quarta-feira, 30 de março de 2022

Nilto Maciel (Obituário)

Quando o primeiro caderno se completou, Cleto desistiu do segundo. Não ia mais anotar os nomes dos falecidos e as respectivas datas de morte. Tudo começou quando o pai morreu. Comprou um caderno grande e deu-lhe o título de “Falecidos”. Quase todo dia anotava um nome: parente, amigo, conhecido, político, ator, cantor, escritor, jogador de futebol. Se lia ou ouvia notícia de falecimento, corria ao caderno e anotava: fulano de tal e a data.

De vez em quando passava algumas horas a rememorar os seus mortos. Mulher, quem era Anacoluto dos Anzóis Pereira? Ana se irritava com a mania de Cleto: – Sei lá, homem.

Deve ser algum gramático sem pé nem cabeça. Outras vezes se lembrava de algum parente esquecido ou pessoa famosa. Já teria morrido? Consultava o caderno e não encontrava o nome.

Mulher, Maria ainda está viva? Ana só faltava chorar: – De que Maria falava o marido?

– Mulher, por onde anda aquela cantora carioca que regravou uma música de Noel Rosa? – não lembrava o nome e por pouco não ficava doido de tanto escavar a memória dele e de Ana.
         
Decidiu: não ia mais anotar os nomes dos mortos. Comprou outro caderno e deu-lhe o título “A falecerem”. Passou um dia a copiar nomes de parentes, amigos e pessoas famosas.

– Mulher, como se chama aquela sua prima que se casou com o Jorge caminhoneiro? Ana, quem é o presidente dos Estados Unidos?

– Não esqueça de escrever o seu nome, Cleto. Não escreveu, irritado, jogou o caderno na gaveta e se pôs a ler o jornal: “Previsão do tempo: Amanhã chove em todo o litoral”.

Não choveu, mas Ana concluiu o primeiro caderno com o nome do marido.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.

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