terça-feira, 15 de março de 2022

A. A. de Assis (“Sou muito orgulhoso”)

Rico ele era, mas muito chato. Sabia disso. Herdara do pai algumas terras, uma rede de lojas e outras coisinhas e coisonas. Cheio de etiquetas à mesa. Habitualmente embrulhado em terno e gravata. Exigia ser chamado de doutor. Soberbo e arrogante eram adjetivos com que costumavam carimbá-lo os que a seu redor lidavam.

Certo dia – há coisa de uns vinte anos –, enquanto fazia sua caminhada domingueira no parque, num súbito acesso de autocrítica decidiu que precisava desabafar com alguém. Já não aguentava saber que era olhado com tanta antipatia. Parou, olhou em volta, viu sentado num tronco à beira do lago um homem com jeito de sábio, longas grisalhas barbas, cachimbão fumegando. Pediu licença, acomodou-se ao lado. O velhinho percebeu de pronto o clima. Perguntou sereno: “O que é que o aflige, filho? Brigou com a mulher? Está com alguma dificuldade financeira? Alguma complicação de saúde?

Não era nada disso, explicou o pancudo. A esposa era um anjo de paciência e bondade, os negócios iam de vento em popa, a saúde perfeita. “Meu problema, vô (posso chamá-lo de vô?...), meu problema é que sou muito orgulhoso, orgulhoso demais”.

– Ah, sim. Então talvez não seja coisa deveras grave. Se o amigo se sente tão orgulhoso, há de haver alguma justa razão. Quem sabe o guapo mancebo seja um grande empresário como o Ermírio de Morais, que além de bem-sucedido criou milhares de empregos e ajudou a manter diversas instituições assistenciais.

Não era. Só pensava nos próprios interesses e achava que não tinha nada a ver com os dramas sociais do mundo. O governo que cuidasse disso.

Quem sabe então ele fosse um físico como o César Lattes, um médico como o Dr. Zerbini, um político do porte de um Juscelino, um jurista como Nélson Hungria, um craque como Pelé ou Garrincha, um piloto como Ayrton Senna, um paisagista como Burle Marx, um pintor como Portinari...

– Que nada. O vô deve estar brincando.

– Mas para justificar tamanho orgulho há de haver, pelo menos, em sua família, alguém muito famoso e de especial valor: um músico como Pixinguinha, um cantor como Roberto Carlos, um compositor como Tom Jobim, um ator como Paulo Autran, um poeta como Bandeira ou Quintana...

Ou quem sabe alguma das suas tias ou irmãs ou primas teria o brilho de uma Tarsila do Amaral, de uma Raquel de Queiroz, de uma Cecília Meireles, de uma Tônia Carreiro, de uma Bibi Ferreira, de uma Eva Wilma, de uma Ruth de Souza, de uma Dalva de Oliveira, de uma Maria Esther Bueno...

Ou talvez seja você um grande líder religioso, um grande professor, um grande engenheiro, um grande orador, um grande estilista, um grande cozinheiro, um medalhista olímpico...

– Pare, vô. Não sou nada disso.

– Então, meu filho, fique tranquilo. Você não é orgulhoso coisa nenhuma... é apenas um rapaz bobinho. Sua doença tem cura fácil: basta um pouco de humildade. Baixe a crista e siga em paz.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 03.3,2022)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

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