quinta-feira, 17 de março de 2022

Samuel C. da Costa (São flores no asfalto)

De frente para a praia de São Miguel da Boa Vista, a poetisa olha com esplendor a vastidão oceânica como se fosse a última vez que a apreciava ou como se fosse pela primeira. De uns dois anos passados para até aquele momento, as coisas mudaram por completo na vida dela. A bem da verdade, tudo mudou de forma radical na vida das jovens artesãs das belas-letras. Um renascer depois de anos, de sobrevida, na pequena cidade interiorana e praieira. As correntes por fim se quebraram e mil pedaços, depois de há muito enferrujam. E aquela velha vida limitada, de marasmos não cabia mais nela. Um novo livro iniciado e, ainda com muitas páginas em brancos a serem preenchidas em negras linhas.

O olhar perdido de Clarisse Cristal, para a infinitude do oceano a faz ignorar o enorme estrago das ondas quebrando, com fúria titânica, na orla na praia e as aves marinhas que gorjeiam estridentemente a poucos metros acima da cabeça efervescente da jovem escritora.

— Vamos embora amor! Está passando da hora. — Antônio tinha colocado a mão no ombro esquerdo da namorada, com terno carinho, na vã esperança de trazê-la de volta para a realidade, em que ambos vivem, pois o tempo urge e ruge para o jovem casal.

— Mais um pouco amor, mais um pouquinho e já vamos embora! Pode ir, amorzinho! Eu te encontro lá em cima, não demoro. Vai ligar a moto que eu já vou indo.

O rapaz assim o fez, deixou a jovem namorada sozinha na orla da praia. A moça foi para mais próximo de onde as ondas quebram, se abaixa e pega um punhado de grãos de areia. Olha para a areia molhada, aperta bem forte e joga a areia de volta para o mar. Era hora de voltar para a realidade e enfrentar o mundo real na realidade liquefeita. Ao cruzar a areia morna da praia, naquele começo da manhã, subir o pequeno elevado e encontrar o namorado. Antônio a espera em cima da motocicleta e com os dois capacetes nas mãos esperando por ela com um sorriso nos lábios. E ela não pensou duas vezes ao ver cena e se adiantar e dar um beijo ardente no namorado para depois subir no veículo, mas Clarisse hesitou e desembarca lentamente da motocicleta importada último modelo.

— Toninho, quem vai pilotar a tua lata velha hoje vai ser eu mesmíssima da silva!

Antônio não gostava quando a namorada chamava a novíssima motocicleta dele de lata velha. Espantado, o jovem músico estranha o inusitado pedido da namorada, que aliás não se cansava das muitas surpresas que ela vinha trazendo em turbilhões para a monótona vida dele.

— Desde quando tu tens habilitação, para dirigir motos, minha querida lady Cristal?

— Desde a semana passada, tirei carteira de moto e carro, agora é oficial, tu não és mais o meu chofer pessoal, meu querido!

De fato, Antônio era o motorista oficial do jovem casal. Quando o jovem, branco e classe média alta apareceu na luz do dia com a namorada negra e pobre, foi um choque para ambas as alas da cidade. A elite, branca e teuta e para a empobrecida e negra ala, não isto já não tenha acontecido antes, não há luz do dia.

Jovens rebeldes faziam isso vez ou outra, para chocar a sociedade local, mas geralmente são breves enlaces, pequenos flertes que não sobreviviam mais poucas horas, ou um dia ou dois. Mas aquele encontro de jovens almas, livres e leves que romperam as barreiras das horas e dos dois dias, desfilavam pelas ruas da cidade como um casal, que apesar de ainda jovem, se comporta de forma madura, integrado e mais que interligado.

— Não me olhe assim, meu vampirão lindo, me dá logo a chave da lata velha e vamos correr as estradas, tenho fome de vida, temos muito o que fazer antes que o dia termine!

O jovem Toninho não teve alternativa, senão repassar a chave do veículo para a esfuziante Clarisse Cristal. Ele sai da posição de condutor da motocicleta para dar espaço para ela. Dali foram os dois a ganharem as estradas para ver as provas do livro Flores no asfalto, o mais novo Clarisse Cristal.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

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