quinta-feira, 3 de março de 2022

Júlia Lopes de Almeida (O Caso de Rute)

A Valentim Magalhães


Pode abraçar sua noiva! disse com bambaleaduras* na papeira* flácida a palavrosa* baronesa Montenegro ao Eduardo Jordão, apontando a neta, que se destacava na penumbra da sala como um lírio alvíssimo irrompido dentre os florões grosseiros da alcatifa.

Ele não se atreveu, e a moça conservou-se impassível.

– “Não se admire daquela frieza. Olhe: eu sei que Rute o ama, não porque ela o dissesse – esta menina é de um recato e de um melindre de envergonhar a própria sensitiva –, mas porque toda ela se altera quando ouve o seu nome. O corpo treme-lhe, a voz muda de timbre e os olhos brilham-lhe como se tivessem fogo lá por dentro. Outro dia, porque uma prima mais velha, senhora de muito respeito, ousasse por em dúvida o seu bom caráter, a minha Rute fez-se de mil cores e tais coisas lhe disse que nem sei como a outra a aturou! Toda a gente percebe que ela o ama; mas é uma obstinada e lá guarda consigo o seu segredo... Agora, que o senhor vem pedi-la, é que eu lhe declaro que estava morta por que chegasse este momento. Apreciei-o sempre como um coração e um espírito de bom quilate.”

– “Oh! Minha senhora...”

– “Não lhe faço favor. Além disso, Rute está com vinte e três anos; parece-me ser já tempo de se casar. Há de ser uma excelente esposa: é bondosa, regularmente instruída, nada temos poupado com a sua educação; e se não aparece e não brilha muito na sociedade é pelo seu excesso de pudor. Eu às vezes cismo que esta minha neta é pura demais para viver na terra. Todas as pessoas de casa têm medo de lhe ferir os ouvidos e escolhem as palavras quando falam com ela.

Não admira: a mãe teve só esta filha e foi rigorosíssima na escolha das mestras e das amigas; o padrasto tratava-a também com muita severidade, embora fosse carinhoso. Um santo homem! Desde que ele morreu que nos falta a alegria em casa... A mulher, coitada, como sabe, ficou paralítica; e esta pequena mesmo tornou-se melancólica e sombria. Às vezes penso que ela fez voto de castidade, tal é o seu recato; desengano-me lembrando-me de quanto é moderada na religião e de que o seu bom senso se revela em tudo! O que tenho a dizer-lhe, portanto, é isto: afirmo-lhe que Rute o adora e que não há alma mais cândida, nem espírito mais virginal que o seu. Aí a deixo por alguns minutos; se é o respeito por mim que lhe tolhe as palavras, concedo-lhe plena liberdade.”

Eduardo fixou na noiva um olhar apaixonado. Na sua brancura de pétala de camélia não tocada, Rute continuava em pé, no mesmo canto sombrio da sala. Os seus grandes olhos negros chispavam febre e ela amarrotava com as mãos, lentamente, em movimentos apertados, o laço branco do vestido.

A baronesa acrescentou ainda, carregando nas qualidades da neta e fazendo ranger a cadeira de onde se erguia:

– “Rute nunca foi de lastimeiras e, apesar de mimosa e de aparentemente frágil, tem boa saúde. Um bom corpo ao serviço de uma excelente alma. Dirão: “Estas palavras ficam mal na tua boca!...” Pouco importa; são a verdade. Tenho outras netas, filhas de outras filhas; tenho criado muitas meninas, minhas e alheias, mas em nenhuma encontrei nunca tanta doçura, tanta altivez digna e tanta pudicícia. Aí lhe a deixo; confesse-a!”

A velha saiu.

Todos os rumores da rua rolaram confusamente pela sala. A porta que se abriu e fechou trouxe, num raio de luz, os repiques dos sinos, o rodar dos veículos, o sussurro abominável da cidade atarefada; mas também tudo se extinguiu depressa. A porta fechou-se, as janelas voltadas para o jardim mal deixavam entrar a claridade, coada por espessas cortinas corridas, e os noivos ficaram sós, silenciosos, contemplando-se de face.
* *

O finado barão fora um colecionador afinco de móveis e de outros objetos dos tempos coloniais. Súdito de D. João VI, de que a sua adorável memória acusava ainda todos os traços já aos noventa anos, era sempre o seu assunto predileto a narração dos sucessos históricos presenciados por ele. À proporção que se ia afastando dos seus dias de moço, mais aferrado se fazia aos gostos e às modas do seu tempo. Só se servia em baixela assinada com os emblemas da casa bragantina e a propósito de qualquer coisa dizia, fincando o queixo agudo entre o indicador em curva e o polegar: – “Lembro-me de uma vez em que a D. Carlota Joaquina”... Ou então: – “Em que D. João VI, ou D. Pedro I”, etc. E em seguida lá vinha a descrição de um Te Deum, ou de uma procissão, a que a sua imaginação facultosa emprestava as mais brilhantes pompas. A família tinha um sorriso condescendente para aquele apego, já sem curiosidade, à força de ouvir repetir os mesmos fatos. Os amigos evitavam tocar, de leve que fosse, em assuntos políticos, receosos da longura do capítulo que o barão a propósito lhes despejasse em cima; mas só ele, o bom, o fiel, nada percebia, e, com os olhos no passado, toca a citar ditos e atitudes dos imperadores e a curvar-se numa idolatria pelo espírito boníssimo da última imperatriz.

Alguma coisa disso se refletia em casa: tudo ali era sóbrio, monótono e saudoso. Cadeiras pesadas, de moldes coloniais, largas de assento, pregueadas no couro lavrado de coroas e brasões fidalgos, uniam as costas às paredes, de onde um ou outro quadro sacro pendia desguarnecido e tristonho.

Assim o quisera ele, que até mesmo na hora suprema rejeitara um belo crucifixo que lhe oferecia o padre, voltando os olhos suplicemente para um outro crucifixo mais tosco, erguido sobre a cômoda, e que pertencera a D. Pedro I.

Para ele, naquela cruz não estava só o Cristo; estava, de envolta com o respeito pelos monarcas extintos, a lembrança dos seus folguedos de moço. Talvez mesmo, num volteio súbito da memória, se lembrasse das festas religiosas em que namorara, à sombra dos conventos, a sua primeira mulher, e beliscara com freimas amorosas os braços gordos de Janoca, a mulatinha mais faceira de então... Quem sabe? talvez que na hora da morte não se possa só a gente lembrar das coisas sérias.

Qualquer hora vivida pode ser recordada rapidamente, sem tempo de escolha. Como a Janoca não pertencera à história, a família ignorou-a; e pelo ar gélido daquela galeria de espectros palacianos não apareceu nem um requebro quente de mulatinha risonha, que lhes desmanchasse a compostura.

Depois de viúva, a segunda baronesa reformara algumas coisas e confundira os estilos, pondo no mesmo canto um contador Luís XV, um móvel da Renascença e uns tapetes modernos, entre largos reposteiros de seda cor de marfim.

Aquela extravagância não conseguira quebrar a severidade do todo. Tinha uma fisionomia casta e grave aquela sala. As virgens dos quadros, de longo pescoço arqueado e rosto pequenino, gozavam ali o doce sossego de uma meia tinta religiosa. Mas, lá dentro, os dias passavam-se entre o tropel da criançada, os sons do piano de Rute e a confusão dos criados.

E era por isso que todos fugiam lá para dentro e que só Rute, nas suas horas de inexplicável tristeza, se encerrava ali, em companhia da Madona da Cadeira e da Virgem de S. Sisto.

Era nessa mesma sala que ela estava ainda, muda e pálida, em frente do seu amado.

– “Rute...” - balbuciou Eduardo.

Mas a moça interrompeu-o com um gesto e disse-lhe logo, com voz segura e firme:

– “Minha avó mentiu-lhe.”

O noivo recuou, num movimento de surpresa; foi ela quem se aproximou dele, com esforço arrogante e doloroso, deslumbrando-o com o fulgor dos seus olhos belíssimos, bafejando-lhe as faces com o seu hálito ardente.

– “Eu não sou pura! Amo-o muito para o enganar. Eu não sou pura!”

Eduardo, lívido, com latejos nas fontes e palpitações desordenadas no coração, amparou-se a uma antiga poltrona, velha relíquia de D. Pedro I, e olhou espantado para a noiva, como se olhasse para uma louca. Ela, firme na sua resolução, muito chegada a ele, e a meia voz, para que a não ouvissem lá dentro, ia dizendo tudo:

– “Foi há oito anos, aqui, nesta mesma sala... Meu padrasto era um homem bonito, forte; eu uma criança inocente... Dominava-me; a sua vontade era logo a minha. Ninguém sabe! Oh! Não fale! Não fale, pelo amor de Deus! Escute, escute só; é segredo para toda a gente... No fim de quatro meses de uma vida de luxúria infernal, ele morreu, e foi ainda aqui, nesta sala, entre as duas janelas, que eu o vi morto, estendido na eça*. Que libertação, que alegria que foi aquela morte para a minha alma de menina ultrajada! Ele estava no mesmo lugar em que me dera os seus primeiros beijos e os seus infames abraços; Ali! Ali! Oh, o danado! Mais do que nunca lhe quero mal agora! Não fale, Eduardo! Minha avó morreria, sofre do coração; e minha mãe ficou paralítica com o desgosto da viuvez... Desgosto por aquele cão! E ela ainda me manda rezar por
sua alma, a mim, que a quero no inferno! Às vezes tenho ímpetos de lhe dizer: “Limpa essas lágrimas; teu marido desonrou tua filha, foi seu amante durante quatro meses...” Calo-me piedosamente; e acodem todos: que não chorei a morte daquele segundo pai e bom amigo! – É isto a minha vida. Cedi sem amor, pela violência; mas cedi. Dou-lhe a liberdade de restituir a sua palavra à minha família.”

Rute falara baixo, precipitando as palavras, toda curvada para Eduardo, que lhe sentia o aroma dos cabelos e o calor da febre.

Em um último esforço, a moça fez-lhe sinal que saísse e ele obedeceu, curvando-se diante dela, sem lhe tocar na mão.
* *

O outro está morto há oito anos... ninguém sabe, só ela e eu... Está morto, mas vejo-o diante de mim; sinto-o no meu peito, sobre os meus ombros, debaixo de meus pés, nele tropeço, com ele me abraço em uma luta que não venço nunca! Ninguém sabe... mas por ser ignorada será menor a culpa? Dizem todos que Rute é puríssima!

Assim o creem. Deverei contentar-me com essa credulidade? Bastará mais tarde, para a minha ventura, saber que toda a gente me imagina feliz? O meu amigo Daniel é felicíssimo, exatamente por ignorar o que os outros sabem. Se a mulher dele tivesse tido a coragem de Rute, ama-la-ia ele da mesma maneira? Se a minha noiva não me tivesse dito nada, não seria o morto quem se levantasse da sepultura e me viesse relatar barbaramente as suas horas de volúpia, que me fazem tremer de horror! E eu, ignorante, seria venturoso, amaria a minha esposa, à sombra do maior respeito e com a mais doce proteção... E assim?!

Poderei sempre conter o meu ciúme e não aludir jamais ao outro? Ele morreu há oito anos... ela tinha só quinze... ninguém sabe! Só ela e eu! ...e ela ama-me, ama-me, ama-me! Se me não amasse e fosse em todo caso minha noiva dir-me-ia do mesmo modo tudo? Não... parece-me que não... não sei... se me não amasse... nada me diria! Daí, quem sabe? Amo-o muito para o enganar... parece-me que lhe ouvi isto!

Se eu pudesse esquecê-la! Não devo adorá-la assim! É uma mulher desonrada. A pudica açucena de envergonhar sensitivas é uma mulher desonrada... E eu amo-a! Que hei de fazer, agora? Abandoná-la... não seria digno nem generoso... Aquela confissão custou-lhe uma agonia!

Se ela não fosse honesta não afrontaria assim a minha cólera, nem se confessaria àquele que amasse só para não sentir a humilhação de o enganar. E o que é por aí a vida conjugal senão a mentira, a mentira e, mais ainda, a mentira?

O outro está morto... ninguém sabe, só ela e eu! Ela e eu! E que nos importam os outros, tendo toda a mágoa em nós dois só?! Antes todos os outros soubessem... Não! Que será preferível – ser desgraçado guardando uma aparência digna, ou...? Não! em certos casos ainda há alguma felicidade em ser desgraçado... Ela ama-me... eu amo-a... ele morreu há oito anos... já nem lhe falam sequer no nome... Ninguém sabe! ninguém sabe... só ela e eu!

Eduardo Jordão passava agora os dias em uma agitação medonha. Atraía e repelia a imagem de Rute, até que um dia, vencido, escreveu-lhe longamente, amorosamente, disfarçando, sob um manto estrelado de palavras de amor, a irremediável amargura da sua vida. “Que esquecesse o passado... ele amava-a... o tempo apagaria essa ideia, e eles seriam felizes, completamente felizes.”

O casamento de Rute alvoroçava a casa. A baronesa ocupava toda a gente, sempre abundante em palavras e detalhes. Só Rute, ainda mais arredia e séria, se encerrava no seu quarto, sem intervir em coisa alguma. Relia devagar a carta do noivo, em que o perdão que ela não solicitara vinha envolvido em promessas de esquecimento. Esquecimento! Como se fosse coisa que se pudesse prometer!

A moça, de bruços na cama, com o queixo fincado nas mãos, os olhos parados e brilhantes, bem compreendia isso.

Entraria no lar como uma ovelha batida. O perdão que o noivo lhe mandava revoltava-a. Pedira-lhe ela que lhe narrasse a sua vida dele, as suas faltas, os seus amores extintos? Não teria ele compreendido a enormidade do seu sacrifício? Seria cego? Seria surdo?... dono de um coração impenetrável e de uma consciência muda? As suas mãos estariam só tão afeitas a carícias que não procurassem estrangulá-la no terrível instante em que ela lhe dissera – eu não sou pura? Ou então por que não a ouvira de joelhos, compenetrado daquele amor, tão grande que assim se desvendava todo?! Ele prometia esquecer! Mas no futuro, quando se enlaçassem, não evocariam ambos a lembrança do outro? Talvez que, então, Eduardo a repelisse, a deixasse isolada no seu leito de núpcias, e fugindo para a noite livre fosse chorar lá fora o sonho da sua mocidade... Sim, a sua noite de núpcias seria uma noite de inferno! Se ele fosse generoso ela adivinharia através da doçura do seu beijo os ressaibos da lembrança do primeiro amante; e quanto maior fosse a paixão, maior seria a raiva e o ciúme.

Esquecimento!... sim... talvez, lá para a velhice, quando ambos, frios e calmos, fossem apenas amigos.

Rute pensou em matar-se. Viver na obsessão de uma ideia humilhante era demais para a sua altivez. Desejou então uma morte suave, que a levasse ao túmulo com a mesma aparência de cecém* cândida, de envergonhar a própria sensitiva.

Queria um veneno que a fizesse adormecer sonhando; e quanto dera para que nesse sonho fosse um beijo de Eduardo que lhe pousasse nos lábios!
* *

De luto a casa. Ramos e coroas virginais entravam a todo o instante. Quem saberia explicar a morte de Rute? foram achá-la estendida na cama, já toda fria.

Agora estava entre as duas janelas, na grande sala sombria, espalhando sobre o fumo da eça as suas rendas brancas e o seu fino véu de noiva. Parecia sonhar com o desejado esposo, que ali estava a seu lado, pálido e mudo.

Entravam já para o enterro e foi só então que uma voz disse alto, saindo da penumbra daquela sala antiga:

– Vai ficar com o padrasto, no mesmo jazigo...

Eduardo fixou a morta com doloroso espanto. Estava linda! Na pele alvíssima nem uma sombra. Os cabelos negros, mal atados na nuca, desprendiam-se em uma madeixa abundante, de largas ondas.

Quê! seria ainda para o outro aquele corpo angélico, tão castamente emoldurado nas roupas do noivado? Seria ainda para o outro aquela mocidade, aquela criatura divina, que deveria ser sua?!

E a mesma voz repetiu:

– Vai ficar com o padrasto...

Com o padrasto, noites e dias... fechados... unidos... sós! Fora para isso que ela se matara, para ir ter com o outro! Aquele outro de quem via o esqueleto torcendo-se na cova, de braços estendidos para a reconquista da sua amante!

Alucinado, ciumento, Eduardo arrancou então num delírio o véu e as flores de Rute, e inclinando um tocheiro pegou fogo ao pano da eça.

E a todos que acudiram nesse instante pareceu que viam sorrir a morta em um êxtase, como se fosse aquilo que ela desejasse…
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* Vocabulário (Dicionário Houaiss eletrônico – 2009):

Bambaleaduras
= mover mexendo os quadris; balancear; gingar.
Cecém = Significa açucena, uma flor que simboliza a nobreza, a altivez, a distinção e a elegância.
Eça =  Estrado onde se colocavam os caixões para os corpos serem velados.
Palavrosa = faladora; tagarela.
Papeira = tireomegalia, aumento no volume da glândula tireoide.


Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

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