sábado, 26 de março de 2022

Marcos Rey (Gnomos na gaveta)

Tive um parente que sempre contava ter visto um gnomo ciclista passar por ele, rente ao chão, segurando o guidão da bicicleta com a mão esquerda, enquanto com a direita lhe fez um dilatado gesto obsceno.

Cafajestinho!

Ouvi-o contar isso dezenas de vezes a partir de uma época em que os gnomos não estavam na moda. Convivência mais longa com esses seres diminutos teve meu amigo Egydio, que me assegurou haver enclausurado um deles na gaveta de sua escrivaninha.

– Com o canto dos olhos, eu o vi espiar a gaveta, alguns centímetros aberta. Não satisfeito, resolveu entrar. Pum! Fechei-a com uma cotovelada.

– Ainda está lá dentro?

– Está. Com um conta-gotas, tenho pingado água na gaveta para ele não passar sede. E jogo farelos de biscoito para alimentá-lo.

– Vocês conversam?

– Não, porque pelo traje ele é tirolês ou austríaco. Além do mais, os gnomos só se comunicam com os humanos telepaticamente.

– O que pretende agora?

– Tentarei com uma linha transferi-lo para uma garrafa. Como se faz com miniaturas de navios. Com um gnomo engarrafado, espero ganhar uma fortuna. Duvida?

Mas o gnomo escapou graças a uma empregada que abriu a gaveta, embora advertida para mantê-la fechada. Eles são espertos, sabem incutir nas pessoas, enviar certas ordens.

Essa intenção de ganhar dinheiro com o esotérico, incluindo ou não gnomos, fadas ou duendes, faturar no astral, no invisível, tornou-se ideia fixa para minha mulher.

Estávamos numa pior e tínhamos de sair do buraco.

– Por que não escreve um livro do tipo Shirley MacLaine? – ela sugeriu. – O povo não está suportando mais essa realidade poluída. Sufoca, pesa, cheira mal. O que se quer é embarcar na fantasia, comunicar-se com extraterrenos e seres lendários. Entende?

Argumentei que nasci materialista e com o tempo fui ficando mais ainda. Nunca transei o esotérico. O mundo para mim é justamente esse que está aí, grosseiro, fedido, perigoso.

– Os gnomos não existem! – garanti, bradando. – Tudo não passa de mais um jeitinho de ganhar dinheiro. Nada do que se diz sobre eles tem o menor fundamento. É piração.

A cara-metade estranhou a veemência.

– Você pode provar?

– Provar o quê?

– Provar que os gnomos não existem? Se puder, pondo tudo num livro, bem explicadinho, ótimo. Escrever contra eles e as ondinas, salamandras e silfos talvez também dê dinheiro. Nosso problema é financeiro, não importa se contra ou a favor.

Fazia sentido. Retirei-me para pensar. Minutos depois já tinha o título da obra: Não acredito em gnomos. E daí? Ela aprovou o tom agressivo do título. Desafiador.

Consultei um editor, que me deu o sinal verde.

– Vá em frente. O polêmico sempre vende bem.

Antes de começar a escrever, teria de ler tudo sobre a matéria. E não só em português. Minha consorte se dispôs a me auxiliar. Depois da leitura geral, registramos as observações em dezenas de fichas. Uma boa organização ajuda. Dividi o livro em partes. Cada uma com dez capítulos. Mostrei a planificação ao editor. Animado, decidiu me dar um adiantamento. Voltei radiante, exibindo o cheque.

– Acabe com eles! – disse-me minha mulher.

– Com quem?

– Com os gnomos. Arrase.

Fui à máquina de escrever e bati num meio de página: Não acredito em gnomos. E daí?

Estou com o livro todo nas pontas dos dedos. É só escrever uma frase e sai tudo como pisar num tubo de pasta de dente. Mas não está dando. Não está mesmo. Ele dificulta, impede. Olha para mim gozador e com a mão direita faz gestos obscenos.

Quem?

O maldito homenzinho de cinco centímetros, dando voltas de bicicleta ao redor de minha máquina de escrever. Quer me enlouquecer.

Uso o aspirador?

Fonte:
Marcos Rey. O coração roubado e outras crônicas. Publicação original em 1996.

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