domingo, 13 de março de 2022

Jaqueline Machado (Olhos de Ressaca)

Bento Santiago. Santiago por parte de Machado de Assis. Apenas Iago, por parte de Shakespeare. Eis aí, o cruzamento dos rios de duas almas masculinas naufragadas após caírem nas armadilhas do ciúme. Não me refiro ao ciúme comum, que apimenta saborosamente o prato do amor, mas do ciúme doentio que leva a vida ao naufrágio impiedoso imposto pela beleza das sereias.

A mãe de Bento Santiago queria o filho padre. Mas ele não tinha vocação para o sacerdócio. Desde a infância amava Capitulina, vulgo Capitu, sua vizinha. Não sabia do latejante e crescente amor, mas a amava. Ambos tinham catorze anos, e a vida, apesar dos problemas, era pura poesia. Eles brincavam, trocavam sorrisos e ideias. Esculpiam no ar cenas lindas do sentimento que sentiam um pelo outro.

Disse Bentinho na narrativa de Casmurro: “Capitu deu-me as costas, voltando-se para o espelhinho. Peguei-lhe dos cabelos, colhi-os todos e entrei a alisá-los.

"Vamos ver o grande cabeleireiro", disse Capitu, rindo. O trabalho era atrapalhado, às vezes por descaso, outras de propósito, para desfazer o feito e refazê-lo. Os cabelos iam acabando, por mais que eu os quisesse intermináveis. Desejei penteá-los por todos os séculos dos séculos, tecer duas tranças que pudessem envolver o infinito por um número inominável de vezes. Nunca puseste as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa... Uma ninfa! Todo eu estou mitológico.   

Enfim acabei as duas tranças. Capitu derreou a cabeça, a tal ponto que me foi preciso acudir com as mãos e ampará-la.  Pedi-lhe que levantasse a cabeça, podia ficar tonta. Não quis. Não levantou a cabeça, e ficamos assim a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e... grande foi a sensação do beijo.”

Bentinho, menino inexperiente e mimado, admirava fascinado aqueles olhos que o agregado bajulador, José Dias, os havia definido como: “Olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Olhos de ressaca.

Capitu, era cheia de luz, esperta e bela. As qualidades da moça emaranhavam seu raciocínio. Faziam o coração pulsar forte, e a paixão tatuar em doce brasa, a alma. Aqueles olhos abertos, ressacados, imensos feito um mundo oceânico o atraem de maneira irresistível. Ali, ele queria mergulhar e se deixar levar pelo encanto da sereia. Sim. Capitu era uma espécie de sereia fora do seu habitat natural. Por isso tinha olhos de ressaca. Era a sua busca pelo mar.

O tempo passou, o rapaz foi a contragosto para o seminário. Sem vocação, retornou. Casou com a sua amada, e com ela teve um filho. Certo dia deu para imaginar que o garotinho se parecia com o amigo e também ex- seminarista, Escobar. Dessa forma permitiu que ondas violentas de ciúme inundassem seu lar amoroso. Dali em diante a desconfiança se fez mais forte do que o amor que sentia por sua esposa. E, em seguida, veio a separação. A mulher e o filho vão para a Europa e logo morreram. Ele tornou –se Dom Casmurro: que quer dizer, sujeito metido consigo mesmo, teimoso... No fim do seu tempo terreno se pôs a escrever sua história de vida, acusando Capitulina de infidelidade. Mas será que ela realmente o traiu ou a ideia do adultério não passou de uma mentira imposta pelos argumentos ardilosos do ciúme ensandecido que entorpecia cada uma das células de sua mente de advogado?

A questão é que, Casmurro, só se tornou  “casmurro”, por falta de coragem de saber a verdade e viver o que desejou viver de fato. Os rios doces de seu destino tornaram-se inversos, perigosos. E ele foi entregue ao mar, que embora belo, é salgado. Enlouquecido de amor, nele mergulhou para nunca mais voltar. Voltar a si...

Cuidado, amigos, Capitu é bonita. Ela é sereia. Melhor dizendo: ela é mulher...

Fonte:
Texto enviado pela autora

Nenhum comentário: