de carochinha. Ele transpõem a vida na cidade terrena, para a vida intergaláctica”.

No exterior, apesar de ter sido publicado na França, na primeira antologia dos melhores poetas brasileiros, Poémes du Brésil (Dessein et Tolra, Paris, 1985), a atividade mais conhecida de André Carneiro foi a de escritor de ficção cientifica, sendo o primeiro membro da América do Sul a integrar a ambicionada Science Fiction and Fantasy Writers of America, entidade profissional de escritores americanos.

Foi o único autor brasileiro na antologia The Definitive Year’s Best Selection, publicado pela editora norte-americana Putnam, em 1973, com citação do seu nome na capa como “Internacional Master”. E, também, da edição inglesa The Penguin World Omnibus of Science Fiction (Penguin Books, 1986), editada por Brian Aldiss e Sam J. Lundwall, que reuniu histórias dos quatro cantos do mundo.

Representou o Brasil no romance colaborativo de ficção científica internacional Tales from the Planet Earth (St. Martins, 1986), organizada por Frederik Pohl e Elizabeth Anne Hull, que reuniu 19 autores de países diferentes. O tema unificador era a posse alienígena de um corpo humano (com ou sem permissão de seu proprietário natural) por uma inteligência de uma estrela distante.

Em 1977, com o objetivo de divulgar a ficção científica latino-americana no mercado editorial francês, o tradutor belga Bernard Goorden selecionou alguns contos que havia traduzido, entre eles Zinga, o Robot e A Escuridão, de André Carneiro, e os publicou na coleção Ides… et Autres, da editora Recto-Verso, da Bélgica.

Como não conseguiu publicar na França, Goorden tentou na Suécia e obteve êxito, publicando o volume Det Nödvändigaste (Delta Förlag, 1978) em uma tiragem de 2.000 exemplares. E, mais tarde, conseguiu que o escritor A. E. Van Vogt, um dos mais influentes autores de ficção científica, escrevesse uma introdução, além de autorizar o uso do nome na capa, ao lado do seu. Graças a esta estratégia de marketing, a antologia foi publicada simultaneamente em alemão, com uma tiragem de 20 mil exemplares; e na Espanha Lo Mejor de la Ciencia Ficción Latinoamericana (Martínez Roc, 1982), com uma tiragem de oito mil exemplares.

A. E. Van Vogt escreveu que o conto Escuridão (“Darkness”, em inglês) não só “é um dos maiores trabalhos escritos na ficção científica, mas também da literatura mundial. Não é apenas ficção científica de ação superficial, mas literatura no seu melhor sentido. André Carneiro merece a mesma audiência de um Kafka ou Albert Camus”.

Na Suécia, seus contos foram publicados no final dos anos 1970 pela revista Jules Verne Magasinet, criada em 1940 – a única revista do mundo de ficção científica durante uma época. A partir de 1972, ela passou a ser dirigida por Sam J. Lundwall, o mais influente e importante editor de ficção científica na história da publicação sueca. Proprietário da editora Delta Förlags, Lundwall publicou uma extensa lista de livros do gênero na coleção Delta Science Fiction. Entre eles, a versão sueca do primeiro romance de André Carneiro, Piscina Livre (Moderna, 1980), que foi publicado simultaneamente no Brasil. Carlos Drummond de Andrade afirmou que “em Piscina Livre, André exercita de maneira brilhante a originalidade de ficcionista”.

Piscina Livre desenvolve uma temática onde uma nova ordem, envolvendo a sexualidade e o amor, se apresenta como pano de fundo para uma devastadora crítica à moral e aos costumes de hoje. Essa assinatura estilística da ficção de André Carneiro teve início no conto que dá nome ao seu primeiro livro em prosa, Diário da Nave Perdida (Edart, 1963), que recebeu o prêmio de Melhor Livro do Ano, do Departamento Cultural da Prefeitura de São Paulo, em 1967. Para o crítico Clóvis Garcia, essa antologia “mostra a que nível de qualidade artística pode chegar a ficção científica quando tratada por um verdadeiro autor, seriamente preocupado com as reações humanas e as qualidades literárias de suas histórias”.

André Carneiro organizou a antologia de contos de ficção científica É Proibido Ler de Gravata (Multifoco, 2010), com os participantes da Confraria de Escritores, a partir da Oficina de Literatura e Poesia, em Curitiba, orientada por ele.

Seu ensaio Introdução ao Estudo da Science Fiction (Conselho Estadual de Cultura, 1967) foi o primeiro estudo em português apresentando e discutindo em seu texto alguns dos principais temas relacionados à ficção científica e recebeu o Prêmio Literário Câmara Municipal de São Paulo. A escritora Dinah Silveira de Queiroz, da Academia Brasileira de Letras, o trata por “nosso mestre da ficção científica”.

Entre junho de 1962 e novembro de 1981, a Embaixada do Brasil em Madri publicou 52 números da Revista de Cultura Brasileña, cujo promotor foi João Cabral de Melo Neto, e que teve como primeiro diretor o também poeta Ángel Crespo. Na edição 28 tivemos um texto de André Carneiro: “Introducción al Estudio de la Ficción Cientifica”; na verdade, a reprodução dos capítulos 1º e 2º, além de uma parte do 5º, do livro “Introdução ao Estudo da Science Fiction”. Neste mesmo número também foram publicados cinco contos brasileiros de ficção científica dos autores Antônio Olinto, Clóvis Garcia, Leon Eliachar, Rachel de Queiroz e Zora Seljan, tirados do livro Histórias do Acontecerá (Edições GRD, 1961).

A Revista de Cultura Brasileña foi um espelho da produção cultural do Brasil da época. Mais que um boletim de informações ou notícias, a revista foi uma espécie de compêndio da cultura brasileira, em que se encontravam trabalhos assinados por, entre outros nomes de prestígio, Gilberto Freyre, João Cabral de Melo Neto, José Guilherme Merquior, Otto Lara Resende, e traduções de seu diretor Angel Crespo e de Damaso Alonso.

A Universidade Federal de Pernambuco promoveu, em 2009, o seminário “Intersecções: Ciência e Tecnologia, Literatura e Arte”, com o lançamento da coletânea de ensaios de mesmo nome, organizada pela profª Ermelinda Ferreira da UFPE, que debateu, entre outras, as obras de André Carneiro. Foi publicado, também, seu conto Noite de Amor na Galáxia. Essa coletânea reuniu ensaios advindos de duas disciplinas do mestrado em Teoria da Literatura da UFPE, onde se estabelece um intercâmbio entre a literatura, as artes plásticas, o cinema e a música.

André Carneiro foi diretor de edições da Editora Edart e do Clube de Poesia de São Paulo, do qual também foi presidente, assim como foi eleito para diversos cargos na União Brasileira de Escritores. E por muitos anos foi membro do Conselho Estadual de Cultura de São Paulo. Como diretor de propaganda da Companhia Cacique de Café Solúvel, dirigiu o lançamento do Café Pelé, onde fez inúmeros comerciais para a televisão e curtas metragens, dirigindo, nas décadas de 1970 e 1980, celebridades como Pelé e o piloto Émerson Fittipaldi.

Sua atuação no cinema nacional começou com filmes artísticos de pesquisa. Ganhou vários prêmios e um dos filmes, Solidão (1951), representou o Brasil no 13º Concurso Internacional de Cinema Amador, realizado em agosto de 1951, em Glasgow, Escócia, sendo depois exibido na França e Itália.

Além de Solidão, outros de seus curtas-metragens foram recuperados pela Fernandes & Mendonça – Som e Imagem, uma produtora de Curitiba que digitalizou alguns filmes, com telecinagem feita por Mario Mendonça e Megg Fernandes, a partir dos originais em formato 8mm. Também está disponível na internet Estudo de Continuidade e Movimento (1950), premiado em 1951 no 3º Concurso Cinematográfico Nacional para Amadores, patrocinado pelo Foto-Cine Clube Bandeirantes e realizado no Museu de Arte de São Paulo. Este curta recebeu em 1952 o prêmio “Estímulo” de melhor filme gênero experimental e representou o Brasil, junto com Último Encontro (1951), em mostras de cinema no Reino Unido, Itália, França e Holanda.

No cinema profissional, André Carneiro se destacou principalmente como roteirista, trabalhando com grandes nomes do cinema nacional como Roberto Santos, Abílio Pereira de Almeida e Walter Hugo Cury. Seu roteiro Os Pereyras (1954), ganhou o Concurso Nacional de Cinema do Quarto Centenário de São Paulo. Seu roteiro mais importante, A Vida de Meneghetti, foi vendido para o produtor italiano Carlo Ponti que, infelizmente, não realizou o filme por ter tido um grande prejuízo no Brasil.

Seu conto O Mudo foi transformado em roteiro no sofisticado filme de longa-metragem, pela Embrafilme, Alguém (1970), dirigido por Júlio Xavier Silveira, com Nuno Leal Maia, Myriam Rios e Ewerton de Castro no elenco. Já o conto O Homem que Hipnotizava interessou ao cineasta Roberto Santos, que assinou um contrato com André com a intenção de fazer um filme (em plena ditadura) de um homem que se auto-hipnotizava e transformava a própria realidade. Era o brasileiro iludido pelo governo, um símbolo do Brasil, cegado pela censura, acreditando nas mentiras do “milagre econômico” e do célebre bolo que seria repartido quando crescesse. Infelizmente, Roberto Santos morreu sem realizá-lo. Mas, o diretor e dramaturgo Ziembinsky comprou o conto para o programa Caso Especial, da Rede Globo, que foi produzido e anunciado como Mergulho no Espelho, com Marcelo Picchi, mas não foi ao ar por proibição da censura do governo militar.

Escuridão, sua história mais famosa, foi adquirida por um produtor espanhol a fim de ser transformado em filme. Publicado em 1963, Escuridão antecedeu em mais de três décadas o romance Ensaio sobre Cegueira, do escritor português José Saramago, publicado em 1995, que retrata um mundo onde as pessoas ficam repentinamente cegas. É inquietante a semelhança com a obra de Saramago ao notarmos cenas marcantes e temas comuns. Para o escritor e compositor Bráulio Tavares, a noveleta Escuridão “emprega um estilo propositalmente distanciado, em que nomes, datas, tempos e espaços parecem diluir-se na escuridão geral, deixando somente o fluir vagaroso e angustiante de uma situação impossível à qual o personagem central procura acostumar-se, com a obstinação de um bicho cuja primeira certeza, acima de todas as outras, é a de que é preciso continuar vivendo, e tentando”.

Mas, ao contrário do que se passa no livro de Saramago, lembra o jornalista e escritor Antônio Luiz M. C. Costa, nesta noveleta de André Carneiro “se enfatiza os atos de solidariedade mais que os de egoísmo. Os cegos se mostram benevolentes e dão uma ajuda desinteressada a pelo menos alguns dos desesperados, dentro dos modestos recursos de que dispõem. Apesar da situação absurda, a narrativa é muito convincente e consegue fazer do infantil medo do escuro algo mais aterrorizante que qualquer monstro, vampiro ou psicopata de filmes de terror. A sensação de desamparo e impotência que nos invade a cada vez que somos surpreendidos por um apagão noturno de poucas horas é aprofundada até ao limite”.

André Carneiro foi professor de roteiros no Senac de São Paulo, onde dirigiu o roteiro piloto do programa sobre profissões “Deu Trampo”, em setembro de 1997, para os canais a cabo da TV Senac. A partir de uma profissão, eram apresentados depoimentos sérios, mas bem-humorados, além de esquetes que satirizavam algum estereótipo da atividade. Misturava a linguagem dos programas Armação Ilimitada e TV Pirata, da Rede Globo, com ritmo jovem, mas nem tão alucinante, dos programas da MTV.

Para ele, o cinema e a fotografia estão misturados, assim todas as suas atividades têm um inegável parentesco intrínseco entre elas. Como fotógrafo, foi um dos primeiros fotógrafos artísticos do Modernismo brasileiro. Sua fotografia Trilhos (1951), em que observa do alto, uma sequência vazia de linhas de bondes curvas e brilhantes, ornada por alguns poucos pedestres, é considerada um dos marcos do Modernismo fotográfico no Brasil. Está exposta no Tate Gallery, em Londres, em exibição permanente.

Em 2007, ele foi incluído com destaque na exposição coletiva Fragmentos – Modernismo na Fotografia Brasileira, da Galeria Bergamin, em São Paulo, sob curadoria de Iatã Canabrava. Foi realizada entre 21 de Abril a 26 de Maio, com a participação de 24 fotógrafos pertencentes às vertentes do fotoclubismo brasileiro, que determinaram a produção das décadas de 1940 e 1950. Esse movimento começou em São Paulo no Foto Cine Clube Bandeirante e se estendeu a outros estados. A Exposição percorreu, além de São Paulo, as cidades do Rio de Janeiro e Belém do Pará.

A mostra da Galeria Bergamin foi precursora – e em certa medida se desdobrou – da exposição Moderna Para Sempre – Fotografia Modernista Brasileira na Coleção Itaú (2013/2014), promovida pelo Itaú Cultural para celebrar o aniversário de São Paulo, lançando ao público o olhar de artistas modernos que registraram o crescimento, a urbanização e a transformação da metrópole.

Como artista plástico, André Carneiro foi o criador da pintura dinâmica, técnica que usa líquidos químicos que tomam formas em compartimentos transparentes justapostos. Perito em cortar vidros usando diamante, graças ao trabalho que realizava na loja de materiais de construção que herdou do pai, criava quadros com diversos compartimentos de vidros com líquidos de cores variadas, além de mercúrio e outros materiais. Manuseado pelo espectador, formavam milhares de combinações plásticas.

Também realizou exposições de “Poesia Colagem”, técnica com a qual criou várias capas de livros de autores brasileiros e ilustrou diversos de seus próprios poemas.

Nos anos de 1960, ganhou destaque por seus estudos e pesquisas na parapsicologia e hipnose, realizando pesquisas no Instituto Quevedo, entre outros. Sobre o tema, publicou O Mundo Misterioso do Hipnotismo, em 1963; e Manual de Hipnose, em 1978. Tornou-se um dos poucos membros brasileiros do Parapsychological Association, a mais respeitada instituição internacional de Parapsicologia, com sede nos Estados Unidos.

Em 1969, dirigiu os trabalhos no histórico “Simpósio de FC”, um evento integrante do 2º Festival Internacional do Filme, organizado por José Sanz, que aconteceu no Rio de Janeiro, em promoção do Instituto Nacional do Cinema, do Ministério da Educação e Cultura e da Secretaria de Turismo do então Estado da Guanabara. As palestras e exibições de filmes do Simpósio aconteceram no Teatro Maison de France. Carneiro contava com orgulho ter assistido ao filme Metrópolis ao lado de Fritz Lang, assim como 2001 – Uma Odisseia no Espaço ao lado de Arthur C. Clarke, convidados do Festival, entre outros grandes nomes da literatura mundial de ficção cientifica, como A.E. Van Vogt, Frederick Pohl, Brian Aldiss, Poul Anderson, Robert A. Heinlein, e outros.

Foi condecorado pelo governo francês com a Medalha de Prata da Cidade de Paris, da Societe D’Education et Encouragement, em 1950, por suas atividades de intercâmbio cultural e cooperação artística entre Brasil e França. Em 1951, é feito “Membre D’honneur” da Academie Ansaldi, de Paris. Em 1999, recebeu o prêmio Laurel Solidário Casa do Escritor, caracterizado por uma placa de prata gravada para celebração das datas mais expressivas na vida pessoal e artística do escritor. Em 2007, foi escolhido “Personalidade do Ano” pelos editores do Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica.

Em 2009, foi diplomado pela Academia de Letras do Brasil, onde também recebeu o título de Doutor Honoris Causa, pelo presidente seccional do  Paraná, o escritor, poeta e gestor cultural José Feldman, com quem manteve amizade por longos anos, desde quando ministrara cursos de ficção científica na literatura e no cinema, na Oficina da Palavra (Casa Mário de Andrade), no início dos anos 90. Segundo Feldman, graças a ele deixou de ser leitor e enveredou pela literatura. “Desde as oficinas na Oficina da Palavra, que foram três que participei, nas quais André ministrava criamos um vínculo pela nossa paixão pela ficção científica e a música. Conheci minha única esposa, Alba Krishna, poetisa e romancista, com quem estou até hoje, no curso dele. André frequentava a minha casa, no Bom Retiro, em reuniões que eu realizava com literatos e músicos nas famosas Noites de Vinho, Blues e queijos. Também frequentava a casa dele, lembro vagamente era nos lados da Lapa, em São Paulo, o que me encantava era o conteúdo dentro dela, era realmente como viajar numa nave espacial por outras dimensões. A quantidade de livros, esculturas, discos, coleções, pinturas, decorações era uma coisa bárbara, tanta coisa num apartamento tão pequeno. A gente se reunia na cozinha, o lugar mais espaçoso, para bater papo. André contava a vida dele de tal modo, alegre, cativante, que ao nos despedirmos sempre já ansiava para novo encontro para saber mais dele. Nossos encontros acabaram quando fui para Curitiba, mas quando me mudei para o interior do estado (Ubiratã e Maringá), André já com problemas na visão foi morar com o filho em Curitiba, contudo mantivemos ainda contato por emails e por telefone. André sempre me incentivou quando abracei os contos e principalmente a gestão cultural. Sempre me escrevia elogiando o meu trabalho, meu blog e os ebooks que eu produzia. Guardo com muito carinho todos os seus livros, antigos e todos que ele lançava e carinhosamente me enviava com dedicatória sempre me elogiando e incentivando.”  

Em setembro de 2012, foi homenageado com a leitura de seus poemas de ficção científica, em comemoração aos seus 90 anos, durante o VI Fantasticon – Simpósio de Literatura Fantástica, organizado pelo editor Silvio Alexandre, com realização da Biblioteca Pública Viriato Corrêa e da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo,

Em julho de 2014, recebeu o Troféu MegaCon Brasil pelo conjunto de sua obra e sua valiosa contribuição para a literatura nacional, durante o evento MegaCon 2014, um encontro das comunidades nerds, geeks, otakus, de ficção científica entre outros, no campus da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, em Curitiba.

A Prefeitura de Atibaia (SP) promoveu a 1ª Semana André Carneiro, de 24 a 30 de marco de 2014, para homenageá-lo. A Semana contou com uma exposição dos livros de André Carneiro (que passaram a fazer parte do acervo permanente da Biblioteca Central de Atibaia), um Museu de Rua com ampliação de fotos e reproduções de fotos e de obras de artes plásticas, além da exibição do longa-metragem “Alguém”, dirigido por Júlio Xavier Silveira, baseado no seu conto O Mudo. Esse evento cultural ofereceu diversas atrações à população, como o 7º Curta Atibaia e o 8º Festival de Atibaia Internacional do Audiovisual (FAIA), mostras competitivas, exibições, debates, palestras, além de atividades nas áreas de cinema, fotografia, artes plásticas e literatura.

Para o escritor Roberto Causo, Carneiro “trouxe para a ficção científica brasileira não apenas textos de qualidade, mas questões importantes e de peso junto ao mainstream literário, como a denuncia do conservadorismo social, a referência à cultura das drogas, a impermanência do real e as dificuldades de comunicação na modernidade, rendendo-lhe comparações com Franz Kafka e os mágico-realistas latino-americanos”.

A obra literária de André Carneiro se caracteriza quase que sistematicamente por um enfoque psicossocial, onde a crítica à estrutura vigente sempre se mostra aguda e sutil. A técnica do contraponto narrativo, na qual conta a história sob diferentes perspectivas, presente em algumas de suas criações, faz lembrar Aldous Huxley, de cuja literatura Carneiro era um admirador confesso. Essa estrutura narrativa, aliada aos temas sociológicos e psicológicos abordados principalmente nas suas ultimas criações, mostra uma ficção científica mais preocupada com o humano do que com o tecnológico.

Faleceu no dia 4 de novembro de 2014, aos 92 anos de idade, em razão de complicações cardiorrespiratórias, em Curitiba (PR), onde viveu seus últimos 15 anos. De acordo com seu filho Henrique, ele foi cremado sem qualquer cerimônia, como sempre quis, avesso às pompas funerárias e aos convencionalismos em geral. Suas cinzas foram espalhadas ao pé de uma pitangueira, em Atibaia, junto de algumas árvores que sempre protegeu, como um verdadeiro ecologista, antes dessa palavra se tornar conhecida. Deixou ex-esposa, a irmã, dois filhos e um neto.

Fonte:
Excertos da biografia por Silvio Alexandre para a Semana André Carneiro
https://www.semanaandrecarneiro.com.br/andre-carneiro/biografia/
Complementação por José Feldman