sexta-feira, 4 de março de 2022

Manuel Du Bocage (Sonetos) VI

Importuna Razão, não me persigas,
Cesse a ríspida voz que em vão murmura,
Se a lei do Amor, se a força da ternura
Nem domas, nem contrastas, nem mitigas:

Se acusas os mortais, e os não abrigas,
Se (conhecendo o mal) não dás a cura,
Deixa-me apreciar minha loucura,
Importuna Razão, não me persigas,

É teu fim, seu projeto encher de pejo
Esta alma, frágil vítima daquela
Que, injusta e vária, noutros laços vejo :

Queres que fuga de Marília bela,
Que a maldiga, a desdenhe; e o meu desejo
É carpir, delirar, morrer por ela.
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Mimosa, linda Anarda, atende , atende
Às doces mágoas do rendido Elmano,
C’um meigo riso, c’um suave engano
Consola o triste amor, que não te ofende.

De teus cabelos ondeados pende
Meu coração, fiel para seu dano;
Co’a luz dos olhos teus Cupido ufano
Sustenta o puro fogo, em que me acende,

Causa gentil das lágrimas que choro,
A tudo te antepõe minha ternura,
E quanto adoro o céu, teu rosto adoro:

O golpe, que me deste, anima e cura...
Mas ai! Que em vão suspiro, em vão te imploro:
Não pertence a piedade à formosura.
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Minh'alma se reparte em pensamentos
Todos escuros, todos pavorosos.
Pondero quão terríveis, quão penosos
São, existência minha, os teus momentos.

Dos males que sofri, cruéis, violentos,
A Amor, e aos Fados contra mim teimosos,
Outro inda mais tristes, mais custosos
Deduzo com fatais pressentimentos.

Rasgo o véu do futuro, e lá diviso
Novos danos urdindo Amor e aos Fados,
Para roubar-me a vida após do siso.

Ah! Vem, Marília, vem com teus agrados,
Com teu sereno olhar, teu brando riso
Furtar-me a fantasia a mil cuidados.
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O Céu não te dotou de formosura,
De atrativo exterior, e a Natureza
Teu peito infeccionou co’a vil torpeza
De ingrata condição, falaz e impura;

Influiu-me os extremos da ternura
A Constância, o fervor, e a singeleza,
Esses dons mais gentis que a gentileza,
Dons, que o tempo fugaz não desfigura ;

Apesar da traição , do fingimento
Que te inflama, e desluz, se envela e para
Em ti, alma infiel, meu pensamento;

Nas paixões a razão nos desampara,
Se a razão presidisse ao sentimento,
Tu morrerás por mim, eu não te amara.
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O ledo passarinho, que gorjeia
D'alma exprimindo a cândida ternura,
O rio transparente , que murmura,
E por entre pedrinhas serpenteia.

O Sol, que o céu diáfano passeia,
A Lua, que lhe deve a formosura,
O sorriso da aurora alegre e pura,
A rosa, que entre os zéfiros ondeia;

A serena, amorosa Primavera,
O doce autor das glórias que consigo,
A deusa das paixões, e de Cítera:

Quanto digo, meu bem, quanto não digo,
Tudo em tua presença degenera,
Nada se pode comparar contigo.

Fonte:
BOCAGE, Manuel Maria Barbosa Du. Soneto e outros poemas. SP: FTD, 1994. Disponível na Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro

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