sábado, 19 de setembro de 2009

Trova LV

Pedro Emílio de Almeida e Silva (Madrugada)


Dois cigarros acesos no silêncio da madrugada:
- o meu e o teu cigarro.
Uma tragada um beijo, um beijo e uma tragada...
Teu braço é o meu travesseiro quente e macio:
- dois pássaros que a tempestade da noite separa
E se juntam em manhã dourada de estio.

Preciso partir! Antes que eu diga mais nada
Prendes-me nos braços e entre beijos e abraços
Pede-me para ficar.

E, num delírio louco de amor, começas a falar:
- Não, não vá embora! Deixa que o sol desponte
E os pássaros comecem a cantar lá fora.
Deixa que a névoa adormecida no colo azul
Das montanhas distantes desapareça
Ao toque sutil da aurora.

- Que será do resto da manhã se te fores?
Não vês que ficarei sozinha morrendo de amores?
Esquece a vida, querido, e me entregue a luz do teu olhar
Num sonho eterno e perdido...

Somente, agora, o sol debruça em nossa janela
Com ar de malícia, vem nos dar bom dia
Louvar nosso amor nessa manhã tão bela:
- Esquece a vida, querido, e me entregue a luz do teu olhar
Num sonho eterno e perdido...
- O que será do resto do dia se te fores?
Não vês que ficarei sozinha morrendo de amores?
Esquece a vida, querido, e me entregue a luz do teu olhar
Num sonho eterno e perdido...

- O que será do resto da tarde se te fores?
Não vês que ficarei sozinha morrendo de amores?
Esquece a vida, querido, e me entregue a luz do teu olhar
Num sonho eterno e perdido...

- Deixe que a tarde caia serena a encher de sombras
e odores os caminhos por onde há de passar sozinha:
- Esquece a vida, querido, e me entregue a luz do teu olhar
Num sonho eterno e perdido...
Somente agora a Lua vem nascer
Como um pintor em fina tela
Imagens vem tecendo...

Dois cigarros acesos no silêncio da madrugada:
- o meu e o teu cigarro...
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Sílvia Araújo Motta (Trovas: Sou Guerreira)


Se não sou mulher rendeira,
sou eleita mulher forte,
sempre chamada guerreira
que luta para ter sorte.

Desde os seis anos, menina,
Belovalense, mineira,
nos desafios da sina,
venço na linha primeira.

Não tenho medo de nada,
nem à noite, nem de dia,
trago uma garra danada,
busco o brinde da alegria.

Santa Guerreira não fui,
pois conheço meu pecado,
meu pensamento polui,
só quando fico ao teu lado.

Fico a pensar em querer
teu amasso, beijo, abraço...
porém não deves saber
deste segredo que faço.

Eu sou guerreira do amor
quando me rendo aos teus laços,
venço a batalha da dor,
com o remédio dos teus braços.

Sou guerreira da alegria
que apresenta seus encantos...
nas notas da sinfonia
já não desafinam prantos.

Sou guerreira, sou Rainha
do meu lar que tanto amo,
sou mãe e tia Silvinha;
do passado não reclamo.

Sou guerreira, sou escrava
do achego do meu bem,
mulher ciumenta, brava
que defende o amor também.

Sou guerreira e sou amante
que sabe bem o que quer...
Valorizo cada instante
com carinhos de mulher.

Sou guerreira, mas minha arma
é carregada de amor,
minha luta não alarma:
-Encontro Paz no Senhor.

Sou guerreira, sou amada
por tanta gente real,
até recebi cantada
na mensagem virtual.

Sou guerreira, rumo o Norte,
faça o vento que quiser,
terei sempre o pulso forte
quando o meu amor vier.

Sou guerreira mãe de três
rapazes, prontos à vida...
Entrego-os ao Deus que os fez
junto à porta de saída.

Sou uma guerreira estudante
vou aos livros todos dia,
só não quero ser “pedante”
pois Sócrates é meu guia.

Sou guerreira que conduz
a espada de Cristo-Rei,
pela Fé, acendo a luz
e não esqueço o que sei.

Sou guerreira contra o mal,
sei acalmar sofrimento,
vou à luta contra o tal
do preconceito, em lamento.

Sou guerreira consciente
para vencer meu defeito,
procuro ser paciente:
-“O ser humano é imperfeito.”

Sou guerreira de verdade,
quando estou a navegar
enfrento a dificuldade
na calmaria do mar.

Sou uma guerreira felina
se precisar da defesa
pra tentar mudar a sina
tenho garras, com certeza.

Sou guerreira da vontade
para atingir o ideal,
não desisto, na verdade,
torno meu sonho real.

Sou guerreira, sem tombar,
diante das tribulações,
procuro Deus...sei orar,
evito lamentações.

Sou guerreira, e se cair,
eu tentarei levantar...
Se acaso, não conseguir,
minha alma? Sei entregar.

Sou guerreira, por opção,
quero vencer pelo amor,
os braços, não cruzo, não,
por isso, não ligo à dor.

Eu tenho a Alma guerreira!
Os céus me abrem caminho,
“quem busca a glória altaneira
quer chegar ao fim da linha.”

Sou uma guerreira valente,
Carrego amor e leladade,
a espada com sangue quente
esfria qualquer maldade.

Sou guerreira, com razão
é o amor que me conduz,
perdôo qualquer decepção
porque Cristo dá-me luz.

Sou guerreira e tenho um sonho:
-Quero lutar até o fundo...
pela Paz, eu me proponho;
sou uma POETA del MUNDO.

Sou guerreira e com ternura
com o sabre da Fé que rege
na barreira da bravura
tenho o “poder” que elege.

Sou guerreira na área urbana,
sentinela audaciosa,
contra a cobiça que emana
a vida dispendiosa.

Sou guerreira, com coragem,
útil à sobrevivência,
já recebi a homenagem
pela minha experiência.

Sou guerreira inteligente
protetora da cultura,
das Artes, em toda mente,
que muita doença cura.

Sou guerreira da Esperança
na lição da natureza,
que floresce na lembrança,
da semente, com certeza.

Sou guerreira, sou vulcão,
que explode chamas de amor,
brilhante, na erupção,
ao magma, dou meu sabor.

Da mágoa, fui prisioneira,
mas quis minha liberdade,
por isso, hoje, sou guerreira,
por perdão e dignidade.

Sou guerreira da justiça,
tenho ferro em minha mão,
na balança da injustiça
ponho o prato do perdão.

Sou guerreira permanente,
contra a fome mundial,
violência inconsequente
torna a dor universal.

Sou guerreira da Paixão
que encanta qualquer amante,
luto contra a solidão,
mas pelo amor triunfante.

Sou mulher, forte guerreira
que não tem medo de nada,
Belovalense, mineira,
sinto-me perfeitamente, amada,

Sou guerreira e pelo amor
luto em qualquer estação,
no outono ou inverno da dor,
na primavera ou verão.

Sou guerreira e dou a volta
por cima ou passo por baixo...
só não aceito a revolta,
do rebelde contra-baixo.

Reconheço ser guerreira,
“osso duro de roer”
sei que não sou feiticeira,
“Só faço o que dá prazer.”

Sou guerreira diferente,
sei lutar e persistir,
sou madeira, sou valente,
sem depressão, sei reagir.

Sou guerreira e quem diria:
-Quero ser frágil em teus braços,
ser feliz da noite ao dia
e ter teus beijos e amassos.

Sou guerreira que acredita
até o fim de uma jornada...
Tenho a esperança bendita
que põe Fé, na caminhada.
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Marcos Martins (A Morte do Jumento)


Sábado, dia de feira-livre em Nova Canaã, interior da Bahia. A cidade brandia no movimento efêmero de mascates, que se deslocavam de diversas regiões do Município para vender a sua mercadoria no largo público. Às quatro horas da madrugada já se podia ouvir o prantear mórbido das rodas de carroças levando produtos trazidos da zona rural, que seriam ali comercializados.

Ao alvorecer, cavalos e burros desfilavam pomposamente pela cidade, transportando gente e levando as colheitas feitas no dia anterior pelos produtores rurais. Como esse comércio era feito pelos próprios rurícolas, quase não se via ali atravessadores, o que tornava o preço bastante atrativo.

Naquele local se misturavam as mais diversas gentes de diferentes regiões e classes sociais: Negros, brancos, mestiços, ricos, pobres, políticos, estudantes, intelectuais, analfabetos... Enfim, uma infinidade de pessoas que, em tempos de feira, se faziam semelhantes, trocavam idéias, contavam estórias, vendiam, compravam, permutavam, etc.

Àquela época, meado da oitava década do século XX, ainda era comum a prática do escambo. Muitos comerciantes aceitavam parte do pagamento das compras feitas pelos moradores da zona rural em troca de mercadorias produzidas pelos seus assíduos fregueses – requeijão, manteiga, café, feijão, ovos, farinha...

Dentre as muitas faces que por ali circulavam, as negras irmãs “angolanas” embelezavam a feira com a sua graça magnificente. Altas e esbeltas, estavam sempre elegantes e perfumadas, agasalhadas com vestidos estampados em cores gritantes e pó de arroz nos rostos, destacando-se dentre as mulheres ali presentes.

Naquela oportunidade também era possível ver homens e mulheres simples e trabalhadores diversos, que costumeiramente preenchiam aquele cenário, abrilhantando ainda mais o espetáculo do agitado dia-de-sábado, quer seja vendendo, quer seja comprando, ou somente marcando presença na esplanada.

Os vendedores de pipoca, quebra-queixo, doces, etc., eram desses pequenos, mas não desapercebidos comerciantes, que, de forma estratégica, estacionavam o seu tabuleiro ou carrinho numa esquina qualquer de acesso à praça da feira ou em meio à multidão, atraindo a sua fiel clientela, formada principalmente de jovens e crianças.

Havia também diversos outros comerciantes mais bem-posicionados, que eram donos de entrepostos comerciais ali no centro da cidade, como um italiano radicado no Brasil, dono de uma mercearia local, que chamava a atenção pela posição em que usava a suas calças, sempre esticada acima do umbigo.

Não podemos nos esquecer dos bares, que eram freqüentados pelos beberrões e jogadores de bilhar, onde cristãos, mulheres descentes e crianças eram proibidos de entrar. Salões de beleza e lojas de confecções também atraiam um grande número de clientes, aquecendo ainda mais o pequeno comércio local.

Convém não deslembrar igualmente dos pedintes, que buscavam alguma dádiva no meio do tumultuoso agrupamento da feira, acrescentando ainda mais rumor ao alarido maquinal produzido pela massa concentrada.

Dada a presença de um grande número de pessoas reunidas em um espaço tão curto, era muito comum surgirem brigas, entre socos e xingamentos, que lançavam tanto mais anarquia àquela confusão oficializada. As crianças tratavam logo de anunciar o arranca-rabo:

- “Ói” briga na rua da formiga! “Ói” rolo na rua do besouro!

A seguir, um círculo de curiosos se formava em torno dos desordeiros para assistir à rinha (pois chamavam essas chinfrinadas de “brigas de galos”). Alguns se aproveitavam da algazarra para tentar a sorte em apostas sobre quem sairia vencedor, principalmente quando a luta livre se dava entre garotos.

Os carros davam um espetáculo à parte: Pick-ups, caminhões, ônibus e carros de passeio desfilavam pelas principais ruas da cidade, trazendo e levando pessoas e alçando muita poeira. Para a zona rural, o veículo mais utilizado no transporte de pessoas e mercadorias era o caminhão do leite, em que os “passageiros” viajavam sentados sobre baldes e sacas de alimentos, numa arriscada viagem de ida e volta.

Dentre os carros de passeio que se exibiam no local havia o Fusca, o Corcel, o Jeep, a Kombi, a Rural e o mais majestoso de todos – a Opala, sonho de consumo de nove entre cada dez jovens da urbe. Este último era muitas vezes utilizado por alguns “filhos-de-papai” na prática de “pegas” ou de manobras arriscadas, tipo “cavalo-de-pau” e “rabiadas”. Havia muita reclamação do delegado aos seus pais, mas logo tudo acabava bem.

Diante dessa balbúrdia circunstancial, eis que se achegava o “Seu” Manoel Domingues escoltando a pé o fiel companheiro no labor dessa incansável atividade de mascate. Passivo, embora atrasado, Seu Manoel tocava o animal – um asno velho e dócil – tão despreocupadamente, que causava letargia só de olhar. E ninguém os olhava! Já o asno parecia haver incorporado a personalidade apática do seu dono, tão mansamente circulava por entre carros, casas, animais e pessoas.

Vislumbrando-se aquela cena extenuante, tinha-se a sensação de que o Tempo havia diminuído a marcha para dar-lhes passagem. Já eram quase sete da manhã, mas a pressa não parecia ter alcançado aquelas duas criaturas. Lá seguiam ambos – o senhor e o acéfalo – trafegando pela momentaneamente agitada Rua do Pombal com demasiada tranqüilidade e indolência, que mais os assemelhava com o personagem Milkau e o cavalo molenga que alugara para viajar. Se houvesse assistido àquela cena, Drummond certamente exclamaria:

- Êta vida besta, meu Deus!

Manoel Domingues tinha uma feição rude e crua, olhos fundos, nariz afinalado, pele morena, barba por fazer e cabelos lisos e negros, assemelhados aos dos indígenas, com mechas grisalhas resultantes da passagem do tempo. De estatura mediana, com aparentemente cinqüenta anos de idade, era magro feito cipó. Não era homem de muitas palavras, não sorria, não chorava e só falava o essencial. Frio de temperamento, morava sozinho numa choupana de fazenda, mas como mero agregado. Exceto o jumento, não possuía bens, família e amigos, tampouco era visto entre pessoas civilizadas, a não ser aos sábados, quando necessariamente teria que vender a sua escassa colheita na cidade.

Afinal, depois de algum tempo (não me pergunte se um minuto ou um século) os dois se aproximaram da praça da feira. Seu Manoel, que acabara de enrolar um cigarro de palha, quase nem percebera quando o animal parou à sua frente. Com o seu temperamento fleumático, digno de um legítimo Phileas Fogg, enxotou o animal fazendo um sonido estralado entre os lábios, imitando o som de um prolongado e sonoroso beijo.

Pela primeira vez em anos de parceria, o quadrúpede desatendera uma ordem do seu dono. Indiferentemente, Seu Manoel estralou os lábios mais uma vez e bateu levemente na anca do animal, tentando empurrá-lo à frente. O velho amigo não esboçou qualquer reação. Seu Manoel manteve-se, então, inativo, paciente, apenas fumando o seu cigarro tranqüilamente, como se nada estivesse acontecendo (e, de fato, não acontecia). Permaneceu assim por cerca de cinco ou seis minutos, que até mesmo o Tempo, na sua clássica paciência com aquele cidadão, perdeu as estribeiras.

Bem, se algum apressado resolvesse olhar para aquela cena, acreditaria que o Prefeito decidiu ornamentar a via pública com uma escultura realística da vida bucólica no Município. E seria uma merecedora homenagem aos bravos cidadãos que movimentavam a economia local, cujas memórias pós-morte iam caindo no esquecimento.

Seu Manoel não se abalava jamais. Com a sua distintiva pachorra e frigidez, encaminhou-se à frente do animal e, alisando-o a fronte, conversou mansamente com o companheiro:

- Vamos “migão”, só faltam alguns passos.

O animal manteve-se estável, sem reação, parecendo não estar ali. Seu Manoel novamente cochichou palavras de incentivo ao velho asno, porém em vão. O Tempo agora resolvera manter a sua celeridade natural, pois já não lhe convinha mais se refrear para ajudar aquelas duas pobres criaturas, esquecidas da vida. E os minutos foram passando, passando e... De repente, o asno soltou um estranho urro e quedou-se ao chão, deixando cair parte da carga que transportava nos dois panacuns, fixados em cada lado da cangalha.

Seu Manoel não acreditava no que via. Eis que o seu velho amigo, membro real da sua família, único patrimônio que possuía – se é que se podia considerá-lo assim, pois, como bem lembrado por Luis Gonzaga, para o nordestino o jumento é seu irmão – partia desta vida para uma melhor. E o que é pior: em plena atividade laboral, sem direito a um descanso ou ao cuidado do seu amo.

Um plangente e culminante gemido se ouviu no paço municipal. Todos paralisaram as suas atividades para ver o que estava acontecendo. Seu Manoel, não se agüentando nas pernas, sentou à beira do meio-fio e ali permaneceu, choroso e abatido. Não podia acreditar no que presenciara: a morte do seu único amigo e companheiro de luta.

Tão triste foi ver aquele episódio, que o luto do Seu Manoel logo contaminou as pessoas ali presentes. Um longo silêncio se fez em meio àquele tumulto. Só se ouvia o choro do desgraçado feirante. Como era de praxe, logo um círculo de curiosos se formou em torno do Seu Manoel e do corpo do animal, já sem vida. Naquele meio era até possível ver a irônica “Dona” Morte, que se ria sem piedade da miséria do nosso infeliz personagem.

Quanta desolação, meu Pai! Quanta tristeza se via no rosto daquele pobre senhor, de quem jamais se ouvira falar maiores detalhes sobre a sua vida, origem e família. Durante o episódio, duas caridosas almas cristãs saíram do meio da multidão para tentar consolar o mísero vivente. Não demorou muito e logo Seu Manoel colocara-se novamente de pé, embora ainda choroso. Olhava consternado para o amigo morto e dizia repetidamente:

- E agora, o que vou fazer?

Para encurtar a história, pois eu mesmo me emociono só de lembrar, um bondoso fazendeiro local se comprometeu a presenteá-lo com um dos animais da sua fazenda, à escolha do Seu Manoel. Logo a vida dele voltaria ao normal. Porém a nostálgica lembrança do velho amigo de longas datas não lhe sairia mais da cabeça, como a de um verdadeiro irmão que se foi.

A carcaça do animal foi enterrada junto à choupana onde morava o Seu Manoel, ali na zona rural. Enquanto vivesse, não permitiria que aquela lembrança caísse no ostracismo, pois tinha uma enorme dívida de gratidão ao seu falecido companheiro. Durante anos, o Seu Manoel contou as estórias do seu velho amigo às crianças e jovens da região, e assim conseguiu preservar-lhe a memória por muitos e muitos anos. Também foi dessa forma que o nosso personagem fez-se sentir unido ao seu herói, jazendo agora no ventre da Terra, de todos nós viemos e aonde um dia retornaremos.

Que descanse em paz!

Fonte:
Academia Poçoense de Letras e Artes
Imagem = http://gazetaweb.globo.com/

Livros no Domínio Público


Relação de alguns livros que constam no site http://www.dominiopublico.org.br/

1. A Divina Comédia -Dante Alighieri
2. A Comédia dos Erros -William Shakespeare
3. Poemas de Fernando Pessoa -Fernando Pessoa
4. Dom Casmurro -Machado de Assis
5. Cancioneiro -Fernando Pessoa
6. Romeu e Julieta -William Shakespeare
7. A Cartomante -Machado de Assis
8. Mensagem -Fernando Pessoa
9. A Carteira -Machado de Assis
10. A Megera Domada -William Shakespeare
11. A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca -William Shakespeare
12. Sonho de Uma Noite de Verão -William Shakespeare
13. O Eu profundo e os outros Eus. -Fernando Pessoa
14. Dom Casmurro -Machado de Assis
15. Do Livro do Desassossego -Fernando Pessoa
16. Poesias Inéditas -Fernando Pessoa
17. Tudo Bem Quando Termina Bem -William Shakespeare
18. A Carta -Pero Vaz de Caminha
19. A Igreja do Diabo -Machado de Assis
20. Macbeth -William Shakespeare
21. Este mundo da injustiça globalizada -José Saramago
22. A Tempestade -William Shakespeare
23. O pastor amoroso -Fernando Pessoa
24. A Cidade e as Serras -José Maria Eça de Queirós
25. Livro do Desassossego -Fernando Pessoa
26. A Carta de Pero Vaz de Caminha -Pero Vaz de Caminha
27. O Guardador de Rebanhos -Fernando Pessoa
28. O Mercador de Veneza -William Shakespeare
29. A Esfinge sem Segredo -Oscar Wilde
30. Trabalhos de Amor Perdidos -William Shakespeare
31. Memórias Póstumas de Brás Cubas -Machado de Assis
32. A Mão e a Luva -Machado de Assis
33. Arte Poética -Aristóteles
34. Conto de Inverno -William Shakespeare
35. Otelo, O Mouro de Veneza -William Shakespeare
36. Antônio e Cleópatra -William Shakespeare
37. Os Lusíadas -Luís Vaz de Camões
38. A Metamorfose -Franz Kafka
39. A Cartomante -Machado de Assis
40. Rei Lear -William Shakespeare
41. A Causa Secreta -Machado de Assis
42. Poemas Traduzidos -Fernando Pessoa
43. Muito Barulho Por Nada -William Shakespeare
44. Júlio César -William Shakespeare
45. Auto da Barca do Inferno -Gil Vicente
46. Poemas de Álvaro de Campos -Fernando Pessoa
47. Cancioneiro -Fernando Pessoa
48. Catálogo de Autores Brasileiros com a Obra em Domínio Público -Fundação Biblioteca Nacional
49. A Ela -Machado de Assis
50. O Banqueiro Anarquista -Fernando Pessoa
51. Dom Casmurro -Machado de Assis
52. A Dama das Camélias -Alexandre Dumas Filho
53. Poemas de Álvaro de Campos -Fernando Pessoa
54. Adão e Eva -Machado de Assis
55. A Moreninha -Joaquim Manuel de Macedo
56. A Chinela Turca -Machado de Assis
57. As Alegres Senhoras de Windsor -William Shakespeare
58. Poemas Selecionados -Florbela Espanca
59. As Vítimas-Algozes -Joaquim Manuel de Macedo
60. Iracema -José de Alencar
61. A Mão e a Luva -Machado de Assis
62. Ricardo III -William Shakespeare
63. O Alienista -Machado de Assis
64. Poemas Inconjuntos -Fernando Pessoa
65. A Volta ao Mundo em 80 Dias -Júlio Verne
66. A Carteira -Machado de Assis
67. Primeiro Fausto -Fernando Pessoa
68. Senhora -José de Alencar
69. A Escrava Isaura -Bernardo Guimarães
70. Memórias Póstumas de Brás Cubas -Machado de Assis
71. A Mensageira das Violetas -Florbela Espanca
72. Sonetos -Luís Vaz de Camões
73. Eu e Outras Poesias -Augusto dos Anjos
74.. Fausto -Johann Wolfgang von Goethe
75. Iracema -José de Alencar
76. Poemas de Ricardo Reis -Fernando Pessoa
77. Os Maias -José Maria Eça de Queirós
78. O Guarani -José de Alencar
79. A Mulher de Preto -Machado de Assis
80. A Desobediência Civil -Henry David Thoreau
81. A Alma Encantadora das Ruas -João do Rio
82. A Pianista -Machado de Assis
83. Poemas em Inglês -Fernando Pessoa
84. A Igreja do Diabo -Machado de Assis
85. A Herança -Machado de Assis
86. A chave -Machado de Assis
87. Eu -Augusto dos Anjos
88.. As Primaveras -Casimiro de Abreu
89. A Desejada das Gentes -Machado de Assis
90. Poemas de Ricardo Reis -Fernando Pessoa
91. Quincas Borba -Machado de Assis
92. A Segunda Vida -Machado de Assis
93. Os Sertões -Euclides da Cunha
94. Poemas de Álvaro de Campos -Fernando Pessoa
95. O Alienista -Machado de Assis
96. Don Quixote. Vol. 1 -Miguel de Cervantes Saavedra
97. Medida Por Medida -William Shakespeare
98. Os Dois Cavalheiros de Verona -William Shakespeare
99. A Alma do Lázaro -José de Alencar
100. A Vida Eterna -Machado de Assis
101. A Causa Secreta -Machado de Assis
102. 14 de Julho na Roça -Raul Pompéia
103. Divina Comedia -Dante Alighieri
104. O Crime do Padre Amaro -José Maria Eça de Queirós
105. Coriolano -William Shakespeare
106. Astúcias de Marido -Machado de Assis
107. Senhora -José de Alencar
108. Auto da Barca do Inferno -Gil Vicente
109. Noite na Taverna -Manuel Antônio Álvares de Azevedo
110. Memórias Póstumas de Brás Cubas -Machado de Assis
111. A 'Não-me-toques'! -Artur Azevedo
112. Os Maias -José Maria Eça de Queirós
113. Obras Seletas -Rui Barbosa
114. A Mão e a Luva -Machado de Assis
115. Amor de Perdição -Camilo Castelo Branco
116. Aurora sem Dia -Machado de Assis
117.. Édipo-Rei -Sófocles
118. O Abolicionismo -Joaquim Nabuco
119. Pai Contra Mãe -Machado de Assis
120. O Cortiço -Aluísio de Azevedo
121. Tito Andrônico -William Shakespeare
122.. Adão e Eva -Machado de Assis
123. Os Sertões -Euclides da Cunha
124. Esaú e Jacó -Machado de Assis
125. Don Quixote -Miguel de Cervantes
126. Camões -Joaquim Nabuco
127. Antes que Cases -Machado de Assis
128. A melhor das noivas -Machado de Assis
129. Livro de Mágoas -Florbela Espanca
130. O Cortiço -Aluísio de Azevedo
131. A Relíquia -José Maria Eça de Queirós
132. Helena -Machado de Assis
133. Contos -José Maria Eça de Queirós
134. A Sereníssima República -Machado de Assis
135. Iliada -Homero
136. Amor de Perdição -Camilo Castelo Branco
137. A Brasileira de Prazins -Camilo Castelo Branco
138. Os Lusíadas -Luís Vaz de Camões
139. Sonetos e Outros Poemas -Manuel Maria de Barbosa du Bocage
140. Ficções do interlúdio: para além do outro oceano de Coelho Pacheco. -Fernando Pessoa
141. Anedota Pecuniária -Machado de Assis
142. A Carne -Júlio Ribeiro
143. O Primo Basílio -José Maria Eça de Queirós
144. Don Quijote -Miguel de Cervantes
145.. A Volta ao Mundo em Oitenta Dias -Júlio Verne
146. A Semana -Machado de Assis
147. A viúva Sobral -Machado de Assis
148. A Princesa de Babilônia -Voltaire
149. O Navio Negreiro -Antônio Frederico de Castro Alves
150. Catálogo de Publicações da Biblioteca Nacional -Fundação Biblioteca Nacional
151. Papéis Avulsos -Machado de Assis
152. Eterna Mágoa -Augusto dos Anjos
153. Cartas D'Amor -José Maria Eça de Queirós
154. O Crime do Padre Amaro -José Maria Eça de Queirós
155. Anedota do Cabriolet -Machado de Assis
156. Canção do Exílio -Antônio Gonçalves Dias
157. A Desejada das Gentes -Machado de Assis
158. A Dama das Camélias -Alexandre Dumas Filho
159. Don Quixote. Vol. 2 -Miguel de Cervantes Saavedra
160. Almas Agradecidas -Machado de Assis
161. Cartas D'Amor - O Efêmero Feminino -José Maria Eça de Queirós
162. Contos Fluminenses -Machado de Assis
163. Odisséia -Homero
164. Quincas Borba -Machado de Assis
165. A Mulher de Preto -Machado de Assis
166. Balas de Estalo -Machado de Assis
167. A Senhora do Galvão -Machado de Assis
168. O Primo Basílio -José Maria Eça de Queirós
169. A Inglezinha Barcelos -Machado de Assis
170.. Capítulos de História Colonial (1500-1800) -João Capistrano de Abreu
171. CHARNECA EM FLOR -Florbela Espanca
172. Cinco Minutos -José de Alencar
173. Memórias de um Sargento de Milícias -Manuel Antônio de Almeida
174. Lucíola -José de Alencar
175. A Parasita Azul -Machado de Assis
176. A Viuvinha -José de Alencar
177. Utopia -Thomas Morus
178. Missa do Galo -Machado de Assis
179. Espumas Flutuantes -Antônio Frederico de Castro Alves
180. História da Literatura Brasileira: Fatores da Literatura Brasileira -Sílvio Romero
181. Hamlet -William Shakespeare
182. A Ama-Seca -Artur Azevedo
183. O Espelho -Machado de Assis
184. Helena -Machado de Assis
185. As Academias de Sião -Machado de Assis
186. A Carne -Júlio Ribeiro
187. A Ilustre Casa de Ramires -José Maria Eça de Queirós
188. Como e Por Que Sou Romancista -José de Alencar
189. Antes da Missa -Machado de Assis
190. A Alma Encantadora das Ruas -João do Rio
191. A Carta -Pero Vaz de Caminha
192. LIVRO DE SÓROR SAUDADE -Florbela Espanca
193. A mulher Pálida -Machado de Assis
194. Americanas -Machado de Assis
195. Cândido -Voltaire
196. Viagens de Gulliver -Jonathan Swift
197. El Arte de la Guerra -Sun Tzu
198. Conto de Escola -Machado de Assis
199. Redondilhas -Luís Vaz de Camões
200. Iluminuras -Arthur Rimbaud
201. Schopenhauer -Thomas Mann
202. Carolina -Casimiro de Abreu
203. A esfinge sem segredo -Oscar Wilde
204. Carta de Pero Vaz de Caminha. -Pero Vaz de Caminha
205. Memorial de Aires -Machado de Assis
206. Triste Fim de Policarpo Quaresma -Afonso Henriques de Lima Barreto
207. A última receita -Machado de Assis
208. 7 Canções -Salomão Rovedo
209. Antologia -Antero de Quental
210. O Alienista -Machado de Assis
211. Outras Poesias -Augusto dos Anjos
212. Alma Inquieta -Olavo Bilac
213. A Dança dos Ossos -Bernardo Guimarães
214. A Semana -Machado de Assis
215. Diário Íntimo -Afonso Henriques de Lima Barreto
216. A Casadinha de Fresco -Artur Azevedo
217. Esaú e Jacó -Machado de Assis
218. Canções e Elegias -Luís Vaz de Camões
219. História da Literatura Brasileira -José Veríssimo Dias de Matos
220. A mágoa do Infeliz Cosme -Machado de Assis
221. Seleção de Obras Poéticas -Gregório de Matos
222. Contos de Lima Barreto -Afonso Henriques de Lima Barreto
223. Farsa de Inês Pereira -Gil Vicente
224. A Condessa Vésper -Aluísio de Azevedo
225. Confissões de uma Viúva -Machado de Assis
226. As Bodas de Luís Duarte -Machado de Assis
227. O LIVRO D'ELE -Florbela Espanca
228. O Navio Negreiro -Antônio Frederico de Castro Alves
229. A Moreninha -Joaquim Manuel de Macedo
230. Lira dos Vinte Anos -Manuel Antônio Álvares de Azevedo
231.. A Orgia dos Duendes -Bernardo Guimarães
232. Kamasutra -Mallanâga Vâtsyâyana
233. Triste Fim de Policarpo Quaresma -Afonso Henriques de Lima Barreto
234. A Bela Madame Vargas -João do Rio
235. Uma Estação no Inferno -Arthur Rimbaud
236. Cinco Mulheres -Machado de Assis
237. A Confissão de Lúcio -Mário de Sá-Carneiro
238. O Cortiço -Aluísio Azevedo
239. RELIQUIAE -Florbela Espanca
240. Minha formação -Joaquim Nabuco
241. A Conselho do Marido -Artur Azevedo
242. Auto da Alma -Gil Vicente
243. 345 -Artur Azevedo
244. O Dicionário -Machado de Assis
245. Contos Gauchescos -João Simões Lopes Neto
246. A idéia do Ezequiel Maia -Machado de Assis
247. AMOR COM AMOR SE PAGA -França Júnior
248. Cinco minutos -José de Alencar
249. Lucíola -José de Alencar
250. Aos Vinte Anos -Aluísio de Azevedo
251. A Poesia Interminável -João da Cruz e Sousa
252. A Alegria da Revolução -Ken Knab
253. O Ateneu -Raul Pompéia
254. O Homem que Sabia Javanês e Outros Contos -Afonso Henriques de Lima Barreto
255. Ayres e Vergueiro -Machado de Assis
256. A Campanha Abolicionista -José Carlos do Patrocínio
257. Noite de Almirante -Machado de Assis
258. O Sertanejo -José de Alencar
259. A Conquista -Coelho Neto
260. Casa Velha -Machado de Assis
261. O Enfermeiro -Machado de Assis
262. O Livro de Cesário Verde -José Joaquim Cesário Verde
263. Casa de Pensão -Aluísio de Azevedo
264. A Luneta Mágica -Joaquim Manuel de Macedo
265. Poemas -Safo
266. A Viuvinha -José de Alencar
267. Coisas que Só Eu Sei -Camilo Castelo Branco
268. Contos para Velhos -Olavo Bilac
269. Ulysses -James Joyce
270. 13 Oktobro 1582 -Luiz Ferreira Portella Filho
271. Cícero -Plutarco
272. Espumas Flutuantes -Antônio Frederico de Castro Alves
273. Confissões de uma Viúva Moça -Machado de Assis
274. As Religiões no Rio -João do Rio
275. Várias Histórias -Machado de Assis
276. A Arrábida -Vania Ribas Ulbricht
277. Bons Dias -Machado de Assis
278. O Elixir da Longa Vida -Honoré de Balzac
279. A Capital Federal -Artur Azevedo
280. A Escrava Isaura -Bernardo Guimarães
281. As Forças Caudinas -Machado de Assis
282. Coração, Cabeça e Estômago -Camilo Castelo Branco
283. Balas de Estalo -Machado de Assis
284. AS VIAGENS -Olavo Bilac
285. Antigonas -Sofócles
286. A Dívida -Artur Azevedo
287. Sermão da Sexagésima -Pe. Antônio Vieira
288. Uns Braços -Machado de Assis
289. Ubirajara -José de Alencar
290. Poética -Aristóteles
291. Bom Crioulo -Adolfo Ferreira Caminha
292. A Cruz Mutilada -Vania Ribas Ulbricht
293. Antes da Rocha Tapéia -Machado de Assis
294. Poemas Irônicos, Venenosos e Sarcásticos -Manuel Antônio Álvares de Azevedo
295. Histórias da Meia-Noite -Machado de Assis
296. Via-Láctea -Olavo Bilac
297. O Mulato -Aluísio de Azevedo
298. O Primo Basílio -José Maria Eça de Queirós
299. Os Escravos -Antônio Frederico de Castro Alves
300. A Pata da Gazela -José de Alencar
301. BRÁS, BEXIGA E BARRA FUNDA -Alcântara Machado
302. Vozes d'África -Antônio Frederico de Castro Alves
303. Memórias de um Sargento de Milícias -Manuel Antônio de Almeida
304. O que é o Casamento? -José de Alencar
305. A Harpa do Crente -Vania Ribas Ulbricht
306. A Casa Fechada -Roberto Gomes Ribeiro
307. As Asas de um Anjo (Comédia) -José de Alencar
308. Béatrix -Honoré de Balzac
309. Diva -José de Alencar
310. A Melhor Amiga -Artur Azevedo
311. A Confissão de Lúcio -Mário de Sá-Carneiro
312. CONTOS AVULSOS -Alcântara Machado
313. Poemas Humorísticos e Irônicos -João da Cruz e Sousa
314. Cantiga de Esponsais -Machado de Assis
315. Quincas Borba -Machado de Assis
316. Brincar com fogo -Machado de Assis
317. Helena -Machado de Assis
318. Dentro da noite -João do Rio
319. O Livro da Lei -Aleister Crowley
320. Caramuru: poema épico do descobrimento da Bahia -José de Santa Rita Durão
321. Conto de Escola -Machado de Assis
322. Memórias de um Sargento de Milícias -Manuel Antônio de Almeida
323. Poemas Malditos -Manuel Antônio Álvares de Azevedo
324. Ao Entardecer (contos vários) -Visconde de Taunay
325. Felicidade pelo Casamento -Machado de Assis
326. Noite na Taverna -Manuel Antônio Álvares de Azevedo
327. Cartas Chilenas -Tomáz Antônio Gonzaga
328. O Mulato -Aluísio de Azevedo
329. Farsa do Velho da Horta -Gil Vicente
330. Amor com Amor se Paga -Joaquim José da França Júnior

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Trova LIV

Renato Modernell (Elogio da miopia (e do binóculo))



A inquietude do jornalista ao lidar com um mundo fluido, massificado e globalizado pode ensejar suposições enganosas. Uma delas, por exemplo, é a de que antes não era assim. Teria havido um tempo feliz em que a realidade era virgem, e não virtual; e a poesia estava em cada esquina da cidade, pronta para ser colhida. Outra suposição perigosa é a de que a platitude dos dias de hoje teria sua fonte nos fatos e nos objetos, e não em nossa maneira pouco poética, quase burocrática, de olhar para eles. Se folheamos jornais antigos, encontramos coisas surpreendentes.

Em 11 de novembro de 1900, Machado de Assis publicava em “A Semana” uma crônica confessional: “Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto. Daí vem que, enquanto o telégrafo nos dava notícias tão graves como a taxa francesa sobre a falta de filhos e o suicídio do chefe de polícia paraguaio, cousas que entram pelos olhos, eu apertei os meus para ver cousas miúdas, cousas que escapam ao maior número, cousas de míopes. A vantagem dos míopes é enxergar onde as grandes vistas não pegam.”

Feita a ressalva (ou, se quisermos, o elogio da miopia), Machado envereda machadianamente por assuntos prosaicos do Rio de Janeiro naquele começo do século 20. Seu poder de sedução faz com que, ao final do texto, tenhamos a impressão de que as tais “cousas miúdas” não são aquelas das quais ele trata, mas sim as que “entram pelos olhos” dos consumidores de jornais – no caso, a curiosa notícia telegrafada da França e a tragédia pessoal transmitida do Paraguai. Porém Machado, nesse parágrafo de abertura da crônica, está dizendo muito mais que isso. Anuncia que há um mundo lá fora, indiferente ao filtro representado pelo telégrafo, que clama por ser visto com outros olhos. Olhos raros, embebidos de certa condição poética. Raros, mas existentes. Era o caso de Lima Barreto, que cobriu para o “Correio da Manhã” a lendária demolição do Morro do Castelo, em 1905, texto depois publicado em forma de folhetim. E foi o caso também de outro escritor-jornalista, João do Rio, que anos depois mergulharia com os cinco sentidos no que chamou poeticamente de “alma encantadora das ruas”.

O que valia era a experiência direta das coisas, a entrevista, o incidente de esquina, pequeno mas carregado de significado. De resto, o telégrafo (na época, o supra-sumo da tecnologia da comunicação) dava conta das “cousas que entram pelos olhos”, ou seja, do cenário oficial ou, pelo menos, objetivo. Vamos fazer de conta, para todos os efeitos, que o suicídio do chefe da polícia paraguaia importasse mais ao cidadão carioca do que os camelôs que, já nos tempos machadianos, atravancavam o encanto das ruas.

Machado sugere que nas ruas de sua cidade (e, por extensão, nas de qualquer outra) em se colhendo, tudo dá. Era natural pensar assim, numa época em que também os peixes e as árvores pareciam inesgotáveis. O jornalista que enveredasse por algum beco obscuro e infecto, afastando-se dos corredores dos palácios ou das calçadas da Rua do Ouvidor, esquivando-se da notícia imposta pelo telégrafo, com certeza encontraria assunto.

Imaginamos que antes era mais fácil meter o nariz em trilhas não trilhadas, para quem se dispusesse a isso. Supomos que nem Machado, nem Lima Barreto, nem João do Rio encontrariam as mesmas facilidades se vivessem em nossos dias. Enfim, o mundo não é mais aquele.

Em crônica publicada em 22 de fevereiro de 2001, no semanário italiano “L’Espresso”, Umberto Eco adverte para o fato de que as ruas principais das grandes cidades do mundo se parecem cada vez mais umas às outras. Com engenhosa argumentação, mostra que nós, de certo modo, viajamos sempre para o mesmo lugar. O elemento “achatador” da realidade já não é mais o telégrafo, como no tempo de Machado, mas outro engenho que leva no nome o mesmo prefixo. É fácil: aquele caixote barulhento e despótico, com uma face de vidro, que fica em frente ao sofá da sala, onde está o controle remoto. Controle? Não temos controle de nada, exceto duns botõezinhos. “Conhecemos o mundo por meio da televisão, que com freqüência não o capta tal como é”, escreve Eco, e cita como exemplo a cobertura da Guerra do Golfo. “Vemos cada vez mais simulacros da realidade. No entanto, na nossa época, as pessoas se põem a viajar como nunca aconteceu antes. Cada vez mais gente, cujos pais se moveram no máximo a uma cidade próxima, me dizem ter visitado lugares com os quais eu, viajante compulsivo, diria até profissional, limito-me apenas a sonhar. Nenhuma praia exótica, nenhuma cidade perdida permanece inacessível.”

Conheço tal situação por experiência direta, por trabalhar em “Terra”. Ao longo de dez anos de existência, a revista consolidou seu prestígio com base em uma atitude de desbravamento. Mostrava lugares incomuns, remotos e inexplorados pelo turista tradicional. Agora, porém temos um dilema: quase já não existem mais (pelo menos no Brasil) esses lugares tidos como “virgens” ou “exóticos” que constituíram a própria identidade da revista perante o leitor.

Se pensássemos numa “alma encantadora das praias”, com a licença de João do Rio, teríamos de reconhecer que Jericoacoara se parece mais a Copacabana do que uma década atrás. Uma avenida de Calcutá cruza a nossa São João, e ninguém percebe. A crônica de Eco explora essa ironia contemporânea de que, quanto mais nos movemos, mais os lugares se parecem uns com os outros.

Onde meter o nariz, se tudo já foi farejado e visto? Transmitir o que, se tudo já foi retransmitido?

Para nós, jornalistas do século 21, modestos súditos de Machado, longínquos filhotes de Lima Barreto e João do Rio, saudosos sucessores de Marcos Faerman, só resta uma saída: a grandeza das “cousas miúdas”, a nitidez das “cousas de míopes”. Enfim, aquelas “cousas” que o telégrafo não dizia e a televisão, hoje, continua não dizendo. Lima Barreto, João do Rio, Marcão. O que cada um desses homens teria descoberto (ou captado, eis a melhor palavra) se por acaso vivesse no Paraguai, em novembro de 1900, sobre o suicídio daquele chefe de polícia? Cirrose oculta? Traição amorosa? E com que tintas teriam pintado o quadro? Vamos lá: o que fez o chefe de polícia nesse último dia de vida? Afinal, que “cousas” são essas, além do suicídio, que o tornaram diferente de todos os outros chefes de polícia do Paraguai? Marcão não estava lá.

Por isso essa notícia, aos olhos de Machado, perdeu-se no caudal diário da Grande Imprensa, que sempre percorre as mesmas avenidas, assim como nós viajamos para os mesmos lugares. Pegando carona com Umberto Eco, poderíamos dizer que, quanto mais se noticia, em volume e rapidez, menos as notícias se distinguem umas das outras, como as ruas e as cidades. A alma encantadora do mundo dá lugar a uma vertigem. Estamos a bordo de um carrossel em aceleração crescente, que no fim das contas não vai a lugar nenhum. É preciso saltar fora para voltar a captar as “cousas miúdas” de Machado, para “catar o mínimo e o escondido” que poderiam devolver o frescor que já não encontramos na realidade, por falta de condição poética.

Precisamos de olhos míopes – no sentido machadiano, não oftalmológico, evidentemente. Míopes no sentido de dissonantes, assim como os músicos mais ousados buscaram caminhos para além do sistema tonal, no momento em que o consideraram esgotado. Para se livrar da aceleração do carrossel, que paralisa os sentidos, o jornalista precisa redescobrir a alma encantadora das ruas, onde Marcão gastou muitas e muitas solas de sapatos.

O repórter precisa compreender e, nem que seja de vez em quando, experimentar um sentimento do mundo semelhante ao que o poeta polonês Czeslaw Milosz expressa no texto “A Condição Poética”, traduzido por Ana Cristina Cesar e Grazyna Drabik: “Como se tivesse, em vez de olhos, binóculos ao contrário, o mundo se distancia e as pessoas, árvores, ruas, tudo diminui, mas nada, nada perde a clareza, fica mais denso. Já tive antes momentos assim, escrevendo poemas; conheço então a distância, a contemplação desinteressada, sei assumir um eu que é não-eu, mas agora é sempre assim e me pergunto o que significa isso, se entrei numa permanente condição poética. As coisas antes difíceis agora são fáceis, mas não sinto desejo forte de transmiti-las por escrito. Só agora estou sadio, e era doente, porque o meu tempo galopava e afligia-me o medo do que viria. A cada momento o espetáculo do mundo é para mim de novo surpreendente e tão cômico que não entendo como a literatura podia querer dominá-lo. Sentindo fisicamente, ao alcance da mão, cada momento, amanso o sofrimento e não suplico a Deus que queira afastá-lo de mim: por que o afastaria de mim se não o afasta dos outros? Sonhei que me encontrava numa estreita borda sobre o oceano onde se viam nadando enormes peixes marinhos. Tive medo de que, se olhasse, cairia. Virei então, agarrei-me nas asperezas da parede rochosa, e movendo-me lentamente, de costas para o mar, cheguei a um lugar seguro. Eu era impaciente e irritava-me a perda de tempo com coisas triviais, incluindo entre elas a faxina e a preparação da comida. Agora corto com cuidado a cebola, espremo os limões, preparo vários tipos de molho.”

Fonte:
http://www.renatomodernell.com.br/texto1_ensaios.php?id=121

Renato Modernell (1953)



Renato Modernell nascido na cidade do Rio Grande/RS, em 19/08/53 é escritor, jornalista e professor.

Desde a infância em sua terra natal já produzia narrativas. Em 1972 radicou-se em São Paulo onde se formou em jornalismo pela Faculdade de Comunicações da Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP em 1975. Tão logo começou a exercer a profissão de jornalista. Mais tarde dedicou-se à literatura passando a dirigir oficinas de escrita.

Tornou-se mestre em jornalismo pela Universidade de São Paulo – USP e doutor em letras pelo Mackenzie. A partir de então inaugurou uma fase de vida itinerante.

Morou em Roma, atuando como colaborador regular do jornal “Folha de S. Paulo”. Passou temporadas em Londres, frequentando cursos de História, e mais tarde em Barcelona, trabalhando em um romance histórico sobre imigrantes.

Desde 1978, Modernell tem produzido textos ficcionais com regularidade, em paralelo à atividade jornalística.

Como escritor, publicou nove livros. Por suas obras literárias recebeu vários prêmios no Brasil, entre outros o Jabuti, pelo romance "Sonata da última cidade". Sua primeira obra de ficção a circular em edição comercial - “Che Bandoneón”, biografia romanceada do músico argentino Astor Piazzolla foi premiada pela Academia de Ciência de Lisboa.

Em 2001 foi premiado na Itália pelo romance histórico “Viagem ao Pavio da Vela”, que tem Marco Polo como protagonista. Em mais de duas décadas de carreira jornalística, Modernell atuou e colaborou em vários dos principais órgãos de imprensa do país. Dedicou-se sobretudo às áreas de cultura, ciências e viagens.

Recebeu um prêmio da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) por uma reportagem em defesa do patrimônio histórico nacional. Visitou cerca de 30 países, tendo residido em Roma e Barcelona.

Trabalhou nas revistas Época, Globo Ciência, Terra e Quatro Rodas, e também no Jornal da Tarde e Zero Hora, entre outras publicações. Hoje atua como jornalista autônomo.

Publica crônicas regularmente no blogue Adjazzcências. Dirige oficinas de escrita em universidades, empresas, ONGs, sindicatos e outras instituições. Colabora em projetos de comunicação corporativa.

Fonte:
http://rio-grandinos.blogspot.com/search/label/*%20RIO%20GRANDINOS%20EM%20DESTAQUE

Cláudio Moreno (Etimologia Médica)


1. À minha volta tem início uma animada conversa sobre signos e horóscopos. Eu começo a me remexer na cadeira, estudando furtivamente as possíveis rotas de fuga, quando o dono da casa, bom amigo de muitos anos e excelente anfitrião, olha para mim, sorridente, e já vai avisando aos circunstantes que, nestas questões astrológicas, não adianta falar comigo porque sou um incrédulo irremediável. Suporto, por alguns instantes, alguns olhares de sincera comiseração, mas é tudo: o recado está dado, e não preciso mais fugir. Eu estou me divertindo, resguardado pelo prudente silêncio que adoto nessas horas; o vinho é bom, a conversa é cordial e, como sobremesa, ainda colho algumas pérolas maravilhosas. Uma senhora comenta, em tom de confidência, que o casamento de Hitler era muito esquisito, pois ele gostava de arianas, mas tinha casado com Eva Braun, que era de Aquário. O anfitrião olha para mim, esperando que eu me manifeste, mas finjo que não ouvi. Não vou estragar o jantar desta boa alma explicando-lhe que não se trata aqui de alguém nascido sobre o signo de Áries, mas dos arianos, mitológico povo indo-europeu que representava, no delírio nazista, o ideal de pureza racial. A idéia de que ela sempre entendeu o discurso sobre a superioridade ariana como uma discriminação contra os nascidos nos demais signos, para mim, já vale a noite.

2. Como num ritual primitivo, as presentes vão anunciando, uma a uma, o signo a que pertencem. A roda gira e vejo que estou cercado de librianas, sagitarianas, capricornianas, piscianas, geminianas, taurinas - um desfile de adjetivos formados pelo mesmo molde, exceto em escorpianas, que, se seguisse o modelo derivacional de leão > [leon] > leonina, deveria dar algo como escorpioniana, palavra impronunciável que o filtro da língua simplesmente abortou. "Pois eu", diz enfim uma jovem senhora, "sou caranguejo. Caranguejiana não existe, não é, professor?". Pronto, agora é comigo. "Não, não existe; há caranguejeira e caranguejola, mas nada têm a ver com os signos. E canceriana? Não serve?", pergunto eu, com certa maldade. "Ah, mas essa eu nunca vou usar. Parece cancerosa! Sei que não há relação entre o câncer do signo e o câncer da doença, mas assim mesmo acho sinistro". Concordo, para ser gentil, mas hoje, algumas semanas depois, sinto-me confortável para revelar que a palavra é a mesma, desde a sua origem.

3. O zodíaco, derivado do mesmo elemento grego zoion ("animal; ser vivo"), que nos deu zoológico e zoologia, era uma faixa imaginária na esfera celeste, o zoidiakos kuklos ("círculo de animais"), que abrangia as constelações que deram nome aos signos - entre elas o caranguejo - cancer, em Latim -, animal que os romanos vinculavam à terrível enfermidade. Essa denominação já ocorria entre os gregos, que também designavam o bicho e a doença com a mesma palavra - karkínos -, de onde proveio carcinoma. Há várias hipóteses para explicar por que essa palavra adquiriu dois sentidos tão diferentes, mas nenhuma delas jamais será definitiva, o que é normal em todas essas designações baseadas em semelhanças e associações (quando o prezado leitor abrir o porta-malas e encontrar aquele mecanismo usado para erguer o carro, na troca de pneus, pense nisso: o que ele tem de semelhante com um macaco? Para os argentinos e uruguaios, não deve ter nada, pois o chamam de gato - por razões que também eles desconhecem).

Grande parte da nomenclatura médica do Português proveio da Antiguidade Clássica, especialmente do trabalho de dois médicos excepcionais, o grego Hipócrates (460-377 a.C) e o romano Galeno (131-200 a.C). As palavras que eles empregavam continuam a ser usadas ainda hoje, dois mil anos depois, embora o seu significado tenha sofrido alterações inevitáveis, já que vinham de uma época em que a ciência se limitava aos dados que pudessem ser captados pelos cinco sentidos do observador. Segundo Galeno, (que vivia em Roma mas escrevia em Grego), o nome câncer teria sido usado porque em alguns tumores as veias intumescidas que circundam a parte afetada assumem a aparência das patas de um caranguejo; outros atribuem o nome a uma sinistra metáfora: o local do tumor é corroído dolorosamente como se um caranguejo o devorasse; outros comparam a dureza da carapaça do crustáceo com um tipo de tecido canceroso — e assim por diante, mas todas essas hipóteses reforçam a ligação que a nossa dama tentava negar entre o signo e a doença. Afinal, é uma atitude compreensível; se ela é supersticiosa ao ponto de acreditar que algum astro deste infinito universo influi, de alguma maneira, na sua rica vidinha aqui em Porto Alegre, posso imaginar que ela considere esta coincidência de nomes um sinal de mau agouro.

Fonte:
Site Sua Língua, de Claudio Moreno. http://wp.clicrbs.com.br/sualingua/2009/09/05/etimologia-medica/

Cláudio Moreno



Cláudio Moreno nascido na cidade do Rio Grande/RS é professor, escritor, ensaísta brasileiro e colunista.

Ainda jovem radicou-se na cidade de Porto Alegre. Em 1969 concluiu o curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande Sul - UFRGS, com habilitação em Português e Grego.

Em 1972 ingressou como docente no Instituto de Letras da mesma universidade, tendo sido responsável por várias disciplinas nos cursos de Letras e de Jornalismo, assim como pela disciplina de Redação para os cursos de Pós-Graduação de Medicina.

Em 1977, concluiu o mestrado em Língua Portuguesa, obtendo em 1997, o título de Doutor em Letras.

Coordena, atualmente, a área de Língua Portuguesa dos Colégios Leonardo da Vinci Alfa e Beta, de Porto Alegre, do Sistema Unificado de Ensino.

É professor regular das Tele-aulas de Língua Portuguesa da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro.

Na imprensa, assinou uma coluna mensal sobre etimologia na revista Mundo Estranho, da editora Abril, e escreve regularmente no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, onde mantém uma seção sobre Mitologia Clássica e outra sobre questões de nosso idioma.

Publicou, em co-autoria, livros sobre a área da redação - Redação Técnica (Formação), Curso Básico de Redação (Ática) e Português para Convencer (Ática). Sobre gramática, publicou o Guia Prático do Português Correto em três volumes: Ortografia (2003), Morfologia (2004) e Sintaxe (2005).

Autor dos dois volumes do livro O Prazer das Palavras, editados em 2007 e 2008, com artigos sobre etimologia e curiosidades de nosso idioma. Além disso, é o autor do romance Tróia (2004) e de dois livros de crônicas sobre Mitologia Clássica, Um Rio que Vem da Grécia (2004) e Cem Lições para Viver Melhor (2008). Além da autoria de vários livros na área de gramática e redação, romance e crônica, Moreno mantém o site Sua Língua, no qual esclarece dúvidas e dá dicas de Português. http://wp.clicrbs.com.br/sualingua/

Fonte:
http://rio-grandinos.blogspot.com/search/label/*%20RIO%20GRANDINOS%20EM%20DESTAQUE

domingo, 13 de setembro de 2009

Trova LII

Antônio Torres (Segundo Nego de Roseno)



– Patrãozinho, me dê uma prata?

– Pra que você quer dinheiro, homem? – disse o menino.

– Me dê uma prata para eu tomar uma.

– Não vai trabalhar? Papai está te esperando.

– Eu vou mas é tomar uma.

– Tome duas e caia logo de vez – disse o menino, pondo as duas moedas na mão do homem e se retirando.

– Deus te ajude, patrãozinho.

Era terça-feira e era o fim de tudo – e o último ser vivo do mundo estava caindo de bêbado, nem bem o sol havia raiado.

Agora não havia mais missa nem feira nem barraca nem pão-de-ló e a rua voltou a ser o que sempre foi: uma solidão única.

O menino percebeu isso ao acordar. Estava sozinho. Como o padre, todos haviam retornado a suas casas de verdade, fazendolas e casebres miseráveis das redondezas que, se somadas, davam mai de nove léguas. Até tio Ascendino, o último dos beatos (o bêbado não contava), tinha abandonado o seu posto e retornado à sua marcenaria. Agora só lhe restava o caminho da roça. O pior não era a solidão. Era a fome. E assim, com as tripas roncando e esfregando os dedos nos olhos para limpar a remela, o menino foi descendo para a venda de Josias Cardoso. Ia comprar um pão de milho. Agora podia comprar o que quisesse, porque as três notas que o padre lhe dera compravam muitas coisas. Mas ia devagar. Lá na roça seu pai o aguardava com uma enxada.

Felizmente não sobraram apenas o menino, o bêbado e o dono da venda. Também havia Nego de Roseno e sua fubica parada na porta do armarinho. A fubica era um pouco mais que o veículo que transportava uma pança negra cheia de níqueis dos roceiros. Era o único orgulho motorizado do Junco – e o prêmio justo para um homem que passara toda uma vida carregando mercadorias no lombo de um burro. O menino também estava fascinado com o progresso desse homem e chegava mesmo a invejar-lhe a liberdade de poder rodar para cima e para baixo na boleia daquele caminhãozinho que, mesmo quebrando e atolando nas estradas, acabava sempre chegando a algum destino. E talvez fosse isso que ele estivesse querendo dizer, nesse momento. Imóvel dentro do armarinho, como se fosse mais um dos caixotes que Nego de Roseno tentava mudar de posição, o menino agora admirava a maneira delicada como ele, um homenzarrão desengonçado, arrumava os frascos de cheiro nas prateleiras. E foi que Nego de Roseno falou. Queria alguma coisa? Queria sim. Aquela camisa ali, quanto é?

Custava mais do que o dinheiro que ele tinha, mas Nego de Roseno deixou pelo dinheiro que ele tinha.

– Seu pai é um bom freguês – disse – Vou lhe fazer um desconto.
Seu pai. Agora precisava inventar uma boa mentira para contar em casa. Por que você demorou tanto? Porque...

Talvez levasse uma surra.

Mas tinha dois pães numa mão e uma camisa na outra – e isso, por enquanto, era o que importava. Uma camiseta branca, de mangas cavadas (diferente, moderna), a primeira coisa na vida que comprava com o seu próprio dinheiro. Também não mandou pôr os pães na conta do pai, como das outras vezes. O problema é que sua alegria não estava sendo maior que o seu medo. Quem mandou demorar tanto?

Quando chegou à marcenaria, tio Ascendino ainda cantava benditos. Era um velho muito só que vivia rezando e praguejando contra as maldades do mundo. Tio Ascendino parou de cantar, parou a enxó, ajeitou os suspensórios e mostrou um caminhão azul para o menino.

– Fiz esse para você. Gosta da cor azul?

O menino ofereceu um dos seus pães para o tio e tio Ascendino aproveitou para fazer um café. Enquanto esperava, e agora com uma alegria redobrada, por causa do presente, trocou de camisa.

– Só está é um pouco folgada – disse tio Ascendino – Mas não faz mal. Quando lavar, ela encolhe. E você está crescendo.

Esquecido do tempo e da enxada e da possibilidade de uma surra, o menino conversou muito, como se fosse um bom companheiro para o tio.

– Essa terra só se alegra quando tem missa, não é?

– É a pura verdade – disse tio Ascendino – È uma pena só ter missa de tempos em tempos. Já estamos precisando de um padre que more aqui e que celebre missa pelo menos todos os domingos.

– Também acho – disse o menino.

– E você, quando vai para o seminário?

– Não sei não, tio.

– Quando vejo você ajudando o padre, tão bonito, fico pedindo a Deus para ver você um dia metido numa batina. Ia ser o maior orgulho deste lugar. Mas talvez eu não viva tanto para ver isso.

Há uma certa hora no Junco que dá para se ouvir um carro de bois cantando do outro lado do universo. Entre 11 da manhã e 3 da tarde o sol treme e até as cigarras param de piar. O menino ia pela estrada atento aos buracos. Atento ao barulho das rodas de seu caminhãozinho, que ele empurrava com uma forquilha.

O presente do tio também serviu de perdão para a sua demora. O que não lhe perdoaram foi o fato de ele ter dado o seu dinheiro numa camisa que não valia nada. Burro. Burro e besta. Seu pai ordenou:

– Volte lá e devolva isso. Traga o dinheiro de volta.

Tinha que voltar à rua. Não havia outro jeito. No caminho, pedia a Deus que lhe jogasse na frente as três notas que ganhara do padre e que agora se encontravam nas mãos de Nego de Roseno. Se isso acontecesse, ele poria a camisa fora e voltava para casa sem ter que enfrentar o dono do armarinho. Era uma humilhação ter que se desfazer de um negócio que fizera por sua livre vontade. Mas se Deus não o iria socorrer, muito menos Nego de Roseno. Pediu o apoio de Dirce, com os olhos molhados. Dirce não se moveu. Pediu o apoio de Neguinho, que um dia havia caído a seus pés, no meio da rua, durante um ataque de epilepsia. Neguinho também não disse nada. Que espécie de homem era ele?, perguntava Nego de Roseno. Comprava uma coisa e depois se arrependia? Além do mais, a camisa estava melada de suor. Em casa, além de enxada, agora aguardava uma nova bateria de ameaças e descomposturas. E esse incidente iria perturbar-lhe o sono durante largo tempo da sua vida.

Como no dia que Neguinho se jogou no tanque velho e morreu afogado, para se vingar de um tapa que levara do pai. Em seus sonhos, o menino via Neguinho se debatendo e espumando no chão, com os olhos arregalados e suplicantes, como se estivesse lhe pedindo socorro. Essa cena iria se repetir noites a fio, por mais que menino pela alma de Neguinho.

Só muito depois, quando a camisa já estava rasgada e não servia mais para nada, foi que ele deu o caso por encerrado.

Uma noite seu pai voltou um pouco tarde da rua e ficou conversando com sua mãe. Estava contado a respeito do que ouvira uns homens dizer sobre o menino.

– Estava eu, Josias, compadre Zeca e Nego de Roseno.

O menino ficou de orelha em pé. Ainda não haviam se esquecido daquela coisa.

– Aí Nego de Roseno disse: dá gosto ouvir aquele menino falar. Aquele menino é um homem – contava o velho – Os outros, todos, disseram a mesma coisa.

Agora, sim. Seu pai estava orgulhoso.

O filho dele era um homem, segundo Nego de Roseno.

Fonte:
Torres, Antônio. Meninos, eu conto. RJ: Record, 1999.

Antônio Torres (Saudade. Uma palavra para melhor se conhecer os poetas)


Genuinamente lusitana, portanto, intraduzível - ou de difícil tradução. E definida, um tanto abstratamente, como a presença da ausência. Musa inspiradora dos suspiros e ais das mais compungidas almas deste mundo, dos excelsos vates (Punge-me agora trágica saudade...)e cancioneiros populares (Saudade, palavra triste, quando se perde um grande amor), aos mais comuns dos mortais (Saudade de você), ela é, antes de qualquer coisa, uma palavra-chave para um começo de conversa que tem tudo para ir longe.

Sua definição, origem e história ainda instigam estudiosos da língua portuguesa. Entendida como um sentimento mais ou menos melancólico de incompletude, ligado pela memória a situações bem vividas, significando isto privação da presença de alguém ou de algo que muito se quer, ou a ausência de certas experiências e prazeres do passado que se deseja reviver, ela traz na sua essência alegria e martírio, tristeza e beleza, riso e lágrima.

Tais ambiguidades ainda seduzem os lexicógrafos contemporâneos, como se pode constatar no verbete que lhe dedicou o educador paulista Paulo Nathanael Pereira de Souza no livro 100 palavras para melhor conhecer o Brasil, organizado pelo prof. Arnaldo Niskier, e publicado em 2008 em edição nipo-brasileira, dentro das comemorações do centenário da imigração japonesa para o nosso país. Diante da esfinge que poderia devorá-lo, tornando-o um saudosista, ele se interroga: “Quem poderá aprofundar melhor do que qualquer outra pessoa as singularidades poéticas que se enrodilham na essencialidade dos sentimentos humanos e suas expressões vocabulares, senão um poeta? E não precisa ser dos maiores. Basta que seja poeta”.

Certo, mestre - pieguices à parte. Pois de Camões (o que escreveu: Se de saudade morrerei, ou não, os meus olhos dirão), a Vinícius de Morais, que a cantou belamente no Samba em prelúdio, que compôs com Baden Powell (Ai, que saudades, que vontade de rever nossas vidas...), e isso, imagine, anos depois do seu grande sucesso, Chega de saudade (daquela vez em dupla com Tom Jobim),nem todos foram capazes de tratá-la com o mesmo engenho e arte. O que não falta nos dois lados de Atlântico é o uso e abuso da coitada da saudade em poesia barata, ou no mínimo de gosto duvidoso, e bota aurora da vida e infância querida nisso.

Nesse sentido, o exemplo clássico é um livro publicado em 1836, e que entrou para a história literária como o marco inicial do Romantismo brasileiro. Título: Suspiros poéticos e saudades. Autor: Gonçalves de Magalhães. Foi ele o precursor de uma corrente que cantava o desgosto da vida, a infância, o amor impossível, a melancolia, a tristeza – ai, meus sais! O inefável poeta veio a se superar em outro volume, intitulado Cantos fúnebres.

Passos mais adiante, a saudade viria a ser mais bem tratada (ou retratada) nas mãos do maranhense Gonçalves Dias, que se consagrou como o primeiro grande poeta romântico do Brasil, e que sentia orgulho de ter em seu sangue as três raças formadoras da nação, por ser filho de um comerciante português com uma mestiça de índios e negros. Estamos falando do autor de Ainda uma vez mais, adeus e Canção do exílio, este escrito quando ele cursava direito na Universidade de Coimbra e morria de saudades do seu país: Minha terra tem palmeiras/ onde canta o sabiá – precisa continuar?

Outra exceção à regra foi o pop star do Romantismo made in Brazil, e sua mais bela cabeleira, o baiano Castro Alves, que, embora tivesse colocado a sua pena a serviço de um mundo mais justo, ao comprometer-se com a construção de uma nova ordem social, e com a causa republicana e abolicionista, não deixou de ser também um flamejante poeta do amor e da melancolia. Na sua obra há pelo menos uns sete poemas com um Adeus no título. Em Horas de saudade escreveu: No piano saudoso, à tua espera/ Dormem sono de morte as harmonias/ E a valsa entreaberta mostra a frase/ A doce frase qu’inda pouco lias”. Castro Alves e Gonçalves Dias foram os românticos brasileiros que deixaram saudade.

Esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Alexandre O’Neill/ Um adeus português

Mas como, onde, quando e por que surgiu tal palavra, tão usada e abusada em prosa e verso? Até o autor destas linhas já a maltratou um bocado, como se pode ler no capítulo que lhe dedicou no recém-publicado Dicionário amoroso da língua portuguesa,organizado pelo carioca Marcelo Moutinho e o portuense (ou tripeiro, como se diz em Portugal) Jorge Reis-Sá. Voltemos, porém, ao que interessa aqui:

Filha legítima da última flor do Lácio, portanto tendo o latim no seu DNA, a saudade descende de Solitas e Solis, quer dizer, de uma família chamada Solidão. E por ser vista, por séculos, seculorum, amém, como uma enlutada viúva à beira do cais, a salgar o mar de fados, boleros e guarânias, sambas-canções, toadas, valsas, xotes, maracatus e baiões, presume-se que ela remonta à era das grandes navegações, quando a língua portuguesa atravessou os mares na voz dos intrépidos navegantes que atingiram o Cabo Bojador em 1434, chegaram à Foz do Congo em 1483, dobraram o Cabo da Boa Esperança em 1487 e deram com os seus costados no Brasil (oficialmente) em 1500. Quem partia levava saudades, choradas pelos que ficavam. E assim sendo, a palavra conquistou o seu lugar de pertencimento no coração dos marinheiros e dos que em terra aguardavam o retorno deles, antes mesmo de o português se consolidar como língua literária, entre os séculos XV e XVI, cujo coroamento foi a publicação de Os Lusíadas, em 1572, como sabemos todos um livro monumental escrito por um soldado chamado Luís de Camões, que se meteu em guerras na Índia durante quinze anos, tendo sido ele próprio um herói da epopéia que escreveu. Pronto. Saudade e mar português, tudo a ver, conforme a síntese dessas navegações feita por Fernando Pessoa: Quem quer passar além do Bojador/ Tem que passar além da dor.

Do heróico tempo ficou-se a ver navios. E com olhar esfíngico e fatal. E a fitar o futuro do passado, vendo entre a cerração um vulto baço, que torna. E quem seria esse saudoso vulto cujo retorno se esperou, século após século? De quem poderia ser, senão de O Desejado, o rei morto no campo de batalha em Alcácer-Quibir, no dia 4 de agosto de 1578, seis anos depois da publicação de Os Lusíadas? Este, sim, passou além da dor, salgando o mar com o mais transatlântico saudosismo legado ao mundo que o português criou.

Agora, com a palavra os cantores brasileiros. Luiz Gonzaga, o rei do baião: “Ai quem me dera voltar, pros braços do meu xodó/ saudade assim faz doer/ amarga que nem jiló”. Adoniran Barbosa (nas vozes dos Demônios da Garoa): “Saudosa maloca/ maloca querida...” Ataulfo Alves: saudades da Amélia, que era a mulher de verdade, da professorinha, que lhe ensinou o bêabá. Tom Jobim e a saudade do Rio de Janeiro, no Samba do avião. Um sanfoneiro rasgando as Saudades de Matão num arrasta-pé do interior. Ellis Regina cantando Saudades do Brasil. Dorival Caymmi: “Ai se eu escutasse o que mamãe dizia”. Saudades da Bahia.

Fontes:
http://www.antoniotorres.com.br/vida&obra.htm
Imagem = http://br.geocities.com/.../amigos1/marcos/saudade2.jpg

Antônio Torres (1940)


Antônio Torres nasceu na pequena cidade de Junco (hoje Sátiro Dias), no interior da Bahia, no dia 13 de setembro de 1940. Ainda menino, mudou-se para Alagoinhas para fazer o Ginásio, mais tarde foi parar em Salvador, capital baiana, onde se tornou repórter do Jornal da Bahia. Aos 20 anos transferiu-se para São Paulo, empregando-se no diário Última Hora. Lá, mudou de ramo e passou a trabalhar em publicidade. Viveu por três anos em Portugal e atualmente mora no Rio de Janeiro, onde passou a se dedicar exclusivamente à atividade literária. É casado com Sonia Torres, doutora em literatura comparada, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), e tem dois filhos, Gabriel e Tiago.

Aos 32 anos, Antônio Torres lançou seu primeiro romance, Um cão uivando para a Lua, que causou grande impacto, sendo considerado pela crítica “a revelação do ano”. O segundo “Os Homens dos Pés Redondos”, confirmou as qualidades do primeiro livro. O grande sucesso, porém, veio em 1976, quando publicou Essa terra, narrativa de fortes pinceladas autobiográficas que aborda a questão do êxodo rural de nordestinos em busca de uma vida melhor nas grandes metrópoles do Sul, principalmente São Paulo.

Hoje considerada uma obra-prima, Essa terra ganhou uma edição francesa em 1984, abrindo o caminho para a carreira internacional do escritor baiano, que hoje tem seus livros publicados em Cuba, na Argentina, França, Alemanha, Itália, Inglaterra, Estados Unidos, Israel, Holanda, , Espanha e Portugal. Em 2001 a Editora Record lançou uma reedição comemorativa (25 anos) de Essa Terra. Torres, porém, não restringiu seu universo ao interior do Brasil. Passeia com a mesma desenvoltura por cenários rurais e urbanos, como em Um cão uivando para a Lua, Os homens dos pés redondos, Balada da infância perdida e Um táxi para Viena d’Áustria.

Em 1997, Torres decidiu retornar ao tema e aos personagens do consagrado Essa terra. Vinte anos depois, narrador e protagonista voltam à pequena Junco em O cachorro e o lobo, para encontrar uma cidade já transformada pela chegada do progresso. É um romance de fina carpintaria literária que foi saudado pela crítica, tanto no Brasil como na França, onde foi publicado em 2001.

Foi condecorado pelo governo francês, em 1998, como “Chevalier des Arts et des Lettres”, por seus romances publicados na França até então (Essa terra e Um táxi para Viena d'Áustria). Em 2000, ganhou o Prêmio Machado de Assis 2000, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da sua obra. Em 2001, foi o vencedor (junto com Salim Miguel por Nur na escuridão) do Prêmio Zaffari & Bourbon, da 9a. Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, RS, por seu romance Meu querido canibal, no qual Torres se debruça sobre a vida do líder tupinambá Cunhambebe, o mais temido e adorado guerreiro indígena, para traçar um painel das primeiras décadas de história brasileira.

Dando seqüência às suas pesquisas históricas, ele escreveu o romance O nobre sequestrador, que trata da invasão francesa ao Rio de Janeiro em 1711, comandada por René Duguay-Trouin, o corsário de Luis XIV, que sequestrou a cidade durante 50 dias, até que lhe fosse pago um alto resgate para que ela fosse devolvida a seus habitantes. O nobre sequestrador foi finalista no Prêmio Zaffari & Bourbon de 2003.

Em 2006, Antônio Torres publicou o romance Pelo fundo da agulha, com o que fechou uma trilogia iniciada com Essa terra e prosseguida com O cachorro e o lobo. Este livro foi um dos vencedores do Prêmio Jabuti e finalista do Prêmio Zaffari & Bourbon, da Jornada Literária Nacional de Passo Fundo.

Em resumo: autor premiado, com várias edições no Brasil e traduções em muitos países, Antônio Torres é um dos nomes mais importantes da sua geração, com um obra expressiva que abrange 11 romances, 1 livro de contos, 1 livro para crianças, 1 livro de crônicas, perfis e memórias. além de dois projetos especiais (O centro das nossas desatenções, sobre o centro do Rio de Janeiro - e que rendeu um documentário para a TV Cultura, São Paulo -, e O circo no Brasil, da série História Visual, da Funarte, Fundação Nacional de Arte).

Bibliografia
Um cão uivando para a lua - 1972
Os homens dos pés redondos - 1973
Essa terra - 1976
Carta ao bispo - 1979
Adeus, velho - 1981
Balada da infância perdida - 1986
Um táxi para Viena d’Áustria - 1991
O centro das nossas desatenções - 1996
O cachorro e o lobo - 1997
O circo no Brasil - 1998
Meninos, eu conto - 1999
Meu querido canibal ¾ 2000
Essa Terra (edição comemorativa de 25 anos) - 2001
O Nobre Sequestrador - 2003
Pelo Fundo da Agulha - 2006
Menu, o gato azul - 2007 (história para crianças)
Sobre pessoas - 2007 (crônicas, perfis e memórias)

Fontes:
http://www.antoniotorres.com.br/vida&obra.htm

Estante Virtual nas Bienais do Livro


Estante Virtual na Bienal do Livro de Curitiba

Do dia 27 de agosto ao dia 4 de setembro Curitiba sediou a sua primeira Bienal do Livro. E a Estante Virtual esteve lá, representada por seis dos mais de 50 livreiros curitibanos já conectados ao site. Foi a primeira presença física do portal nos eventos do setor!

O stand contou com quatro sebos e dois livreiros virtuais. Foram eles a Tomorrow Brasil, Livraria Fênix, Livro e Cia, Acervo Almon, Sebo Releituras e Espaço Alternativo. Cada um colocou à venda uma amostra dos seus livros, que também estavam cadastrados no portal. Além disso, o stand contou com 6 computadores para que os visitantes da bienal pudessem acessar o site e fazer seus pedidos dali mesmo, fazendo jus ao anúncio que colocamos na entrada do stand: "Bem vindo! Nosso stand tem 20 milhões de livros!"

Segundo os livreiros participantes, os visitantes que não conheciam o portal adoraram a novidade de ter um país inteiro de sebos ao alcance do mouse. E os que já conheciam, mostraram grande satisfação em saber que a Estante também estava presente fisicamente no evento, transcendendo o mundo virtual.

Estante Virtual na Bienal do Livro do Rio de Janeiro

Às vésperas do aniversário de 4 anos (20 de outubro próximo) presença da Estante Virtual no stand R20 do Pavilhão Verde.

Tente imaginar: uma estante gigante, com 4 metros de altura por 5 metros de largura, que irá abrigar livros vindos de sebos de todo o Brasil. Inclusive neste momento, há algumas centenas de livros nos céus, rumando de diversas partes do país para o Rio. E claro, além dos livros, voarão também os livreiros. Em cada um dos dias da Bienal, no stand, livreiros de diferentes partes do Brasil, que estarão disponíveis para tirar dúvidas sobre livros, pedir sugestões de leitura, enfim, uma verdadeira consultoria literária.

E não é só. Oferecerem um serviço totalmente inédito nas Bienais: a troca de livros. Como funciona? Leve para a Bienal um livro que você já leu e troque no stand por qualquer livro da estante gigante. E ao final do evento, os livros que estiverem no stand serão doados para estimular a leitura em alguma instituição ou comunidade que os próprios visitantes do stand vão indicar.

Já aqueles que, mesmo com tanta coisa "ao vivo", quiserem acessar a estante virtual, haverá um pool de computadores para buscas de outros milhões de livros que permaneceram em solo, nas outras 254 cidades onde há livreiros conectados ao portal.

E se você estiver muito cansado - afinal a Bienal é muito grande - , há também alguns sofás para sentar e relaxar, enquanto lê algum livro que poderá literalmente puxar da estante na hora (com a mão mesmo!). No sofá, terá a companhia de uma grande personalidade da literatura brasileira.

XIV Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro

Data: 10 a 20 de setembro de 2009

Local: Riocentro

Avenida Salvador Allende, nº 6.555 - Barra da Tijuca

nosso stand R20, Pavilhão Verde

Ingressos a R$ 12 inteira e R$ 6 meia

Fonte:
Newsletter Estante Virtual. Edição Nº 25 - 09 de setembro de 2009. Colaboração de André Garcia, diretor e criador da Estante Virtual, que está no site http://www.estantevirtual.com.br/

Antonio Olinto (A Viagem)



Já estavam no mar há muito tempo, Suliman, que marcava os dias a faca numa pilastra de madeira, dizia que eram vinte e oito, quatro semanas, certa manhã o navio amanheceu parado, Mariana saiu para o convés, o mar parecia um pano estendido até lá longe, nada se mexia, as velas pendiam murchas, não havia vento nem ondas, os homens se debruçavam sobre a amurada, a filha de Dona Júlia riu no seu jeito e disse:

- Já era tempo, não agüentava mais aquelas sacudidelas o dia inteiro.

Suliman olhou para ela sério:

- Não diga o que não sabe, moça. O pior que pode acontecer num veleiro é falta de vento.

Contudo houve uma alegria geral naqueles primeiros dias, Mariana brincou mais à vontade, o mulato pernambucano bateu num atabaque até tarde, Maria Gorda jogou uma coisa no mar, seria presente para Iemanjá?, a avó lembrou-se com nitidez de uma velha imagem, a do momento em que o homem que a levara de canoa de Abeokutá a Lagos apontara para longe e dissera: Olha. A lagoa estava tão quieta como este mar de agora, e o que vira fora o conjunto de casas da cidade em que o tio a vendera. Durante vários dias o vento não veio, o mar não se moveu, depois de uma semana de imobilidade o capitão pediu que todos se reunissem no convés, apareceu e explicou:

- Estamos numa zona de calmaria. Nossa água dá para mais de oito meses e quanto à comida não há problema, cada um trouxe o que podia e o navio tem provisões para muito tempo.

Os homens comentavam que não se via mais o Cruzeiro do Sul, durante o dia muita gente pescava, apareceram caniços e anzóis, um crioulo forte chamado Rodrigo pegava peixes enormes e um dia descobriu que mariscos se haviam agarrado ao casco do navio imóvel, desceu até lá numa corda, arrancou os mariscos, pediu a Epifânia que os fervesse e juntou amigos para partilharem do prato. Mariana olhava o céu, nunca vira tantas estrelas, algumas riscavam a noite, o capitão conversava com ela e falava-lhe dos outros planetas, das estrelas cadentes, de outros mundos, de sóis, de cometas.

A alegria dominou durante outra semana ainda o navio, mas foi-se diluindo em pedaços cada vez maiores de silêncio, Mariana começou a sentir moleza no corpo, mulheres e crianças deixaram de sair normalmente ao convés, só os homens é que andavam de um lado para o outro, ficavam olhando o mar parado, alguns mascavam fumo, à noite quase todos bebiam cachaça, então voltava a aparecer um pouco de alegria. O primeiro a ficar doente foi o mulato de Pernambuco, um dia não saiu da cama, o capitão foi vê-lo, a menina ouviu a palavra desinteria, e logo havia mais três doentes, uma das irmãs Borges em vez de coco fez sangue , levaram o vaso para o capitão ver, apareceram remédios surgidos não se sabia de onde, Epifânia tratou de Luzia Borges com todo o cuidado, a avó não abandonava o seu lugar, imóvel num canto da cama, às vezes encolhida, Epifânia era quem fazia agora toda a comida, a água tinha hora certa, vinha numa tina grande que um marinheiro trazia e distribuía para cada um, Mariana voltou a subir ao convés, encontrou todos os malês curvados no chão, rezando em direção a Meca, levantavam-se de vez em quando, tornavam a se ajoelhar, Sulivan ficara mais magro, suas roupas davam a impressão de ter crescido, Mariana acostumou-se a passar horas olhando o mar, Mariana e o mar, perdia-se nele, esquecia as coisas, revia a enchente do Piau, a cara de Padre José, os olhos de vidro do carneiro morto, sentia-se tonta em certos momentos e então voltava a ver o mar, Mariana e o mar, parecia-lhe que o navio se movimentava, mas não, tudo estava quieto, no dia seguinte levou um pedaço de pano para um lugar mais alto, perto do leme, estendeu o pano sobre uma tábua, deitou-se e ficou olhando o mar assim, os dois olhos viam o horizonte igual, perdeu a fome, Epifânia teve de ir buscá-la, deu-lhe comida à força, Emília e Antonio brincavam menos, o cheiro lá embaixo começava a ficar forte, era de azedo, coisa podre, depois de alguns minutos a gente se acostumava, não pensava mais naquilo, a farinha com arroz se atulhava na garganta, fazia a menina tossir, não havia água para lavar as mãos depois da comida, Mariana regressava a seu posto e esperava anoitecer, muita gente passava a noite no convés, de manhã quase ninguém saía do lugar, o capitão distribuía água e bolachas, a menina ia ver a mãe e a avó, o número de doentes aumentava. Epifânia enxugava o rosto dos de cama, limpava a boca de Luzia Borges, uma noite os tambores soaram com mais força, houve dança no meio do porão, marinheiros com facas na cintura ficaram parados vendo os passageiros dançarem, um dia Mariana não conseguiu acordar direito, a mãe deu-lhe água e biscoitos, mais tarde ferveu um pedaço de carne-seca, a menina mastigou com cuidado, não sabe quanto tempo esteve ausente da vida no navio, lembra-se de uma noite de luar, então já estava boa, o mar parecia continuar o convés, a água se imobilizava iluminada.

A primeira morte ocorreu quando a calmaria durava mais de mês, foi de um preto de Alagoas, tinha sido dos mais silenciosos, deixara de comer, como viajava sem família ninguém lhe deu atenção, amanheceu morto, o capitão mandou que o corpo fosse levado para cima dentro de um lençol, Mariana seguiu o acompanhamento, no convés os rostos olhavam para a cara do morto, um marinheiro rezou um Padre-Nosso e uma Ave-Maria em voz alta, os homens que seguravam o lençol levaram-no até a borda do navio, deixaram o morto escorregar, mas o corpo não afundou, ficou boiando, daí a pouco havia peixes que atacavam o cadáver, o capitão disse que deviam ter amarrado um peso no morto, só que não havia muita coisa pesada a bordo que pudesse ser dispensada, os homens ficaram olhando o morto ser arrastado pelos peixes, depois cada um voltou para sua cama, poucos foram os que , na amurada, continuaram de olhos na luta sobre o mar. O segundo morto foi o mulato de Pernambuco, acharam-no no convés com pedaços de biscoito nas mãos, a boca parecia ter sido detida no ato de mastigar, quando seu corpo caiu nas águas um pedaço de pano saiu boiando sobre o liso da superfície. Morreu em seguida a menina Joana, irmã de Abigail, tinha chorado muito durante dias seguidos, uma tarde ficou quieta. Depois de três meses sem vento seis pessoas haviam morrido, Catarina fazia agora questão de subir de manhã para o convés, tomava sol apoiada pela filha e pelos netos, no fundo do pensamento passara a só ver a chagada a Lagos, nada mais existia, mortes não a tocavam, sol e comida, sim, eram importantes, comia com decisão, mastigava bem a farinha e o arroz, às vezes um orobô, pedia que a levassem para a cama no momento em que o sol ficava demasiadamente forte, fechava os olhos e concentrava-se na espera. Diziam que o navio se movera fora do caminho, uma tarde morreu um dos malês, os outros rezaram para o morto, amarraram-lhe os pés, com pedaços de pedra achados no porão, o corpo mergulhou no mar num mergulho sem ruído, Mariana arrastava-se muitas vezes pelo chão, a mãe segurou-lhe o rosto um dia, olhou-a espantada, disse:

- Minha filha, você está com treze anos.

Estava. Sentia-se mais velha, só queria conversar com Abigail, que já era moça, mas de vez em quando corria para perto dos irmãos menores, doida para brincar de roda, ou passava horas sem dizer nada, fitando os objetos, as pessoas, o mar era como se fosse um enorme assoalho brilhante, dava a impressão de que qualquer um podia andar por cima dele. Notou que a comida tinha diminuído, o capitão andava com um revólver aparecendo e chegou o dia em que morreram duas pessoas de uma vez. Mariana estava meio dormindo quando ouviu a notícia. A voz de Maria Gorda tinha um tom de susto:

- Esta noite partiram dois: o Sebastião e o filho do Ribeiro.

A menina foi ver o lugar em que dormia a família Ribeiro, faltava o menino que sempre estivera no grupo, quis achar o Sebastião, um perto magro, de barbicha, e não o encontrou. Soube que os dois tinham sido atirados ao mar durante a noite.

O vento, quando começou a chegar, não parecia suficiente para empurrar o navio. O ar se agitou ligeiramente por muitos dias, os marinheiros entraram numa atividade incessante, quase ninguém comia mais a bordo, o cheiro de fezes se acentuava em certos lugares, o capitão comandou três homens para limparem tudo, jogavam água no porão, no convés, esfregaram o chão com vassouras, mesmo assim morreram três pessoas numa só tarde, num momento em que as ondas se formavam e o navio começava a jogar. Duas velhas e um velho, em que Mariana jamais havia reparado, envoltos em lençóis foram levados para cima, a capitão rezou por eles, desta vez o barulho dos corpos no mar soou nítido no início da noite. E logo os tambores bateram com violência, a avó percebeu que era o toque dos eguns, o axexê dos mortos, mas também era um toque de alegria, dos eguns passaram os atabaquistas a bater para Iansã, Abigail saltou para o meio do porão, dançou forte no assoalho velho, agitou as mãos num abandono, cantou em iorubá. Na manhã seguinte o navio andava, as velas se sacudiam no ar, as cordas balançavam de um lado para o outro, o convés ficou cheio, os rostos negros tomavam sol, pouco se falava, ao meio-dia a comida foi comida com entusiasmo, Epifânia botou dendê no peixe seco, reuniu os filhos ao redor de si, Mariana, Emílai e Antonio comeram em silêncio, as mãos pegavam no peixe, punham farinha no dendê, amassavam tudo até que se formasse um bolo, depois metiam na boca, Emília era a mais delicada, não limpava as mãos no vestido, Mariana encostou-se no corpo da avó depois de comer, ficaram ali de torpor, sentindo o vento que atravessava o convés.

O navio pegou vento durante muitos dias, às vezes vento forte, poucos podiam atravessar o convés em segurança, Maria Gorda levou um tombo. Mariana lembrou-se da queda de Susana na ladeira da Bahia, ela rira de não conseguir parar, hoje não achava graça nas coisas, as contrário, apesar do vento e da animação que voltava a bordo, a menina continuava a sentir o corpo mole, sem vontade de fazer coisa alguma, comer chegava a ser esforço. O vento já soprava há suas semanas quando morreu um marinheiro, foi a última das mortes na viagem, diziam que o homem passara dias sem tomar conhecimento do mundo, a reunião para jogar o corpo no mar se fez quase com raiva, os passageiros olhavam sérios para o lençol, cada um voltado para o rosto quase roxo do morto, carecia atirá-lo o mais depressa possível nas águas, enquanto o faziam era como se soubessem que não haveria outras mortes e tornava-se necessário acabar depressa com aquela, dispor do cadáver rápido e concentrar a atenção no vento que lavava o navio em subidas e descidas sobre as ondas, a tempestade que se abateu sobre ele naquela noite não provocou medos, vento e chuva não permitiam que a embarcação se detivesse, a calma da manhã seguinte foi que assustou, mas o vento continuava a bater nas velas.

Fonte:
OLINTO, Antonio. A casa da água. RJ: Bloch, 1969
Imagem = Toucan Art