quinta-feira, 17 de março de 2022

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 50) Serviço completo


O TELEFONE TOCA insistentemente e Carlos acorre atender:

— Bom dia, Carlos Mangueira falando!

— Oi, Seu Mangueira, digo, seu Carlos, tudo bem? Desculpe estar ligando a essa hora.

— Tudo bem. Quem é?

— Nossa! Já esqueceu?

— Desculpe. Tanta gente...

— O senhor ficou de passar aqui em casa...

— Na sua casa?

— Sim.

— Meu Deus. Quem está falando?

— Silvia.

— Silvia?

— Isso. O senhor tratou comigo de vir antes de ontem.

— Minha nossa. Estou ficando meio perdido.

— Meio?

— Eu diria inteiramente...

Risos.

— Tudo bem, diga lá dona Silvia, o que eu tratei exatamente com a sua pessoa?

— Não se recorda?

— Sinceramente? Não! E creia, estou sendo honesto.

— O senhor deve ser muito bom naquilo que faz.

— Modéstia à parte, sou mesmo...

— Por isso o belo sexo não lhe dá sossego?

— É uma pergunta? — Por certo. (Mais risos) Toda hora o telefone me faz voltar à realidade...

— Imagino. Por causa dessa sua popularidade acabei ficando na mão...

— Desculpe. Diga exatamente o que foi que marcamos?

— O senhor ficou de vir aqui em casa tapar um buraquinho.

— Um... um o quê? Buraquinho?!

— É. E não veio.

— Que descuido o meu. Me perdoa. Não foi por querer.

— Perdoado. Como lhe falei, esse buraquinho aberto está me tirando o sono. E pinga. Pinga desesperadamente. Não consigo dormir, não me concentro, sem contar que meu esposo, assim que se deita, pega no sono e ronca destrambelhadamente. Agora venho tendo graves seções de pesadelos...

— Ah, me lembrei! Espera ai: a senhora não disse que seu marido...? Pelo nosso papo, entendi que ele tomaria a frente da questão e acabaria com a sua dor de cabeça...

— Eu sei o que eu disse seu Carlos Mangueira. Todavia, meu ilustre companheiro não se incomoda. Não está nem ai para a coisa. Conclusão: o desgraçado do buraquinho continua desguarnecido... e vazando. Ao acordar, de manhã, o meu colchão... deixa claramente evidenciado o tamanho do desarranjo... sinceramente, seu Carlos? Vou acabar tendo um piripaque repentino. É muita coisa para se encaixar de uma vez só na minha mente conturbada.

— Que coisa!

— Não sei se o senhor sabe, mas uma mulher em meio a esse martírio noturno com um buraquinho porejando e precisando ser tapado, obstruído, entupido, sei lá, a coisa pega...

— Entendo. Desculpe mais uma vez ter lhe deixado a ver navios. Repete seu endereço, por gentileza.

— De novo? Já é a segunda vez que lhe passo.

— Não voltará a acontecer. Sairei agora, assim que desligar e cuidar desse buraquinho com o carinho que a senhora merece.

— Vou me beliscar. Ai, esse doeu! Virá mesmo, com certeza, cuidar do infeliz?

— Sem mais demora. E o material?

— O senhor ficou de trazer. Que euzinha não me preocupasse.

— Ok. Se eu disse. Manda por favor, seu endereço.

— Conjunto dos Prazeres, rua dos Aconchegos, número 89.

— Ummmmmm!... agora, dona Silvia, caiu a ficha. Lembrei. O buraquinho fica nos aposentos!

— Sim senhor...

— Sob a sua cama?

— Não, em cima dela.

— Em cima?

— Exatamente. Por isso a minha agonia. O treco me irrita. Veja o senhor. Assim que me recolho, garro a subir pelas paredes. Me assemelho a uma bêbada galopando uma mula. Imagine a cena...

— Bem hilária. Pois bem, dona Silvia. Estou indo.

— Agora?

— Só o tempo de pegar o material.

— O senhor me disse que possui uma maleta com toda a parafernália engatilhada?

— O homem esperto carece andar prevenido. Tenho sim. É só passar a mão...

— Posso esperar então?

—Tranquila. Se não for pedir muito...

— Diga?

— Um cafezinho depois do batente pegaria de bom tamanho.

— De pleno acordo, seu Mangueira. Porei a chaleira no fogo.

— Para seu governo, me pego saindo agora. Hoje cuido desse buraquinho, ou deixo de me chamar Carlos Mangueira.

— Leva quanto tempo?

— Para vedar o buraquinho?

— Não, para o senhor chegar aqui.

— Coisa de meia hora.

— Preciso fazer alguma coisa?

— Deixar a área limpa.

— Quanto a isso, limpíssima, desde que marcamos pela primeira vez...

— Perfeito, dona Silvia. Estou enroscado na sua proa. Pode dizer adeus ao buraquinho. Hoje eu entupo seu desconforto de massa e ponho fim à sua angústia.

Faz uma breve parada para se livrar de uma tosse repentina:

— Perdão. Como ia dizendo, usarei munição total dentro dessa fortaleza. Tenho certeza que a senhora gostará do meu serviço...

— O senhor também pinta?

— Sim.

— Meu marido — sabe-se lá por qual cargas d'água, justo hoje levou o pincel para o trabalho.

— Não se preocupe dona Silvia. Se precisar usar tinta para a caiação, eu tenho pincel preparado. E tinta também é o que não falta. Para onde vou executar algum procedimento, jamais deixo de de levar aquilo que preciso juntamente com os demais apetrechos necessários, tudo na caixa de ferramentas. Até daqui a pouco.

— Até.

O problema do tal buraquinho não ia além de uma minúscula e quase imperceptível rachadura no estuque do quarto, sob a cama do casal. Originava da boia da caixa d’água velha e desregulada. Sempre que esse reservatório ultrapassava o limite (notadamente a noite, pelo volume dispendido em torneiras e chuveiro) o mecanismo, não vedando o nível de resguardo, esborrava e descia pelo forro, pingoteando.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

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