quinta-feira, 17 de março de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Antes Tarde)

Na infância tive algumas aspirações extravagantes que nunca foram realizadas. Hoje, quando me lembro delas, rio-me; mas naquele tempo eram para mim motivo de certa tristeza e frustração.

Para começar, meu nome não era absolutamente o que eu teria escolhido para mim. Meu grande desejo era chamar-me Adelina. Contribuía grandemente para isso o fato de eu ser admiradora fanática da "Adelina da Pernambucanas", como nós a chamávamos. Era irmã de Seu Nequinha e uma das moças mais elegantes que já conheci. Vestia-se rigorosamente na moda, e eu achava-a maravilhosa. Quando ela vinha ao ateliê para uma fotografia, eu ficava por ali, rodeando-a e admirando-a de perto.

Anos mais tarde, quando já adulta, tive o prazer de desfrutar de sua amizade e até ser sua professora de inglês. Foi uma das pessoas mais meigas e bondosas que tive o privilégio de conhecer. Nos meus guardados conservo um cartão postal de aniversário em que aparece uma linda menina em traje de festa, com um buquê de flores na mão. Eu achava que a menina era eu, e escrevi embaixo o meu querido nome de mentirinha: Adelina de Almeida. (Almeida era também o sobrenome de minha preferência.)

A minha irmã Linéa também não estava contente com o próprio nome, e vivia insistindo com mamãe para que o mudasse para Terezinha de Jesus…

Os rituais católicos nos fascinavam. As procissões com as belas imagens em andores enfeitados, as meninas vestidas de branco, com a tradicional faixa cor-de-rosa e o véu na cabeça... como eu as invejava! E os anjos, então! Que maravilha me parecia poder sair de anjo na procissão!

Esse desejo mais ou menos satisfazíamos em casa, brincando de religião. Célia, Odette e Norma nos ensinavam as rezas, e não raro fazíamos nossas procissões no quintal. Como não dispúnhamos de filó para o véu, servia uma camiseta velha de papai, de malha furadinha (que naquelas alturas estava mesmo era furadona). Linéa recortava as partes aproveitáveis e debruava artisticamente as pontas com linha torçal vermelha. Ficava um estouro! Que emoção colocar na cabeça um véu tão requintado e sair pelo quintal afora, cantando "Ave, ave, ave Maria"...

Agora, a capela é que era realmente original. Naquele tempo, apesar das casas possuírem banheiro completo dentro, todo mundo tinha, para eventuais emergências, uma instalação sanitária um tanto primitiva no fundo do quintal. Davam-lhe nomes diversos: escritório, telégrafo, gabinete, casinha... Pois era esse exatamente o recinto que nos servia de capela. Cravos-de—estudante, esporinhas, cravos-de-defunto e outras flores que tínhamos em profusão pelo quintal (além das mandiocas, milhos e hortaliças de mamãe), enfeitavam aquele exótico e profaníssimo altar.

Lá pelas tantas, Linéa, a mais velha e chefona da turminha, verdadeiro manda-chuva, já enjoada de brincar de católica, dava a palavra de ordem:

"Agora vamos brincar da minha religião!"

E a capela virava Escola Dominical, com professoras e alunas estudando catecismo e cantando os tradicionais hinos infantis protestantes: "Brilhando qual doce luz", "Deus dá às criancinhas", "Deitado em mangedoura"...

Na casa da Odette o gabinete também tinha uma função nobre: era a "diretoria de uma escola", cuja "diretora" era eu. Enfurnava-me lá dentro em meio a um montão de velhos livros de escrita da farmácia que Seu Victorino ali depositava. A Odette era "professora", e de vez em quando vinha perguntar-me alguma coisa sobre "problemas de classe". Eu, muito compenetrada, consultava os velhos livros para poder dar-lhe uma resposta adequada e criteriosa. (Na vida real nunca cheguei a ser diretora de escola: mas de ser professora confesso que já ando um tanto cheia...)

Houve, contudo, um desejo que de certo modo consegui realizar. Na escola, uma das coisas que eu achava mais interessante era quando aparecia um menino ou menina com o braço na tipóia, Ai que vontade que me dava de também quebrar o braço para botá-lo na tipóia! Apesar de todas as minhas molecagens e macaquices pelo alto das árvores, isso nunca me aconteceu.

Agora, porém, poucos anos atrás, em visita à Dona Rosinha de Dr. Oscar, na calçada da casa dela, enfiei o pé num buraco e torci-o para a frente. Em plena Lins de Vasconcelos e com todo o barulhão daquele trânsito infernal, ouvi o tremendo "crrroc" do osso se partindo. Foi uma dor horrorosa e o pé imediatamente ficou um "pão" de tão inchado. Não pude ficar nem cinco minutos na visita, e Dona Rosinha e uma neta, amparando-me de cada lado, levaram-me até o táxi para eu voltar para casa e ir a um hospital.

Fiquei dez dias com a perna engessada, sem poder levantar-me da cama, e depois de trocado o gesso, mais vinte dias andando de "saltinho". Não era exatamente o que eu queria, muito menos quando eu queria, mas... antes tarde que nunca! De alguma forma, depois de velha, eu finalmente realizava um sonho antigo, já quase esquecido, perdido entre as brumas das lembranças do meu tempo de menina,

(Tribuna de Itararé — 28/08/1986)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
Livro enviado pela escritora.

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