O telefone toca de madrugada, dou um alô sonolento. Ouço a voz desconhecida a ordenar:
— Olha, Tia Matilde morreu agora há pouco. Vai ser velada aqui em casa, o enterro é às cinco, no Santa Cândida. Avisa teu pessoal.
Desligou. Já tomado pela impossibilidade de voltar a dormir, tento fazer funcionar a memória. Quem seria o dono da voz? Alguém autoritário, sem dúvida. Um militar. Seria um dos tios de meu pai, o coronel? Não, o linguajar não denotava alguém que tivesse passado pela academia militar. Faltava polimento no manejar do vernáculo. Havia erros de concordância, de tempo verbal. Não, não seria o tio coronel.
Imaginei um dos filhos da Tia Matilde, o Nenê. Tinha sido dono de autoescola, quem sabe o estilo mandão não passasse de deformação profissional. Comandar alunos e instrutores deve ser tarefa a exigir pulso, firmeza no tratar.
A voz é que não combinava. Primo Nenê sempre primou pela polidez no trato, jamais deixou de perguntar pela saúde de papai e mamãe. Também não seria.
Aquele cunhado, talvez. O caçador de onças, das quais jamais alguém havia visto os respectivos couros, mas que existiam nas histórias do homem. Não fosse pela inexistência do sotaque gauchesco-italiano, típico da região sudoeste do Paraná, bem poderia ser. Mas não tendo eu ouvido nenhum bah!, nenhum tchê, descartei o mentiroso.
E na impossibilidade de sabê-lo, pus-me a analisar a tarefa a que a voz me impunha: avisa teu pessoal. Supus ser meu dever chamar a família, exigir que se compusesse a mesa, decretando, afinal:
— Tia Matilde morreu.
A forma talvez devesse ser suavizada, eu poderia anunciar ter o gato subido ao telhado:
— Tia Matilde não tem passado bem. Coisas da idade, como sabem.
Restaria convocar os parentes, os tais da cota particular, o meu pessoal. Mamãe, os filhos, a namorada do mais velho, os primos do lado paterno. Mas considerando a solenidade em torno da mesa de jantar exigir preparação, melhor não perdermos tempo.
Instalei-me ao telefone, já com o dia nascendo:
— Mãe? Olha, Tia Matilde morreu.
Houve silêncio constrangedor do outro lado.
— Ouviu, mãe?
— Que Tia Matilde, meu filho?
— A tia do pai, claro.
— Ela chamava-se Martina, não Matilde. Faleceu há três anos.
Despedi-me, envergonhado. E agora, o que dizer à voz? Preciso encontrar boa desculpa para o caso dela ligar esta madrugada, reclamando da ausência do meu pessoal. Estou analisando a possibilidade de não atender ao telefone. Ou atender com voz de falsete, alegando ser o mordomo, pronto a oferecer minhas razões, ainda que pouco verossímeis: súbita dor de barriga, viagem de urgência para o interior, síndrome de urticária em velórios.
A verdade é que seria menos difícil se a família tivesse uma Tia Matilde, ora se NÃO.
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Ernani Buchmann nasceu em Joinville, em 1948 e mudou com a família para Recife e Rio de Janeiro até estabelecer-se em Curitiba. Iniciou os estudos em advocacia na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco e formou-se na Universidade Federal do Paraná. No Rio de Janeiro, iniciou a carreira de publicitário e em Curitiba, a de jornalista, trabalhando como repórter da Rádio Clube Paranaense, assim como cronista de jornais e revistas nas empresas Correio de Notícias, Folha de Londrina, Panorama, Quem, Atenção, Paraná & Cia., Ideias e Gazeta do Povo. Também atuou como produtor e comentarista em emissoras de rádio e TV, principalmente em programas esportivos.
Na vida pública, exerceu cargos na Fundação Cultural de Curitiba, na Fundação Teatro Guaíra e no Museu de Arte Contemporânea do Paraná, além de vice-presidente da Associação Comercial do Paraná e membro do Instituto dos Advogados do Paraná, entre outras instituições. Foi presidente do Paraná Clube no biênio 1996/98.
Foi professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e de outras instituições de ensino e co-roteirista do longa-metragem Heróis da Liberdade, filme baseado em seu livro homônimo, e roteirista dos filmes "Sumiços Delirantes" e "Sobre Touros e Homens".
Em colaboração com Túlio Vargas e Valério Hoerner Júnior, foi responsável pela edição do volume biográfico dos membros da Academia Paranaense de Letras. Seus textos literários foram publicados em revistas como O Pasquim, "Raposa", "Nicolau", "Rascunho", "Cornélio" e no "Jornal de Humor" e Diário do Paraná, entre outros.
Em 2005 foi eleito para Academia Paranaense de Letras.
Autor dos seguintes livros:
Cidades e Chuteiras (1987), O Livro do Truco (1996), Heróis da Liberdade (1999), Quando o Futebol Andava de Trem (2002), Onde me Doem os Ossos (2003), O Ponta Perna de Pau (2005), A Camisa de Ouro (2006), O Caçador de Moscas (2007), O Bogart Curitibano (2008).
— Olha, Tia Matilde morreu agora há pouco. Vai ser velada aqui em casa, o enterro é às cinco, no Santa Cândida. Avisa teu pessoal.
Desligou. Já tomado pela impossibilidade de voltar a dormir, tento fazer funcionar a memória. Quem seria o dono da voz? Alguém autoritário, sem dúvida. Um militar. Seria um dos tios de meu pai, o coronel? Não, o linguajar não denotava alguém que tivesse passado pela academia militar. Faltava polimento no manejar do vernáculo. Havia erros de concordância, de tempo verbal. Não, não seria o tio coronel.
Imaginei um dos filhos da Tia Matilde, o Nenê. Tinha sido dono de autoescola, quem sabe o estilo mandão não passasse de deformação profissional. Comandar alunos e instrutores deve ser tarefa a exigir pulso, firmeza no tratar.
A voz é que não combinava. Primo Nenê sempre primou pela polidez no trato, jamais deixou de perguntar pela saúde de papai e mamãe. Também não seria.
Aquele cunhado, talvez. O caçador de onças, das quais jamais alguém havia visto os respectivos couros, mas que existiam nas histórias do homem. Não fosse pela inexistência do sotaque gauchesco-italiano, típico da região sudoeste do Paraná, bem poderia ser. Mas não tendo eu ouvido nenhum bah!, nenhum tchê, descartei o mentiroso.
E na impossibilidade de sabê-lo, pus-me a analisar a tarefa a que a voz me impunha: avisa teu pessoal. Supus ser meu dever chamar a família, exigir que se compusesse a mesa, decretando, afinal:
— Tia Matilde morreu.
A forma talvez devesse ser suavizada, eu poderia anunciar ter o gato subido ao telhado:
— Tia Matilde não tem passado bem. Coisas da idade, como sabem.
Restaria convocar os parentes, os tais da cota particular, o meu pessoal. Mamãe, os filhos, a namorada do mais velho, os primos do lado paterno. Mas considerando a solenidade em torno da mesa de jantar exigir preparação, melhor não perdermos tempo.
Instalei-me ao telefone, já com o dia nascendo:
— Mãe? Olha, Tia Matilde morreu.
Houve silêncio constrangedor do outro lado.
— Ouviu, mãe?
— Que Tia Matilde, meu filho?
— A tia do pai, claro.
— Ela chamava-se Martina, não Matilde. Faleceu há três anos.
Despedi-me, envergonhado. E agora, o que dizer à voz? Preciso encontrar boa desculpa para o caso dela ligar esta madrugada, reclamando da ausência do meu pessoal. Estou analisando a possibilidade de não atender ao telefone. Ou atender com voz de falsete, alegando ser o mordomo, pronto a oferecer minhas razões, ainda que pouco verossímeis: súbita dor de barriga, viagem de urgência para o interior, síndrome de urticária em velórios.
A verdade é que seria menos difícil se a família tivesse uma Tia Matilde, ora se NÃO.
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Ernani Buchmann nasceu em Joinville, em 1948 e mudou com a família para Recife e Rio de Janeiro até estabelecer-se em Curitiba. Iniciou os estudos em advocacia na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco e formou-se na Universidade Federal do Paraná. No Rio de Janeiro, iniciou a carreira de publicitário e em Curitiba, a de jornalista, trabalhando como repórter da Rádio Clube Paranaense, assim como cronista de jornais e revistas nas empresas Correio de Notícias, Folha de Londrina, Panorama, Quem, Atenção, Paraná & Cia., Ideias e Gazeta do Povo. Também atuou como produtor e comentarista em emissoras de rádio e TV, principalmente em programas esportivos.
Na vida pública, exerceu cargos na Fundação Cultural de Curitiba, na Fundação Teatro Guaíra e no Museu de Arte Contemporânea do Paraná, além de vice-presidente da Associação Comercial do Paraná e membro do Instituto dos Advogados do Paraná, entre outras instituições. Foi presidente do Paraná Clube no biênio 1996/98.
Foi professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e de outras instituições de ensino e co-roteirista do longa-metragem Heróis da Liberdade, filme baseado em seu livro homônimo, e roteirista dos filmes "Sumiços Delirantes" e "Sobre Touros e Homens".
Em colaboração com Túlio Vargas e Valério Hoerner Júnior, foi responsável pela edição do volume biográfico dos membros da Academia Paranaense de Letras. Seus textos literários foram publicados em revistas como O Pasquim, "Raposa", "Nicolau", "Rascunho", "Cornélio" e no "Jornal de Humor" e Diário do Paraná, entre outros.
Em 2005 foi eleito para Academia Paranaense de Letras.
Autor dos seguintes livros:
Cidades e Chuteiras (1987), O Livro do Truco (1996), Heróis da Liberdade (1999), Quando o Futebol Andava de Trem (2002), Onde me Doem os Ossos (2003), O Ponta Perna de Pau (2005), A Camisa de Ouro (2006), O Caçador de Moscas (2007), O Bogart Curitibano (2008).
Fontes:
Luís Bueno (org). O tempo visto daqui : 85 cronistas paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura, 2018.
Wikipedia
Luís Bueno (org). O tempo visto daqui : 85 cronistas paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura, 2018.
Wikipedia
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