quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Therezinha Dieguez Brisolla (Trov’ Humor) 41

 

José Feldman (A Arte da Filinha: Uma Comédia da Vida Cotidiana)

Ah, as filas! Essas longas serpentes de impaciência que se estendem como uma obra de arte moderna, sempre nos convidando a uma reflexão profunda sobre a condição humana. Se você pensa que a vida é feita de momentos gloriosos, experimente passar um dia inteiro na fila de um supermercado. Aí sim você vai entender o verdadeiro significado de “esperar”.

O supermercado, esse templo da alimentação onde, em teoria, você vai apenas comprar um pão e um litro de leite. Mas, ao entrar, você se depara com um labirinto de prateleiras e, claro, a fila do caixa. Você observa a cena: uma senhora, que parece ter saído de um filme de ação, está examinando cada item no seu carrinho como se fosse uma missão secreta. E ali está você, atrás dela, questionando suas escolhas: “Por que alguém precisaria de 17 pacotes de bolacha de água e sal?”

Enquanto isso, a jovem à sua frente está tentando pagar com um cartão que claramente já passou pela guerra. O caixa, que é um ser humano como você, tenta, com todas as suas forças, persuadir a máquina a aceitar aquele pedaço de plástico. E você, que estava apenas querendo um pão, agora se encontra em um drama digno de Shakespeare.

Saindo do supermercado, você pensa: “Pelo menos no banco as filas são mais organizadas.” Ah, ingênuo! A fila do banco é como um jogo de xadrez. Você se posiciona cuidadosamente, mas logo percebe que está cercado. À sua esquerda, um homem que parece ter uma consulta de emergência com o gerente, e à sua direita, uma mãe tentando explicar a importância da conta bancária para sua filha de cinco anos. “Não, querida, você não pode comprar um unicórnio com moedinhas.” O diálogo se arrasta, e você, que só queria sacar dinheiro, começa a imaginar a vida em uma ilha deserta.

E, claro, quando finalmente chega sua vez, o caixa está fora do ar. “Desculpe, o sistema está lento hoje.” Ah, o sistema! Essa entidade mística que nunca parece funcionar quando você mais precisa. Agora você se pergunta se é mais fácil sacar dinheiro de um caixa eletrônico ou se deve arriscar mais uma fila.

Ah, os caixas eletrônicos, essas máquinas que prometem a liberdade financeira, mas que muitas vezes se tornam um verdadeiro campo de batalha. Você se aproxima do caixa, triunfante, e aperta os botões como se estivesse jogando um videogame. Mas, claro, a máquina não reconhece seu cartão. “Cartão não identificado.” Que mistério! Você olha ao redor, esperando que alguém aponte a solução mágica, mas todos estão tão absortos em seus próprios dramas que você se sente como um personagem secundário em um filme sem roteiro.

E quando finalmente consegue fazer a transação, você se depara com a tela que pergunta: “Deseja realizar outra transação?” Você hesita, pensando: “Desejo, sim, mas não desejo ficar aqui mais um segundo.”

Depois do drama do banco e do caixa eletrônico, você decide que é hora de ir para casa. Mas, claro, o destino reserva mais uma fila para você: a do estacionamento. Você roda em círculos, como um hamster em uma roda, à procura de uma vaga. E quando finalmente encontra uma, tem que lidar com a arte de estacionar. O carro da frente parece ter sido estacionado por um artista surrealista, e você se pergunta se realmente precisa de uma licença de piloto para isso.

Uma vez estacionado, você se dirige à saída, apenas para se deparar com uma fila de pessoas tentando pagar seus tickets. O caixa, que parece ter saído de um filme de terror, tenta processar os pagamentos, mas a máquina de cartão está mais lenta que um caracol em um dia preguiçoso.

E assim, ao final de um dia repleto de filas, você volta para casa exausto, mas também um pouco mais feliz. Porque, no fundo, as filas são um microcosmo da vida. Elas nos ensinam paciência, resiliência e, claro, a arte de fazer amigos. Você pode até sair de uma fila com um novo conhecido, alguém que também estava preso no labirinto do supermercado ou tentando desvendar os mistérios do caixa eletrônico.

Portanto, da próxima vez que você se encontrar em uma fila, lembre-se: não é apenas uma espera. É uma oportunidade de rir, refletir e, quem sabe, fazer uma nova amizade. Afinal, o verdadeiro tesouro da vida pode muito bem estar escondido entre os carrinhos de compras e as máquinas de cartão. 

E se não estiver, pelo menos você terá uma boa história para contar!

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

Vereda da Poesia = 135=


Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba/PR

Letras

Há letras
que dizem mais
que mil
palavras:
dia D,
X da questão,
ponto G,
pingo no I, 
plano B,
hora H,
mas é o T
forma de cruz
que lembra
que somos
mortais.
= = = = = = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

A queimada é um jogo insano...
A floresta pega fogo...
E, no fim, o ser humano
é o perdedor deste jogo!
= = = = = = 

Poema de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Webdesigner

Para o carinho de todas as artistas que fazem da
formatação a melhor e mais sublime maneira de
celebração vida, da arte e da poesia.

Em cada verso, eu me solto e transponho
Cada limite do meu próprio pensamento,
Mas se diluis a tua tinta no meu sonho,
O que eu componho. ganha forma e movimento.

É no desenho que tu fazes, que iluminas
O meu poema, dando alma ao que eu sinto
E é na luz das minhas límpidas retinas
Que nasce a cor do sentimento que te pinto.

Tu crias vida, onde a vida é restrita
À solidão de um coração solto na tela;
A tua página é mar... meu verso é vela
Riscando a tela onde a visão é mais bonita.

Possibilitas que as tintas da pintura
Escorram leves sob os olhos do leitor
Que se enternece... quando vê, com mais ternura,
Toda ternura do poeta e do pintor.

Deus dá o dom que tu transformas em talento,
Em dada página feliz, quando ele cria
Na tua alma, teu mais puro sentimento,
Emoldurando a cor da minha poesia.
= = = = = = 

Trova Premiada em Irati/PR, 2023
LUCRÉCIA WELTER 
Toledo / PR

Anel de lata e cascalho
foi o presente do amado.
– É isso, meu bem, que valho?
– Não! Te dei o anel trocado.
= = = = = = 

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

O portão e o vento

 Num piscar de olhos
Distancia-se o pensamento,
Busco encontrar-te
Em cada folha do Plátano
Das minhas telas
E pétalas de rosa que guardei...
Imagino que esteja próximo à esquina
Vindo em minha direção,
Ah, meu Amor lindo...
Quase sinto, o calor dos teu abraço,
Mas, num piscar de olhos
Aos meus sonhos retorna
E o portão abre-se com o vento...
= = = = = = 

Trova Popular

Coração que a dois ama,
e que depois quer agradar,
não ande enganando os outros,
veja com quem quer ficar.
= = = = = = 

Soneto de
RAUL DE LEONI
Petrópolis/RJ, 1895-1926

Felicidade (II)

Basta saberes que és feliz, e então
Já o serás na verdade muito menos:
Na árvore amarga da Meditação,
A sombra é triste e os frutos têm venenos.

Se és feliz e o não sabes, tens na mão
O maior bem entre os mais bens terrenos
E chegaste à suprema aspiração,
Que deslumbra os filósofos serenos.

Felicidade... Sombra que só vejo,
Longe do Pensamento e do Desejo,
Surdinando harmonias e sorrindo,

Nessa tranquilidade distraída,
Que as almas simples sentem pela Vida,
Sem mesmo perceber que estão sentindo…
= = = = = = 

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Atrás das outras não perca 
o seu juízo... cuidado! 
Boi que muito pula cerca 
volta um dia desfalcado...
= = = = = = 

Soneto de
DOMITILLA BORGES BELTRAME
São Paulo/SP

Meu sonho

Partiste, meu filho, num belo alazão
deixando-me a vida, tristonha em pedaços,
calando os meus versos e minha canção,
deixando vazios e frios meus braços...

Agora eu te busco no céu e no chão
e, em sonho parece que escuto teus passos,
e assim a saudade se faz oração
seguindo comigo, juntando cansaços...

E em meu dia a dia, vazio e tristonho,
de estradas desertas e de sol sem brilho
eu vou caminhando, atrás do meu sonho...

E, à noite, descubro, quando posso vê-las,
que tu não morreste, partiste meu filho
e, lá no infinito, cavalgas estrelas!...
= = = = = = 

Trova Humorística de
JESSÉ NASCIMENTO
Angra dos Reis/RJ

Faz seu dever sem alento:
- O que é tabu? Não sei nada.
E o pai já bem sonolento:
- Tabu vem de tabuada.
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Mistério

A nossa vida em si já é um bom mistério...
Mas até onde meu juízo alcança,
Eu vejo que o sofrer, se é muito sério,
Aumenta sempre em nós a esperança!

Foi Deus que quis assim; não sem critério,
Mas só visando a nossa segurança...
Porque o Criador, mais que cautério,
Aspira a nossa bem-aventurança!

A dor tem sempre a sua utilidade,
Quer para alertar de um mal maior,
Ou tendo em vista a nossa santidade.

Por certo o sofrimento foi criado
Só pra que a gente possa ser melhor
E chegue, assim, ao céu, tão almejado!
= = = = = = 

Trova de
CLÁUDIO DE CÁPUA
São Paulo/SP, 1945 – 2021, Santos/SP

Certo bispo ouve uma “história”
de um padre chamado Hilário
e grava, assim, na memória
um bom “Conto do Vigário”.
= = = = = = 

Poema de
PAULO VINHEIRO
(Paulo Vieira Pinheiro)
Monteiro Lobato/SP

Vinhas

Lá acima de aquele monte brilha
Ouro que cristalina água espalha
Sem mata, sem sentido, esconde
Tudo que os meus olhos procuram

Estronda todo o sabor em música
Oculto
Perfeito
Esquálido e escuro

Tramo tudo que o amor trama
Esbarro em tudo que te ama
Divido meus olhos com os teus
E parto de longe a buscar-te aqui
= = = = = = 

Trova Funerária Cigana

Quem chorará no sepulcro
de quem a vida foi só?
De quem tantas vezes triste
de si mesmo teve dó?
= = = = = = 

Poemeto de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

Memórias da Saudade

Nas pálpebras pesadas
o vento pousou...
Em folhagens abafadas
sentiu o peso, sussurrou
herege, o pranto secou.
Lápides esquecidas
no amarelado passado
sentem o abafo, ressequidas.
Ouço um apelo cansado...
Um elo pagão, embaçado.
É só um velho balanço
levado pela brisa fria.
Em um breve relanço
aquela que outrora sofria
veste no espelho sua alforria.
= = = = = = 

Trova de 
SILMAR BOHRER
Caçador/SC

As nuvens escuras, densas, 
nas alturas infinitas, 
são as enormes presenças 
nestas tardinhas bonitas .
= = = = = = 

Poema de 
VITÓRIA VITTI
Rio Claro/SP

Onde o amor morou

O amor chegou meio sem jeito
Tímido, acanhado
Fazendo mil juras de fidelidade
Se aninhou onde eu menos esperava
De mansinho, com carinho
E passou a aquecer meu coração
Com ele, esqueci de tudo
Até mesmo quem eu era
Foram momentos incríveis
Insaciáveis
Inesquecíveis
Ele fazia meu mundo ficar perfeito
Tudo era colorido, do seu jeito
Até que um dia
Ele me trouxe a notícia
De que precisava deixar sua morada
Onde eu já estava acostumada
Era a minha fonte de felicidade
Meu alimento, minha vontade
Partiu sem aceitar minhas súplicas
Nem olhou pra trás
Deixou plantado no lugar
Um sentimento de impotência
O amor foi embora
E nem mesmo eu consegui fazê-lo ficar...
= = = = = = 

Trova de
GUIDA LINHARES
Santos/SP

Da palavra costurada
com a linha da emoção,
o poeta na jornada,
liberta o seu coração!
= = = = = = 

Soneto do
Príncipe dos Poetas Piracicabanos
LINO VITTI
Piracicaba/SP, 1920 – 2016

Derrubada onomatopaica

Atroa o bate-bate retumbante
dos mordentes machados na madeira.
E nessa luta trágica e gigante
rolam troncos em longa choradeira.

Aqui um jequitibá soberbo! Adiante
uma velha e frondosa caneleira,
um cedro, uma peroba farfalhante,
toda a legião da flora brasileira.

O machado decepa inexorável,
nada lhe escapa à cólera maldita,
nada o detém na sanha abominável.

E há em cada tombo lástimas soturnas,
e a cada golpe toda a selva grita
pelo eco das quebradas e das furnas.
= = = = = = 

Poetrix de
DALTON LUIZ GANDIN
São José dos Pinhais/PR

Arte

Meu papel foi natura.
Agora,
eu imprimo cultura.
= = = = = = 

Poema de
ANTERO KALIK
Paris/França

Um gesto previsto apagou
o riso do dia.
Trouxe o céu,
de volta o riso
despretensioso, lunar,
o brilho ofuscou a dor
e trouxe à tona
a beleza e hálito fresco
do silêncio noturno
= = = = = = 

Trova de
MARIA LUIZA WALENDOWSKY
Brusque/SC

Iluminando meu ser
o teu sorriso comprova,
que a cada alvo amanhecer
o meu amor se renova.
= = = = = = 

Poema de
CRIS COUTO
São Bernardo do Campo/SP

Abrigo

Porque te gosto
Te quero comigo
E na tempestade
Ser seu abrigo
Porque te gosto
Te quero ter
E da tempestade
Te proteger
Quero você no meu colo
Vem descansar
E quero ser seu abrigo
Vem para ficar
Te quero dar
Todo amor e carinho
E em meus braços
Te envolver
Vem transformar
Essa água em vinho
E entre abraços
Nos aquecer
= = = = = = 

Trova da
Princesa dos Trovadores
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

A sós, na penumbra doce...
Neste agora sem depois,
é como se o mundo fosse
um mundo só de nós dois!...
= = = = = = 

Hino de 
Tremembé/SP

O belo por do sol da Mantiqueira
Manoel Costa Cabral se encantou
Da mata imaginou uma bandeira
E a nossa Tremembé ele fundou.

Ó Tremembé dos trapistas
Tua história nos conduz
A um passado de conquistas
Terra do Senhor Bom Jesus.

Teus campos se cobriram de dourado
Nas mãos que semearam arrozais
A ordem dos trapistas do passado
Semente que não morrerá jamais.

Ó Tremembé dos trapistas
Tua história nos conduz
A um passado de conquistas
Terra do Senhor Bom Jesus.

O nobre rio tens beijando aos pés
Murmurando feito mil madrigais
Em tributo a ti, minha Tremembé
Passarinhos gorjeiam em corais.

Ó Tremembé dos trapistas
Tua história nos conduz
A um passado de conquistas
Terra do Senhor Bom Jesus.

Tuas igrejas de sinos tangentes
De sonoros chamamentos de paz
O labor com a fé de tua gente
Te engrandece e muito orgulho nos traz.

Ó Tremembé dos trapistas
Tua história nos conduz
A um passado de conquistas
Terra do Senhor Bom Jesus.

Ó Tremembé dos trapistas
Tua história nos conduz
A um passado de conquistas
Terra do Senhor Bom Jesus.
A um passado de conquistas
Terra do Senhor Bom Jesus.
= = = = = = 

Trova de 
ADILSON MAIA
Niterói/RJ

É no livro que se alcança
amais rica das escolhas,
pela futura esperança
que emana de suas folhas!
= = = = = = 

Poema de 
GISELDA CAMILO
Olinda/PE

DesEsperança

Quando tento alcançar as estrelas
E elas ficam distantes, distantes...
Quando tento enxergar delas o brilho
E elas ficam opacas, opacas, opacas...
Quando corro atrás da esperança
E ela se afasta, se afasta, se afasta...
Quando, das flores, tento sentir o perfume
E elas permanecem fechadas...
Quando quero o sorriso no rosto estampar
E ele não vem, não vem, não vem...
É quando mais preciso de você
E você por perto não está
A distância levou..
E levou o brilho das estrelas
Hoje é dia de estrela sem brilho
De flor sem perfume
De (des)esperança
Queria tanto que não fosse assim.
= = = = = = 

Trova de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Buscando nosso poente,
vamos nós dois bem juntinhos
sem deixar que envolva a gente
a solidão dos caminhos.
= = = = = = 

Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

A corte do leão

Um dia, a leonina majestade,
Forte no dente e unha,
Quis saber com verdade
De que povos seu reino se compunha;
E convocou por circular firmada
Com o selo real
A vária bicharada.
Dizia o papelucho, por sinal,
Que o rei daria audiência,
E que esta, por maior magnificência,
Seria aberta ao grito
Do macaco em caretas mais perito.
O monarca entendeu,
Para ostentar grandeza entre os vassalos,
Ao seu real palácio convidá-los...
Mas que palácio o seu!

Depósito de restos da matança,
De exalações ingratas
Que obrigam o urso, mal na entrada avança,
A tapar os narizes com as patas.
O rei, vendo isto, pula
E da vida e do enjoo lhe dá cabo.
A sacudir o rabo,
O mono aplaude a ação, e em prosa chula
Tece grande louvor
À cólera dum rei tão justiceiro,
E diz que não há flor
Que vença do antro o delicado cheiro.
Sua lisonja tola
Teve por prémio a morte.
Este senhor, a quem não lhe ia à bola,
Não sabia ensinar por outra sorte.

Estava a raposa perto,
E o leão lhe pergunta em sério tom:
«Com franqueza, este cheiro é mau ou bom?»
Responde o bicho esperto:
«Pronto o vosso desejo aqui cumprirá,
Se um defluxo que tenho o consentirá.»

Os contos são úteis, de ensino são ricos:
Se acaso na corte puderes entrar,
Faz sempre o teu jogo com pau de dois bicos,
Terás a certeza de ali agradar.

Flavius Avianus (O asno em pele de leão)

Certa feita, um asno achou uma pele de leão. Cuidou, pois, de cobrir-se, como podia, com a pele, embora esta pouco lhe conviesse. E, como se viu vestido com a roupa de leão honrado, exibindo uma valentia muito superior à que lhe legara a Natureza, aterrorizava todos os outros animais.

Com desmedida presunção, pisoteava o pasto que partilhava com as ovelhas e os cordeiros e, com semelhante empáfia, apavorava dóceis animais silvestres, como os cervos e as lebres nas matas.

Todavia, quando assim pomposamente desfilava no bosque, deparou-se com o seu dono — o aldeão de quem se havia desgarrado — e que, por acaso, passava por aquelas matas. 

Achando-o assim vestido com uma pele de leão, o aldeão agarrou-o pelas longas orelhas — que haviam ficado descobertas — e, dando-lhe cruéis vergastadas, arrojou-lhe fora a vestimenta enganosa.

— Aos que não te conhecem, tu provocas, facilmente, pavor e espanto; mas aos que sabem quem verdadeiramente és, já não podes apavorar: sempre foste e serás o que és: um asno. E enverga, apenas, as roupas que o teu pai natural te legou: não cobices as honras alheias — que não te pertencem — para que não sejas menosprezado quando delas fores desnudado! A quem pensavas indevidamente honrar?

Fontes: Flavius Avianus. Fábulas. século V. versão em português de Paulo Soriano, a partir de tradução anônima espanhola de 1489.
Imagem obtida em https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=bXMpzUTbs-M

Recordando Velhas Canções (Duas contas)

(samba-canção, 1955)


Compositor: Garoto

Teus olhos
São duas contas pequeninas
Qual duas pedras preciosas
Que brilham mais que o luar

São eles
Guias do meu caminho escuro
Cheio de desilusão
E dor

Quisera que eles soubessem
O que representam pra mim
Fazendo que eu prossiga feliz
Ai amor
A luz dos teus olhos
 
A Luz dos Olhos em 'Duas Contas'
A música 'Duas Contas' é uma bela e poética declaração de amor, onde o artista utiliza metáforas para expressar a importância dos olhos da pessoa amada em sua vida. Os olhos são comparados a 'duas contas pequeninas' e 'pedras preciosas', destacando seu valor e brilho. Essa comparação não só exalta a beleza física dos olhos, mas também sugere que eles possuem um valor inestimável para o eu lírico.

Os olhos da pessoa amada são descritos como guias no 'caminho escuro' do eu lírico, que está cheio de desilusão e dor. Essa metáfora indica que, apesar das dificuldades e tristezas enfrentadas, a presença e o olhar da pessoa amada trazem luz e direção, proporcionando esperança e felicidade. A música, portanto, fala sobre a capacidade do amor de transformar e iluminar a vida, mesmo nos momentos mais sombrios.

Utiliza uma linguagem simples, mas profundamente emotiva, para transmitir a mensagem de 'Duas Contas'. A repetição da ideia de que os olhos da pessoa amada são uma fonte de luz e felicidade reforça a centralidade desse sentimento na vida do eu lírico. A canção é uma celebração do amor e da importância de pequenos gestos e detalhes, como um olhar, que podem ter um impacto profundo e duradouro.
Fonte: https://www.letras.mus.br/toquinho/1206287/

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 61: O fardo


 

José Feldman (Pafúncio e o Velório do Cantor)

 
Era uma manhã nublada quando Pafúncio, o jornalista da revista de fofocas, recebeu uma tarefa que o deixou em estado de choque: cobrir o velório de um famoso cantor pop que havia falecido. O editor da revista, em um momento de pura ousadia, achou que Pafúncio seria a pessoa perfeita para trazer um “toque especial” ao evento.

Com um terno que parecia ter sido herdado de um tio distante e uma gravata de estampas questionáveis, Pafúncio chegou ao local do velório. A atmosfera estava pesada, mas ele, em sua natureza despreocupada, acreditava que poderia trazer alguma leveza ao ambiente.

Assim que entrou na sala, Pafúncio se deparou com uma multidão de fãs chorando e uma série de flores e coroas espalhadas por todo o espaço. Ele se aproximou do caixão, onde o cantor estava descansando em paz, e começou a se preparar para tirar algumas fotos. “Isso vai render uma ótima matéria!” pensou, enquanto ajeitava a câmera.

No entanto, sua primeira trapalhada ocorreu quando, ao tentar ajustar a lente, ele acidentalmente ativou o flash. O estalo foi tão alto que muitos dos presentes se viraram, surpresos. 

“Desculpe, gente! Só capturando a luz do além!” Pafúncio gritou, fazendo alguns fãs rirem nervosamente.

Decidido a fazer uma reportagem que seria lembrada, ele começou a entrevistar os fãs que estavam ali. 

“O que você mais gostava no cantor?” perguntou a uma fã, que, em meio às lágrimas, respondeu: “A voz dele era como um anjo!”

“E como você acha que ele se sentiria se soubesse que você está aqui?” Pafúncio continuou, sem perceber que estava sendo totalmente insensível.

“Ele estaria feliz! Mas, por favor, é um velório…” a fã tentou responder, mas Pafúncio já estava distraído, tentando captar a emoção dela com a câmera.

Em sua busca por boas histórias, Pafúncio se aproximou de um grupo de músicos que estavam lamentando a perda do amigo. 

“Oi, posso perguntar como é ser parte da banda do ‘Cantor que Não Deveria Estar Morto’?” ele disse, sem pensar. 

Os músicos o olharam com uma mistura de indignação e surpresa.

“Ele não está ‘morto’! Ele só está descansando!” um deles gritou, enquanto Pafúncio tentava se explicar. “Eu quis dizer… é uma expressão! Como ‘partir para outra!’” ele balbuciou, mas a situação só piorou.

Pafúncio então decidiu que precisava fazer algo grandioso para a reportagem. Ele se lembrou de que o cantor havia escrito uma famosa balada sobre amor e, em um momento de pura inspiração, decidiu que seria uma boa ideia cantar um trecho da música no velório. Subindo em uma cadeira, ele começou a entoar a canção com toda a sua alma, mas sua voz era tão desafinada que os presentes começaram a olhar para ele com expressões de horror.

“Pafúncio, por favor, desça daí!” gritou um dos organizadores do velório, mas ele estava tão envolvido em sua performance que ignorou os avisos.

Depois de alguns versos desastrosos, ele perdeu o equilíbrio e caiu, derrubando uma mesa cheia de flores. As flores voaram pelo ar, caindo sobre o caixão e as pessoas ao redor. 

“Desculpe! Isso foi um… um tributo floral!” ele gritou, enquanto tentava se levantar, mas as pessoas já estavam em estado de choque.

Para piorar a situação, Pafúncio, tentando se desculpar, pegou um copo d'água para se refrescar e, sem querer, jogou o conteúdo todo na direção do caixão. O líquido escorreu pelo lado e atingiu a roupa do cantor. 

“Isso é um sinal! Ele está se mexendo!” alguém gritou, e as pessoas começaram a entrar em pânico.

Quando a situação parecia mais insustentável, algo realmente surpreendente aconteceu. Com um estalo, o caixão se abriu lentamente e, para espanto de todos, o cantor começou a se levantar. Com um olhar irritado, ele se virou para Pafúncio, que estava paralisado de medo.

“Pafúncio! Por favor, me deixe morrer em paz!” exclamou o cantor, claramente frustrado com toda a confusão. 

Ele olhou para a multidão, que estava em estado de choque, e disse: “Eu só queria um velório tranquilo, e você transformou isso em um show!”

A sala ficou em silêncio absoluto, e Pafúncio, com o rosto vermelho de vergonha, finalmente encontrou sua voz. “Desculpe! Eu só queria ajudar!” ele gaguejou.

O cantor, ainda visivelmente irritado, balançou a cabeça e se deixou cair de volta no caixão. “Você realmente não deveria estar aqui, Pafúncio,” ele disse, enquanto a tampa do caixão se fechava lentamente.

Com a tensão no ar, as pessoas começaram a rir nervosamente, e Pafúncio finalmente percebeu que havia se tornado o centro das atenções, mas não da maneira que esperava. 

“Acho que sou a última pessoa que deveria fazer reportagens sobre eventos tristes,” ele murmurou, enquanto começava a se afastar do caixão.

Saindo do velório, Pafúncio se sentiu aliviado, mas também um pouco triste. “O que será que vou escrever sobre isso?” ele pensou, enquanto se afastava, já pensando na manchete: “O cantor que não queria ser perturbado e o jornalista trapalhão que não sabia quando parar.”

E assim, mais uma vez, Pafúncio provou que, em sua vida cheia de desastres, sempre havia espaço para uma boa história — mesmo que essa história envolvesse um cantor ressuscitando para pedir paz. 

Fonte: José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.