terça-feira, 22 de março de 2022

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 51) Reação em cadeia


O AQUILEU ERA REALMENTE um homem com agá maiúsculo. Macho até debaixo d’água. Como delegado titular da homicídios, um exemplo de policial linha dura. Queria tudo certinho e dentro dos conformes. Seus subordinados sabiam da fama, por essa razão, quando sentado em sua cadeira no amplo gabinete, ninguém brincava. Até advogado de porta de cadeia receava visitar preso nessas ocasiões. Sexta-feira passada, depois do expediente, decidiu pescar com amigos, numa cidadezinha fora do seu Estado.

Geralmente nessas pescarias rolavam muita carne no espeto, cerveja e mulheres bonitas. Até aí, tudo bem. O Aquileu não estava de serviço, nem perto de sua jurisdição, ao contrário, mais de seiscentos quilômetros o separavam da pacata Santa Gertrudes. Ademais, que mal havia sair da rotina e distrair um pouco as ideias? Como filho de Deus, gozava direitos iguais como todo ser humano mortal. Assim, passou a mão nas tralhas, tirou da garagem uma BMW vinho adquirida recentemente, ainda sem placas e com os plásticos nos bancos e ganhou mundo.

Na roda de amigos e garotas, a algazarra corria às mil maravilhas. Depois de pescar num riozinho de águas límpidas e beber todas, se embrenhou, para caçar, mato adentro, com alguns dos muitos rapazes que haviam sido convidados. No decorrer da farra, contudo, e no alvoroço que se seguiu, deixou cair, por descuido, numa espécie de clareira, todos os documentos. Daí em diante, nada restou nos bolsos que o identificasse. Pior, na história toda, é que ninguém viu a carteira rolar, nem o próprio interessado em reavê-la. Aliás, estava como os demais, fora de si e grogue. Mal conseguia parar em pé.

No domingo à noite, apesar dos companheiros insistirem para que não voltasse sozinho (afinal, passara todo o dia misturando cerveja, vinho e cachaça), Aquileu, teimoso, feito uma mula, tomou um demorado banho de cachoeira, mandou para dentro um bem nutrido e forrado prato de arroz com feijão e carne de porco e, em seguida, encarou a longa estrada de volta. Quilômetros à frente, uma blitz o fez interromper a viagem. Tinha nego armado até os dentes espalhados por todos os lados. Elementos haviam saqueado um supermercado, e levado todo o dinheiro da féria, coincidentemente com uma BMW vinho.

A Civil, e a Rodoviária fecharam o cerco. Não passava nem agulha. O que interceptou Aquileu chegou gritando:

— Pula fora, devagarinho, não faça nenhum gesto suspeito e mantenha as mãos onde eu possa vê-las.

— Sou da casa...

— Identificação?

Não havia. Somente nessa hora o Aquileu efetivamente deu conta de que deixara, ou perdera, os documentos. Absolutamente nada, ao alcance das vistas, que fizesse dele um cidadão honesto e decente.

Ainda assim, procura daqui, mexe dali, vira de um lado, futuca de outro, qual o quê. Nem os do carro, no porta-luvas, para salvar a pátria:

— O bafômetro. Tragam o bafômetro.

— Meu amigo, sou delegado de polícia.

— Identificação?

Fizeram uma vistoria minuciosa. Arrancaram tudo de dentro da BMW, inclusive uma pistola sete meia cinco, uma escopeta, duas caixas de munições e cartuchos deflagrados. Diante de tamanhas evidencias, partiram para uma geral.

Aí, nessa geral, a cobra entrou em cena e começou a fumar de verdade. Aquileu era bom de briga. Lutava, kung-fu, karatê, e capoeira, além de conhecer a fundo outros esportes violentos. Por ter recusado a assoprar o bafômetro, e por não poder provar o transporte das armas e das balas, levou um tapa no meio das ventas. Furioso, não deixou por menos. Revidou. Partiu para a desforra devolvendo o tabefe. Um esquisitão, que segurava um revolver trinta e oito, perdeu a arma e dois dentes. Outro beijou o asfalto com a testa esfolada.

Um terceiro voou longe e caiu de quatro dentro de uma valeta perto do acostamento. A confusão, de repente criou formas gigantescas. Cada um que tentava pegar à unha o Aquileu, ou ajudar os companheiros, saia com a fuça vermelha e os olhos inchados. Vendo que perdiam terreno, um dos presentes solicitou reforço pelo rádio. Pintou, na área, meia dúzia de viaturas vindas de todas as direções, sirenes ligadas e as luzes intermitentes ligadas. Um barulho infernal. Acionaram, também, o comissário do lugarejo, um velhote metido a valentão, que atendia pelo nome de Bode Chifrudo. A criatura chegou, quase no mesmo instante do pedido de socorro.

Aquileu, por mais brigão e arisco que fosse, e ainda, levando em consideração os vapores do álcool acumulado, e, exausto, de tanto dar e receber cacetadas, acabou dominado. Aliás, completamente nocauteado. Finalmente, conseguiram lhe colocar as algemas:

— Cadê o valentão? — inquiriu Bode Chifrudo.

— Tá ali, doutor.

Muito brabo e abusando do seu poder Bode Chifrudo chutou com força as costas de Aquileu:

— Então você é um delegado?

— Positivo. Seu colega. Meu nome...

— Identificação?

— Acredite, não posso provar agora, mas...

— Seus comparsas foram para onde? Que rumo tomaram? E o produto do roubo, onde esconderam? Cadê o restante das armas? Além de você, quantos mais conseguiram fugir? Desembucha de uma vez que é melhor. Lá na cadeia faço uso de uns métodos interessantes para fazer o sujeito soltar a voz. Tenho certeza que o meu amigo “delegado” —, desculpe, o doutorzinho —, particularmente, vai adorar...

Com a prisão do suspeito desfizeram a barreira. Levaram Aquileu, a BMW e as armas para a Delegacia. Na porta do prédio onde funcionava a DP, uma multidão de curiosos aguardava a chegada do comissário e do misterioso assaltante. Assim que se viu frente ao edifício, Bode Chifrudo ordenou a um agente que levasse o “delinquente” para os fundos da construção e desse um chuveiro frio no mais novo Jean-Claude Van Damme do pedaço para lhe acalmar os ânimos agitados. Em obediência, dois “canas” de olhos vermelhos e cabelos em desalinho se apresentaram para dar inicio ao tratamento vip. Esse tratamento se consistia, primeiramente, na revista corporal, ou como é conhecida, na gíria dos malandros, a “arrancada das penas do frango”.

Depois, na sequência, vinha o “banho do descarrego”, ou o jato de água fria com mangueira de bombeiro, que atirava a criatura longe. Por derradeiro, uma visita à sala especial, onde “encapuzados” faziam qualquer brutamontes soltar a língua e confessar que matou a mãe, pegou a irmã e palitou os dentes com a sogra. Nessa ordem, começaram pela camisa. Em seguida o cinto, os sapatos, o relógio, o celular, o cordão de ouro, a pulseira, até que chegou a vez da calça. Aquileu voltou a ficar endiabrado e a distribuir porradas, mesmo estando com os braços para trás, presos ao bracelete.

Todavia, apesar de fazer lamber o chão mais umas dez criaturas, seus esforços resultaram novamente em vão. Dominado, uma vez mais, por grandalhões com traços de Arnold Schwarzenegger, finalmente a jeans do delegado rolou pernas abaixo. O espanto veio junto. A comoção pegou a todos, de surpresa.

A cena que surgiu, tomou forma em rostos de aparências rudes que nunca abriram brecha para sorrisos. Olhares incrédulos seguidos de um "Oh!..." em uníssono, pipocou de canto a canto. O comissário Bode Chifrudo veio lá da recepção, onde dava entrevista à Rádio Comunitária. Tudo girava em torno de política. O prefeito, o padre, os vereadores, todos, sem distinção, se faziam presentes no átrio da delegacia.

Repórteres dos dois jornais diários, ávidos por um “furo” jornalístico, inédito naquele condado, tiveram permissão para adentrarem no recinto e fotografarem o absurdo. Um sensacionalismo chocante e bizarro que certamente aumentaria a venda dos periódicos por muitas semanas. A gargalhada vinda dos fundos da construção estrondeava apocalipticamente pelos quatro cantos e criava mais força, à medida que a notícia ia se propagando, numa velocidade incrível, de boca em boca, entre a multidão em polvorosa.

O parrudo delegado Aquileu, saradão, queimado de sol, corpo atlético e de boa aparência, no lugar da cueca, usava uma minúscula calcinha cor de rosa.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

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