Meu único filho viveu apenas dez dias. Cheguei do laboratório há pouco. A morte dele ocorreu ontem. Os médicos da equipe científica responsável pela experiência exigiram de mim absoluto sigilo. Eu, no entanto, não cumprirei a promessa.
Muita gente me chama de louco, mentiroso. Quase ninguém acredita na história desses dez dias. Mesmo quem viu de perto Raimundo. Mesmo quem acompanhou o seu desenvolvimento físico e mental em tão pouco tempo.
Quem foi a mãe? Não houve mãe. Ele nasceu em laboratório. Ao nascer, deram-lhe leite e me entregaram. “Leve-o para casa e cuide bem dele” – aconselhou o dr. Ângelo. “Traga-o amanhã, para avaliação.”
Entregou-me também um manual de instruções. No capítulo relativo a unhas e cabelos lia-se: Cortar unhas e cabelos, três ou quatro vezes, somente no primeiro dia. A partir daí, unhas e cabelos crescerão tão pouco que somente no último dia de vida da criatura será preciso chamar barbeiro e manicure.
Criatura é o nome dado pelos cientistas ao meu filho, o ser criado em laboratório. Deitei-o no banco do carro e corri para casa. Durante o percurso, jogou fora os panos e se pôs a pular no banco e balbuciar palavras. Coloquei-o no berço, fui tomar banho e almoçar.
Durante este tempo não parou de gritar. Ao meio-dia se arrastava pelo chão da casa. Algumas horas depois, falava sem parar, corria para lá e para cá, chutava bolas, gritava.
Pediu-me para ir à praia. Prevenido pelos médicos, havia comprado roupas e calçados de diversos tamanhos. Fomos ver o mar. Ele parecia acostumado às ondas. Nadou como um peixe. Regressamos no início da noite. Falava tudo, conversava sem parar. Vasculhou minha biblioteca e leu, em meia hora, alguns livros. Cansado, dormiu cedo. Também dormi cedo, preocupado com o rápido desenvolvimento de Raimundo.
Cedinho voltamos ao laboratório. O dr. Ângelo nos recebeu sorridente, abraçou o menino e o conduziu ao consultório. “Está muito bem” – assegurou, após os primeiros exames. “É como se tivesse dez anos de idade. Prepare-se para a adolescência, ainda hoje.”
No carro, o menino olhava através do vidro para as meninas nas ruas. Ria, piscava, mandava beijos. Seria aquele meu pior dia? Chegados à casa, o garoto abriu a geladeira diversas vezes. Sentia muita fome.
Recebi um telefonema e passei quase uma hora em conversa. Dr. Ângelo me dava conselhos: saísse a passeio com o menino, viajasse para o campo. Para me libertar do médico, chamei Raimundo. Nada de resposta. Corri a casa em busca dele. Por onde andava o safadinho? Cansado de perambular pelas ruas, busquei o apoio do dr. Ângelo. Ele me deu sossego. O rapazinho andaria à cata de mocinhas. Voltasse para casa e aguardasse Raimundo.
À noite ele voltou. Ele e uma garota muito bonita. Falavam sem parar, de paixão instantânea, amor sem fim. A barba dava-lhe ares de maturidade. A mocinha parecia não perceber nada, nenhuma mudança no corpo dele. Como se estivesse cega. Chegada a noite, dormi no sofá. Eles tomaram conta de um quarto. De manhã ele me contou, em segredo, ter passado a noite em conúbio com a moça.
Hoje ela ainda chora a morte prematura do seu grande amor. Disse estar grávida. Será meu primeiro neto. E eu só tenho vinte e poucos anos de idade.
Ao fim do terceiro dia ele saiu de casa. Não suportava mais aquela prisão. A jovem chorou muito. Tentei impedir tal aventura. Regressou dois dias depois, cabelos grisalhos, cansado, sujo, maltrapilho. Foi conhecer o sertão. A mocinha se apavorou. Não acreditou no que viu. Aquele homem envelhecido não poderia ser o seu belo Raimundinho. Deveria ser o nosso pai. Para ela, eu e Raimundo éramos irmãos, pois parecíamos ter ambos vinte anos, quando nos conhecemos, os três.
Conduzi-a à biblioteca e contei-lhe a verdade. Ela riu de mim, chamou-me de louco, mentiroso. Só voltou a me ver no dia da morte de meu filho.
No sexto dia levei-o ao consultório do dr. Ângelo. Sentia dores na cabeça. O médico não se mostrou preocupado. É assim mesmo. No dia seguinte levei o velho Raimundo para casa. Lia sem parar, falava esquisitices, andava pela casa, ia às ruas. No nono dia percebi a loucura instalada nele. Não me conhecia, não se lembrava de quase nada. Conduzi-o de novo ao doutor.
Ele me segredou: “Hoje ou amanhã a criatura morrerá. É como se tivesse cerca de cem anos de idade. Deixe-o comigo. A experiência está apenas começando.”
Eu me retirei e à noite fui vê-lo pela última vez. Já não vivia o meu filho. Eu, no entanto, não poderia retirar o cadáver. Raimundo não existira para o mundo. Nem nascimento, nem óbito. Uma experiência, apenas.
Muita gente me chama de louco, mentiroso. Quase ninguém acredita na história desses dez dias. Mesmo quem viu de perto Raimundo. Mesmo quem acompanhou o seu desenvolvimento físico e mental em tão pouco tempo.
Quem foi a mãe? Não houve mãe. Ele nasceu em laboratório. Ao nascer, deram-lhe leite e me entregaram. “Leve-o para casa e cuide bem dele” – aconselhou o dr. Ângelo. “Traga-o amanhã, para avaliação.”
Entregou-me também um manual de instruções. No capítulo relativo a unhas e cabelos lia-se: Cortar unhas e cabelos, três ou quatro vezes, somente no primeiro dia. A partir daí, unhas e cabelos crescerão tão pouco que somente no último dia de vida da criatura será preciso chamar barbeiro e manicure.
Criatura é o nome dado pelos cientistas ao meu filho, o ser criado em laboratório. Deitei-o no banco do carro e corri para casa. Durante o percurso, jogou fora os panos e se pôs a pular no banco e balbuciar palavras. Coloquei-o no berço, fui tomar banho e almoçar.
Durante este tempo não parou de gritar. Ao meio-dia se arrastava pelo chão da casa. Algumas horas depois, falava sem parar, corria para lá e para cá, chutava bolas, gritava.
Pediu-me para ir à praia. Prevenido pelos médicos, havia comprado roupas e calçados de diversos tamanhos. Fomos ver o mar. Ele parecia acostumado às ondas. Nadou como um peixe. Regressamos no início da noite. Falava tudo, conversava sem parar. Vasculhou minha biblioteca e leu, em meia hora, alguns livros. Cansado, dormiu cedo. Também dormi cedo, preocupado com o rápido desenvolvimento de Raimundo.
Cedinho voltamos ao laboratório. O dr. Ângelo nos recebeu sorridente, abraçou o menino e o conduziu ao consultório. “Está muito bem” – assegurou, após os primeiros exames. “É como se tivesse dez anos de idade. Prepare-se para a adolescência, ainda hoje.”
No carro, o menino olhava através do vidro para as meninas nas ruas. Ria, piscava, mandava beijos. Seria aquele meu pior dia? Chegados à casa, o garoto abriu a geladeira diversas vezes. Sentia muita fome.
Recebi um telefonema e passei quase uma hora em conversa. Dr. Ângelo me dava conselhos: saísse a passeio com o menino, viajasse para o campo. Para me libertar do médico, chamei Raimundo. Nada de resposta. Corri a casa em busca dele. Por onde andava o safadinho? Cansado de perambular pelas ruas, busquei o apoio do dr. Ângelo. Ele me deu sossego. O rapazinho andaria à cata de mocinhas. Voltasse para casa e aguardasse Raimundo.
À noite ele voltou. Ele e uma garota muito bonita. Falavam sem parar, de paixão instantânea, amor sem fim. A barba dava-lhe ares de maturidade. A mocinha parecia não perceber nada, nenhuma mudança no corpo dele. Como se estivesse cega. Chegada a noite, dormi no sofá. Eles tomaram conta de um quarto. De manhã ele me contou, em segredo, ter passado a noite em conúbio com a moça.
Hoje ela ainda chora a morte prematura do seu grande amor. Disse estar grávida. Será meu primeiro neto. E eu só tenho vinte e poucos anos de idade.
Ao fim do terceiro dia ele saiu de casa. Não suportava mais aquela prisão. A jovem chorou muito. Tentei impedir tal aventura. Regressou dois dias depois, cabelos grisalhos, cansado, sujo, maltrapilho. Foi conhecer o sertão. A mocinha se apavorou. Não acreditou no que viu. Aquele homem envelhecido não poderia ser o seu belo Raimundinho. Deveria ser o nosso pai. Para ela, eu e Raimundo éramos irmãos, pois parecíamos ter ambos vinte anos, quando nos conhecemos, os três.
Conduzi-a à biblioteca e contei-lhe a verdade. Ela riu de mim, chamou-me de louco, mentiroso. Só voltou a me ver no dia da morte de meu filho.
No sexto dia levei-o ao consultório do dr. Ângelo. Sentia dores na cabeça. O médico não se mostrou preocupado. É assim mesmo. No dia seguinte levei o velho Raimundo para casa. Lia sem parar, falava esquisitices, andava pela casa, ia às ruas. No nono dia percebi a loucura instalada nele. Não me conhecia, não se lembrava de quase nada. Conduzi-o de novo ao doutor.
Ele me segredou: “Hoje ou amanhã a criatura morrerá. É como se tivesse cerca de cem anos de idade. Deixe-o comigo. A experiência está apenas começando.”
Eu me retirei e à noite fui vê-lo pela última vez. Já não vivia o meu filho. Eu, no entanto, não poderia retirar o cadáver. Raimundo não existira para o mundo. Nem nascimento, nem óbito. Uma experiência, apenas.
Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.
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