sábado, 9 de julho de 2011

Alexandre Herculano (A Tempestade)


Sibila o vento: os torreões de nuvens
Pesam nos densos ares:
Ruge ao largo a procela, e encurva as ondas
Pela extensão dos mares:
A imensa vaga ao longe vem correndo
Em seu terror envolta;
E, dentre as sombras, rápidas centelhas
A tempestade solta.
Do sol no ocaso um raio derradeiro,
Que, apenas fulge, morre,
Escapa à nuvem, que, apressada e espessa,
Para apagá-lo corre.
Tal nos afaga em sonhos a esperança,
Ao despontar do dia,
Mas, no acordar, lá vem a consciência
Dizer que ela mentia!

As ondas negro-azuis se conglobaram;
Serras tornadas são,
Contra as quais outras serras, que se arqueiam,
Bater, partir-se vão.
Ó tempestade! Eu te saúdo, ó nume
Da natureza açoite!
Tu guias os bulcões, do mar princesa,
E é teu vestido a noite!
Quando pelos pinhais, entre o granizo,
Ao sussurrar das ramas,
Vibrando sustos, pavorosa ruges
E assolação derramas,
Quem porfiar contigo, então, ousara
De glória e poderio;
Tu que fazes gemer pendido o cedro,
Turbar-se o claro rio?

Quem me dera ser tu, por balouçar-me
Das nuvens nos castelos,
E ver dos ferros meus, enfim, quebrados
Os rebatidos elos.
Eu rodeara, então o globo inteiro;
Eu sublevara as águas;
Eu dos vulcões com raios acendera
Amortecidas fráguas;
Do robusto carvalho e sobro antigo
Acurvaria as frontes;
Com furacões, os areais da Líbia
Converteria em montes;
Pelo fulgor da Lua, lá do norte
No pólo me assentara,
E vira prolongar-se o gelo eterno,
Que o tempo amontoara.
Ali, eu solitário, eu rei da morte,
Erguera meu clamor,
E dissera: «Sou livre, e tenho império;
Aqui, sou eu senhor!»

Quem se pudera erguer, como estas vagas,
Em turbilhões incertos,
E correr, e correr, troando ao longe,
Nos líquidos desertos!
Mas entre membros de lodoso barro
A mente presa está!...
Ergue-se em vão aos céus: precipitada,
Rápido, em baixo dá.

Ó morte, amiga morte! é sobre as vagas,
Entre escarcéus erguidos,
Que eu te invoco, pedindo-te feneçam
Meus dias aborridos:
Quebra duras prisões, que a natureza
Lançou a esta alma ardente;
Que ela possa voar, por entre os orbes,
Aos pés do Omnipotente.
Sobre a nau, que me estreita, a prenhe nuvem
Desça, e estourando a esmague,
E a grossa proa, dos tufões ludíbrio,
Solta, sem rumo vague!

Porém, não!... Dormir deixa os que me cercam
O sono do existir;
Deixa-os, vãos sonhadores de esperanças
Nas trevas do porvir.
Doce mãe do repouso, extremo abrigo
De um coração opresso,
Que ao ligeiro prazer, à dor cansada
Negas no seio acesso,
Não despertes, oh não! os que abominam
Teu amoroso aspeito;
Febricitantes, que se abraçam, loucos,
Com seu dorido leito!
Tu, que ao mísero ris com rir tão meigo,
Caluniada morte;
Tu, que entre os braços teus lhe dás asilo
Contra o furor da sorte;
Tu, que esperas às portas dos senhores,
Do servo ao limiar,
E eterna corres, peregrina, a terra
E as solidões do mar,
Deixa, deixa sonhar ventura os homens;
Já filhos teus nasceram:
Um dia acordarão desses delírios,
Que tão gratos lhes eram.
E eu que velo na vida, e já não sonho
Nem glória nem ventura;
Eu, que esgotei tão cedo, até às fezes,
O cálix da amargura:
Eu, vagabundo e pobre, e aos pés calcado
De quanto há vil no mundo,
Santas inspirações morrer sentindo
Do coração no fundo,
Sem achar no desterro uma harmonia
De alma, que a minha entenda,
Porque seguir, curvado ante a desgraça,
Esta espinhosa senda?
Torvo o oceano vai! Qual dobre, soa
Fragor da tempestade,
Salmo de mortos, que retumba ao longe,
Grito da eternidade!...

Pensamento infernal! Fugir covarde
Ante o destino iroso?
Lançar-me, envolto em maldições celestes,
No abismo tormentoso?
Nunca! Deus pôs-se aqui para apurar-me
Nas lágrimas da terra;
Guardarei minha estância atribulada,
Com meu desejo em guerra.
O fiel guardador terá seu prémio,
O seu repouso, enfim,
E atalaiar o sol de um dia extremo
Virá outro após mim.
Herdarei o morrer! Como é suave
Bênção de pai querido.
Será o despertar, ver meu cadáver,
Ver o grilhão partido.

Um consolo, entretanto, resta ainda
Ao pobre velador:
Deus lhe deixou, nas trevas da existência,
Doce amizade e amor.
Tudo o mais é sepulcro branqueado
Por embusteira mão;
Tudo o mais vãos prazeres que só trazem
Remorso ao coração.
Passarei minha noite a luz tão meiga,
Até o amanhecer;
Até que suba à pátria do repouso,
Onde não há morrer.

Fontes:
Portal de Domínio Público
Imagem = http://www.marcusmv.com.br

Vicência Jaguaribe (A Decisão)


Não valia a pena ficar batendo boca. Ela via o mundo de maneira diferente. Tinha uma vida para fora. Tinha outra vida para dentro. A vida para fora, ela a vivia de acordo com as normas sociais e com os valores da família. A vida para dentro, ela a vivia seguindo suas próprias leis. O diabo era quando essas duas vidas se chocavam. Abria-se um campo de batalha. Mas ela sabia que logo logo precisaria decidir.

O conflito maior ela travava com o noivo, que desejava casar sem demora. Era juiz em começo de carreira, fora nomeado para uma cidadezinha nos confins do estado e queria assumir a comarca já com a esposa do lado. Ela terminava o Curso Médio e queria ingressar na universidade. Mas, pelo que estava vendo, era uma coisa ou outra.

Gostava do noivo, isto é, gostava de conversar com ele, de estar com ele, mas não sentia a paixão de que as amigas falavam. Nem se imaginava em uma cidadezinha do interior, limpando a casa, cozinhando para o marido e, um pouco mais adiante, cuidando de filhos. Quando via uma família feliz – pai, mãe e filhotes –, arrepiava-se. Não. Não nascera para isso. Podia até ser que, mais adiante, encontrasse alguém com quem pudesse dividir alguns momentos da vida. Dividir a vida toda, não, muito menos a casa. Seria cada um no seu muquifo. Mas o namorado tinha pressa, e os pais – meu Deus! – não admitiam nem em sonho que rejeitasse aquele partido.

Partido! Por que chamam as pessoas casadouras de partido? O bom e o mau partido! Pelo que ela sabia, essa palavra se originara, por derivação imprópria ou conversão, do adjetivo partido, isto é, algo quebrado, fragmentado, que se dividiu em partes. Vem a palavra da fonte latina – part/us, que significa “que partilhou, que tomou o seu quinhão”. Isso pode querer dizer que em um casamento os cônjuges devem partilhar tudo: o material e o imaterial; o que é bom e o que é ruim. Mas pode significar também que devem tomar para si parte do outro. Não, ela não queria dividir-se como se divide um espólio, para que alguém se tornasse dono de uma parte do seu ser. Ela se queria inteira, para tomar suas decisões, para resolver o que fazer de sua vida.

Fora criada ouvindo que o destino da mulher é o casamento. É a procriação. Uma mulher sem marido e sem filhos é uma mulher incompleta. Ela não pensava assim. É verdade que não desejava viver sozinha, mas ainda não era hora para tomar uma decisão tão radical. Acabara de completar dezoito anos e ia prestar vestibular, disputando uma vaga no curso de História. Tinha certeza de que seria aprovada. Aí, então, largaria tudo, para casar e morar longe dos centros intelectuais? Para que, então, estudara tanto, dedicara-se tanto aos livros. Não fazia sentido. A mãe já dissera que, se ela decidisse pelos estudos e despachasse o noivo, teria que arranjar um emprego para se sustentar enquanto fizesse a faculdade. Contasse somente com casa, comida e roupa lavada e engomada. Mais nada.

A mãe apostava no seu gosto por roupas e sapatos caros, na sua ânsia de comprar, principalmente livros e discos. Jurava que ela não seria capaz de renunciar à vaidade, à vida fácil; trabalhar e privar-se das coisas de que gostava. Mas a mãe se enganava. Mostraria aos pais que tinha um objetivo na vida, que desejava crescer como pessoa, por seus próprios méritos. O casamento ficaria para depois.

Queria falar com o noivo pessoalmente. Não lhe daria a notícia por carta nem por telefone, por isso esperou que ele fizesse uma de suas viagens periódicas para visitar a família e revê-la. Por mais que temesse sua reação, preferia falar cara a cara. Sabia que ele sofreria, pois sempre a amara muito. Tinha certeza de que ele tentaria o impossível para dissuadi-la. Mesmo assim, preferia enfrentá-lo. E tiveram a conversa definitiva.

A reação do rapaz foi surpreendente. Parecia até que já aguardava aquele desfecho. Agiu como se ela fosse mais uma namoradinha de fim de semana, com quem não tivesse nenhum compromisso mais sério. Desejou-lhe boa sorte nos estudos. Deixou-a perplexa, mas ao mesmo tempo tranquilizada. O problema a enfrentar não seria tão grande quanto pensara. Teria que entender-se somente com os pais. Mas no fundo achava que a reação dele não fora normal. Havia alguma coisa de que ela não sabia naquela história. Ah! se havia!

Não foi surpresa nem para ela nem para ninguém sua aprovação no vestibular. Também não foi surpresa para ela – mas só para ela – a notícia de que ele estava de casamento marcado com a filha única de um fazendeiro rico da região. Bem que desconfiara de que havia alguma coisa por trás daquela sua reação, melhor dizendo, da sua falta de reação ao fim do compromisso com ela. Dizer que ela não sentiu nada quando soube seria mentir. Sentiu, sim, uma leve mordida em seu amor próprio, mas foi coisa de momento. Logo mergulhou de cabeça nos estudos, conheceu gente nova, fez amizades e sentiu que tomara a decisão certa. Logo se engajou em pesquisas e assim que o tempo permitiu candidatou-se a uma bolsa de iniciação científica, que lhe rendia algum dinheiro todos os meses.

Lembrava-se do ex-namorado? Cada vez menos. E, sempre que isso acontecia, a lembrança vinha acompanhada de uma sentença que ouvira muitas vezes de uma pessoa da família: Coração de homem é terra que ninguém pisa.

Fonte:
Texto enviado pela autora

J.B.Xavier (O Camelô)


Tá vendo esse vidro, seu moço?
Ele é meio esverdeado,
Mas num é que foi pintado,
É que lá dentro ele tinha
Mastruço de qualidade,
Misturado com Arnica
Com essa nem vô rimá,
Mas só quero te alembrá
Que esse chá muda a idade
Do véio mais incapais,
E depois de dois, três gole
Ele aumenta sua prole
Como se fosse um rapais!

Pois te digo ainda mais:
Tenho Gengibre Moída,
Pomada prarca caída,
Cipó Mil Home também!
Tenho chá de Erva Cidrêra,
Chá de Boldo e Agrião,
Chá de Losna e de Alfavaca
E chá para dor nas cadêra.
Remédio pro coração?
Tenho de tudo, variado,
Um oleozinho dormido
Que tu tem que acreditá
Que é o meu mais vendido.
Com ele já vi curá
As cicatriz das chifrada
De muito home traído.

Veja só esse outro aqui
Noutro dia até vendi
Pruma madame embuchada
Que queria se livrá
Daquela baita enrascada.
Tu sabe que isso é difícir!
E que bom é só fazê
Mais depois da coisa feita
Quem fica assim, na suspeita
Costuma se escafedê.
Tasquei esse óinho nela!
Depois dei um chá de Losna
Arrematei com Alecrim,
Misturei então Banchá
Depois botei Camomila
E de Alcachofra um pouquinho,
E fui picanu miudinho
A Folha de Abacateiro
Cum folha de laranjêra.
Dei uma esquentada ligêra,
Misturei Erva do Bicho
Com Raiz de Carrapicho
Mais Erva de Macaé,
Juntei um pouco de Guaco
E pus mais Alho Moído,
Te digo, tava fedido,
E prá mode miorá
Aquele fedor disgramado,
Misturei com Guaçatonga
E um pouco de Guaraná.
Bati tudo com Canela
Tornei batê e dei préla.
E esperei ela tomá.
A mulé saculejô,
Saiu fumaça do ovido,
E dispois fumaceou,
Como o trem da minha terra
Fumaceia quanu sobe
As rampa daquelas serra.
E ficô toda amarela,
Depois foi ficanu inchada
Pensei que fosse morrê.
E deu três passo prá trais
Arregalô bem os zóio,
Como quem viu satanais
Depois pegou esse óio
Pagô e deitô a corrê.
Não tenho curpa de nada,
Porque foi ela que quis,
Mas daquela infeliz
Nada mais há de nascê.

Tenho tamém Carobinha
Depurativo do sangue,
Que é bom tamém pro intestino,
Tamém tenho Cavalinha
Que prá mim é como ouro,
Mió que o Carapiá!
Tenho até Chapéu de Couro
Que melhora até o fel,
E que diz que cura tudo.
Tenho tamém esse Mel
Que é santo se for tomado
Com chá de Cipó Cabeludo.

Prá quem tem o sangue doce,
Eu faço a combinação:
Pata de Vaca, Ipê Roxo,
Pedra ume e Graviola,
Com carqueja e com Gervão.
Tá tudo nesse potinho
Que mermo pequenininho
Prá diabete é a solução!

Gervão, é tamém pros figo!
Vô te contá como amigo:
Não fica perto de gente
Quando tomá o Gervão,
Se tu tem prisão de ventre.
Tamém tenho Quina-Quina
E Casca de Romã Seca,
Tenho Salvia e Sabugueiro
Sassafrás, Salsaparrilha
Que combate até a gota.
E se tu tem dor na vrilha
Ou tem bolinha na boca
Leva aqui Sete Sangria
Toma um pôco todo dia
Que tu há de miorá.
Mas presta muita atenção,
Tu não vá me errá a mão
Na hora de misturá.
Mió levá Unha de Gato,
Que pode sê reumatismo,
Mais se o pobrema fô sangue
Ou até dor de barriga
Mió tu levá Urtiga
E dela fazê um chá!
Mais ó, prestenção e num teima
Num vai nela se encostá
Porque essa danada queima!
Vai levá? Pois pêra aí,
Que a bula eu vô buscá
Onde está as instrução
De como se misturá!

E o sinhô, que tá tossinu?
Chega mais perto mermão!
E pode tirá o capuz!
Essa gripe vai embora
Assim que o sinhô comprá
Esse chá de Alcaçus!
O seu pobrema é de pele?
Meu amigo, não se afoba,
Veja aqui nesse vidrinho
Um chazinho de Andiroba.
Esse acaba inflamação,
E acaba as doença no cerne,
Pois mesmo assim, diluidinho
Ele acaba até com verme.

Tenho Óleo de Aroeira,
Chá de Arruda e Assa-Peixe,
Só te peço que não deixe
De tomá na hora certa.
Tenho Chá de Cajueiro,
Pomada de Boldo Chileno,
Cana do Brejo e Carqueja .
Tarvez, quem sabe tu teja
Precisanu de um laxante,
Que é prá mode tu sortá!
Cipó de Cascara Sagrada,
É que faz dá uma sortada...
Então tenho aqui prá tu
Essa bebida arretada
Que vai te sortá o...pé!
Ô será que teu pobrema
É só dá uma levantada
Para podê namorá?
Tenho aqui a solução,
Que co teu pobrema acaba,
Contra a falta de tesão
Tome chá de Catuaba.

Eu tenho Cordão de Frade
Que é pramode tu mijá,
Tenho Garra do Diabo,
Capim Cidrão, Fayuiá,
Tem Erva de Macaé,
Passiflora, Pitangueira,
E Semente de Butiá.
Tenho Calêndula e Tília
Milefólio e Douradinha,
Tenho Artemísia e Bardana
Que é prá boa digestão,
Pirapora e Carobinha,
E Erva de São João.
Chegue mais perto seu moço,
Prás moça não escuitá.
Mas tenho tamém picão!
Que apesar do nome feio
Só serve prá digestão!
E ainda tenho solução
Feita só para quem ama,
Seu nome é marapuama
Que deixa forte e machão!

E tu, de mão levantada
Pode falá, senhorita!
No que posso lhe servi?
Como? Repete a pergunta
E chega mais perto, se junta
Aqui, com esse povão.
Isso! Agora me diga
Prá o que a minha amiga
Deseja uma solução?

“Ouvi que o senhor tem remédio
para quem está amando!
Pois eu to amando, seu moço,
Sofrendo no coração!
Eu tô no fundo do poço!
Tô querendo alguma erva
Que acabe co que me enerva
E me tire desse fosso!”

Pois óia aqui senhorita,
A erva mais milagrosa
A menina já tomô.
Nunca vi erva mais forte
do que a erva do amô...
O amô não vem em vidrinho,
As veis vem devagarinho,
Otras veis num furacão.
Depois ele toma conta
E arrasa co coração!
O amô foi Deus que inventô
Quando o mundo Ele criô
Prá vida ficá bonita!
E dessa remediarada
Que tenho aqui nessa mala
Se não quizé num acredita,
Não tem nenhum pro seu caso.
Num vá pensá que é descaso
De camelô deslexado!
É que o amô foi inventado
Lá pelo sexto dia.
Deus tava em grande euforia
Quando acabô de inventá,
Mas tamém tava cansado,
E parô prá descansá.
Aí veio o sétimo dia,
Que fez virá feriado!
No oitavo dia o Senhor
Foi embora deste mundo
Deixando o amô criado,LinkEsperando vê ele crescê.
Mas Deus, muito atarefado,
Se foi sem ter ensinado
Como um amô desfazê!

Fontes:
JB Xavier
Imagem = Wikipedia

Cantando ao Som das Setilhas (Debate pela Internet) Parte 1


Este debate pela Internet em Setilhas, originou um livro de 245 estrofes. Cantando ao Som das Setilhas que serão publicadas no blog, em 18 partes.
A Introdução foi feita por Carolina Ramos (SP).

São 7 poetas:
A. A. (Antonio Augusto) de Assis (PR),
Arlindo Tadeu Hagen (MG),
Delcy Rodrigues Canalles (RS),
Gislaine Canales (SC),
José Lucas de Barros ((RN),
Prof. Garcia (Francisco Garcia de Araújo) (RN),
Thalma Tavares (Vicente Líles de Araújo Pereira) (SP)

01 – ZÉ LUCAS (RN)
Este primeiro de agosto
nos trouxe nova alegria:
teremos sete poetas
versejando em parceria,
e eu, acordando mais cedo,
abro a luta, mas com medo
de cansar na travessia.

02 – GISLAINE CANALES (SC)
O desafio do dia
unirá bem mais a gente,
este septeto em setilhas,
sinto, vai ser comovente,
com versos do coração,
transbordantes de emoção…
Sigamos, irmãos, em frente!

03 – PROF. GARCIA (RN)
Neste torneio se sente
que esta luta é um grande bem;
em qualquer canto ela está,
de todo canto ela vem,
é o verso de sul a norte,
tornando o vate mais forte
na força que o verso tem.

04 – DELCY CANALLES (RS)
Cada setilha que vem
trazer, de modos diversos,
uma alegria estonteante,
através de lindos versos,
nos causa imensa emoção,
planta, em nós, uma afeição,
que nos leva a universos!

05 – A. A. DE ASSIS (PR)
Na poesia os sete imersos,
sigamos, irmãos, em frente,
enlaçando os nossos elos
numa sólida corrente,
na esperança de ao final
ver crescer o capital
da amizade que une a gente.

06 – ARLINDO TADEU HAGEN (MG)
Se a amizade é que une a gente,
em nome desta amizade,
eu que nunca fiz setilha
troquei a serenidade
dos quatro versos da Trova
pelos sete e a idéia nova
me encheu de felicidade!

07 – THALMA TAVARES (SP)
Estou feliz, é verdade
e este debate promete.
eu já estive entre os quatro
e agora estou entre os sete;
aluno entre professores
nesta escola de primores,
no milagre da Internet.

08 – ZÉ LUCAS
Iremos “pintar o sete”
num quadro de sete cores,
porque, na tinta dos versos,
nós somos sete pintores
seguindo as melhores trilhas
e colorindo setilhas
que são pétalas de flores

09 – GISLAINE CANALES
Esquecendo quaisquer dores,
nossas setilhas serão
como um arco-íris de versos,
com perfumes de paixão…
Nesse jardim diferente,
de uma forma bem luzente,
nascerá muita emoção.

10 – PROF. GARCIA
Cada verso é uma oração,
e é bom que o poeta sinta;
se meu pincel não falhar
vou mostrar como se pinta,
pintando linda aquarela
e em cada canto da tela
um verso com cada tinta.

11 – DELCY CANALLES
O nosso trabalho pinta
tal como um descobridor
de afeição e de amizade,
quase uma forma de amor,
que nos desperta ternura,
que nos conduz à ventura,
que nos iguala em valor!

12 – A. A. DE ASSIS
Que bom que volta o calor
aqui neste Sul gelado…
Agosto chegou tal qual
no Nordeste tem estado:
rapazes pensando em praia,
as moças de minissaia,
deixando o mantô de lado.

13 – ARLINDO TADEU HAGEN
O tempo anda bem mudado:
se está quente… logo esfria…
se está frio… logo esquenta….
No Sudeste – quem diria -
se a gente bem reparar,
é possível desfrutar
as quatro estações num dia!

14 – THALMA TAVARES
É preciso valentia,
ter saúde de leão
para aguentar em São Paulo
a mudança de estação.
Eu, que sou lá do Nordeste,
padeço mais do que a peste
com tamanha variação.
===========
continua…
–––––––––-
Fonte:
José Lucas e parceiros. Cantando ao som das setilhas. Natal/RN: 2011.

Amosse Mucavele (Carta do Aniversariante no dia em que não se fará a festa)


Ontem foi o dia do meu aniversário, comemorei com as 4 paredes que ladeiam o meu quarto,

E hoje, dia em que os Astros advogaram sem uma causa justa, mas com um aviso prévio sendo este o verdadeiro dia do meu aniversário

24 anos completam-se em mim, e eu nem estou ai, neste instante procuro refúgio na imensidão deste poema-assim o julgo eterno.

Tal como a as palavras que o guiam, eu deambulo no vazio do suco que refresca o bolo que vos ofereço

Desculpe a todos que esperavam uma festa.

Agora vos digo – eu não sei organizar uma festa, assim sendo tenho da vossa companhia motivos suficientes para estarmos em festa.

Que zanguem os homens das gargantas abertas, os das barrigas vazias, pois não há mais nada a dizer, por isso sintetizo – eu não sei organizar uma festa,

Depois de uma conversa afiada com a minha mãe no cemitério, onde ,eu fui lhe dar uma água, uma flor, um beijo, e jurar perante ela que eu já sou homem crescido e novo,

Já não sou aquele menino tal como o pai que destruía lares e eu, sendo filho de peixe, sabia nadar até no arreal, e em contrapartida desmanchava prazeres das meninas, brincava com os sentimentos delas. Agora sou um novo homem, 24 poemas me esperam,,, desde já, juro fidelidade às garrafas e aos livros.

E mulheres preciso daquelas divorciadas, humilhadas, mal amadas, pois ontem á noite recebi o antídoto para este veneno chamado traição, e as minhas namoradas do passado que o presente tornou-as Ex. Nem sei onde foi o buscar este prefixo e o futuro chama-as por amigas, elas me amaram e eu as violentei domesticamente no meu pobre quarto de madeira e zinco.,No momento diziam me machucar, eu puxava-lhes as mechas, dava-lhes palmadas, e não tinham onde queixar pois pediam que as machucasse. Ponto final! Eu já não quero brincar ou fazer orgias com os virgens sentimentos destas miúdas.

O que me espera agora é viajar no silêncio de uma garrafa de whisky Old Pascas.

Fonte:
Texto enviado pelo autor
Imagem = http://cronicamendes.blogspot.com/2010_11_01_archive.html

João Scortecci (Eu Sou um Livro)


Eu sou um livro.Justificar

Um exemplar do romance de nome Memórias Póstumas de Brás Cubas, do escritor Joaquim Maria Machado de Assis que nasceu no dia 21 de junho de 1839 e morreu em 29 de setembro de 1908, considerado o maior nome da literatura brasileira.

Fui impresso no ano de 1881, nas Oficinas da Tipografia Nacional, na Cidade do Rio de Janeiro. Tenho pouco mais de 127 anos, muitas páginas e uma belíssima encadernação de luxo. Uma unanimidade em primeira edição com autógrafo e dedicatória em bico de pena.

Estou catalogado no acervo da biblioteca de um importante bibliófilo apaixonado por leitura.

Tive sorte, muita sorte na sua escolha dele por mim. Não sei se vocês sabem, somos nós “livros” que escolhemos leitores. Antes de ganhar notoriedade e referência de obra rara passei um longo tempo em um sebo jogado literalmente às traças. Já escapei de um incêndio, de vazamento de água bem na minha cabeça e de uma ameaça de reciclagem imprudente. Minha morte seria um crime. Felizmente escapei com a sorte de poucos.

Um livro precisa de amigos. Sofremos com destruição por fanatismo religioso e político, roubos, falsificações, reciclagem e contaminação por fungos e bactérias.

Não sou forte e resistente como antigamente. Minhas páginas estão amareladas. É o desgaste natural causado pelos excessos à luz, umidade, temperatura inadequada e inimigos predadores como cupins, traças e roedores.

Gostamos de ficar em prateleiras em local afastado das paredes, ordenados verticalmente, sem acúmulo excessivo. Ventilação e limpeza são indispensáveis para nossa sobrevivência. Não gostamos de muito calor e aperto.

22° C está perfeito. Não precisa também exagerar! Temperatura excessiva faz com que as fibras de celulose percam as suas propriedades de Elasticidade, Flexibilidade e Resistência.

A umidade relativa do ar não deve ultrapassar 60%. Iluminação ambiental de 50 watts é a correta. A luz artificial mais utilizada é a fluorescente. Nunca utilizar luz ultravioleta. Os segredos e mistérios de um livro estão no seu conteúdo.

Dia 29 de outubro é o meu Dia Nacional. Foi escolhido por ser a data de aniversário da fundação da Biblioteca Nacional, que nasceu com a transferência da Real Biblioteca portuguesa para o Brasil.

Um dia de todos os dias e de todos nós. Não se ama um livro vez por outra e muito menos com lapsos de memória.

Eu sou um livro. E você?

Fonte:
Amigos do Livro

Ialmar Pio Schneider (Soneto Póstumo para Vinícius de Moraes)


(data de aniversário do seu falecimento – 9.7.1980)

Quando partiu naquela madrugada,
Vinícius de Moraes, poeta ardente,
Deixou-nos a poesia apaixonada
De alguém que tanto amou, infindamente...

Poemas e sonetos, obra alada
Voando aos corações de toda a gente,
Que do cupido sente uma flechada
Para viver apaixonadamente...
Link
Em todos os momentos convividos
Com suas musas, escreveu os versos
Que todo sempre permanecerão...

Porque jamais hão de ser esquecidos
Estes cânticos belos e diversos
Que entoou o Poeta da Paixão !

Fontes:
Soneto enviado pelo autor
Imagem = Samba Suburbano

Efemérides Literárias de Julho


01 - Morte do escritor e jornalista Carlos Pena Filho (Carlos Souza Pena Filho), em 1960

01 - Morte do advogado, jornalista, professor, escritor e orador Antonio da Silva Jardim, Capivari de Cima (atual Silva Jardim), Nápoles, Itália, em 1891

02 - Nascimento do educador, professor, administrador e ensaísta Antônio de Arruda Carneiro Leão, em Recife, PE, em 1887

02 - Nascimento da escritora Zélia Gattai, em São Paulo, SP, em 1916

02 - Morte do poeta, jornalista e tradutor Paulo Mendes Campos, Rio de Janeiro, RJ, em 1991

03 - Nascimento do escritor José Lins do Rego Cavalcanti, Engenho Corredor, município de Pilar, Paraíba, em 1901

04 - Morte do escritor Monteiro Lobato (José Bento Monteiro Lobato), em 1948

04 - Nascimento do poeta Emílio de Menezes (Emílio Nunes Correia de Menezes), em Curitiba, PR, em 1866

05 - Fundação da Academia Taguatinguense de Letras, em 1986. Patrono da Academia: Castro Alves

05 - Nascimento do antropólogo, professor, biblioteconomista e museólogo Luiz de Castro Faria, em São João da Barra, RJ, em 1913

06 - Morte do poeta Castro Alves (Antônio Frederico de Castro Alves), em 1871

07 - Nascimento do poeta, jornalista, contista e teatrólogo Artur de Azevedo (Artur Nabantino Gonçalves Belo de Azevedo), em São Luís, MA, em 1855

09 - Nascimento do poeta Joaquim de Sousa Andrade, Vila dos Guimarães, MA, em 1833

09 - Morte do poeta, diplomata e compositor Vinicius de Moraes (Marcus Vinicius da Cruz Mello de Moraes), Rio de Janeiro, RJ, em 1980

10 - Morte do jornalista, poeta, ensaista, memorialista e folclorista Augusto Meyer, Rio de Janeiro, RJ, em 1970

11 - Nascimento de Sérgio Buarque de Holanda, em São Paulo, SP, em 1902

11 - Morte do Advogado, jornalista, poeta, ensaísta e tradutor, Guilherme de Andrade de Almeida, em São Paulo, SP, em 1969

11 - Morte de Afonso Celso (Afonso Celso de Assis Figueiredo Júnior) no Rio de Janeiro, RJ, em 1938

12 - Nascimento da escritora e dramaturga Edla Van Steen, Florianópolis, SC, em 1936

12 - Nascimento do jornalista, contista, novelista, romancista e ensaísta Orígenes Lessa, em Lencóis Paulista, SP, em 1903

13 - Morte do jornalista, contista, novelista, romancista e ensaísta Orígenes Lessa, no Rio de Janeiro, RJ, em 1986

16 - Morte do jornalista, escritor e acadêmico, Barbosa Lima Sobrinho (Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho), em 2000

18 - Dia do Trovador, em homenagem ao poeta carioca Gilson de Castro (que, mais tarde, adotaria o pseudônimo literário de Luiz Otávio)

18 - Morte de Gilberto Freyre (Gilberto de Mello Freyre), no Recife, PE, em 1987

22 - Nascimento do jornalista e escritor José Rodrigues Leite e Oiticica, em 1882

22 - Nascimento do sociólogo, político marxista, professor e escritor Florestan Fernandes, São Paulo, SP, em 1920

24 - Nascimento do advogado, jornalista, poeta, ensaísta e tradutor Guilherme de Andrade de Almeida, em Campinas, SP, em 1890

24 - Nascimento do filósofo, escritor anti-materialista e anti-relativista Raimundo de Farias Brito, São Benedito, CE, em 1862

25 - Dia Nacional do Escritor

26 - Nascimento do jornalista, poeta e ensaísta Cassiano Ricardo Leite, São José dos Campos, SP, em 1895

26 - Nascimento do economista, escritor, pensador e político, Celso Monteiro Furtado, em Pombal, PB, em 1920

26 - Morte do jornalista, jurista e Academico Clóvis Beviláqua, aos 84 anos, Rio de Janeiro, RJ, em 1944

28 - Nascimento do historiador Manuel Querino (Manuel Raimundo Querino), em Santo Amaro, Bahia, em 1851

29 - Nascimento do antropólogo Roberto DaMatta (Roberto Augusto DaMatta), em Niterói, RJ, em 1936

30 - Nascimento do poeta Mário Quintana (Mário de Miranda Quintana), Alegrete, RS, em 1906

30 - Morte do jornalista, escritor, folclorista e antropólogo, Luis da Câmara Cascudo, Natal, RN, em 1986

31 - Nascimento do jornalista e escritor Ignácio de Loyola Lopes Brandão, em Araraquara, SP, em 1936

31 - Morte do poeta José Basílio da Gama, em Lisboa, Portugal, em 1795

Fontes:
Amigos do Livro
Imagem = http://www.enlaescuelademabel.com/

Monteiro Lobato (Viagem ao Céu) V – O Telescópio


Por longo tempo lá ficaram na varanda ouvindo as histórias do céu. Dona Benta parecia um Camilo Flammarion de saia. Esse Flammarion foi um sábio francês que escreveu livros lindos e explicativos. “Quem não entender o que esse homem conta”, costumava dizer Dona Benta, “é melhor que desista de tudo. Seus livros são poemas de sabedoria, claríssimos como água.”

Quem mais se interessou por aqueles estudos foi Pedrinho. Sonhou a noite inteira com astros e no dia seguinte pulou da cama com uma idéia na cabeça: construir um telescópio! “Que é, afinal de contas, um telescópio?”, refletiu ele. “Um canudo com uns tantos vidros de aumento dentro. Esses vidros aumentam o tamanho dos astros, de modo que eles parecem ficar mais próximos — foi como disse vovó.”

E logo depois do café da manhã tratou de construir um telescópio. Canudos havia no mato em quantidade — nas moitas de taquara; e vidros de aumento havia no binóculo da vovó. Pedrinho serrou os canudos necessários, de grossuras bem calculadas, de modo que uns se encaixassem nos outros, colocou lá dentro as lentes do binóculo de Dona Benta e fez uma armação de pau onde aquilo pudesse ser manobrado com facilidade, ora apontando para este lado, ora para aquele.

Enquanto ia construindo o telescópio, dava aos outros, reunidos em redor dele, amostras da sua ciência.

— O telescópio saiu da luneta astronômica inventada por aquele italiano antigo, o tal Galileu. Um danado! Inventou também o termômetro e mais coisas.

— Mas telescópio é invenção que até eu invento — disse Emília. — É só cortar canudos de taquara e grudar uns monóculos dentro...

Pedrinho ia respondendo sem interromper o serviço.

— Parece fácil, e é fácil hoje que a coisa já está sabida. Mas o mundo passou milhões de anos sem conhecer este meio tão simples de ver ao longe, até que Galileu o inventou. Também para tomar a temperatura das coisas nada mais simples do que fazer um termômetro — um pouco de mercúrio dentro dum tubinho de vidro, mas foi preciso que Galileu o inventasse. Tudo na vida são “ovos de Colombo”.

Depois de pronto o telescópio, houve discussão quanto ao astro que veriam primeiro.

— Eu acho que o primeiro tem que ser o Sol, que é o pai de todos — disse Narizinho.

— E eu acho que deve ser a Grande Ursa, porque é um bicho raro — propôs Emília.

Pedrinho riu-se com superioridade.

— A Grande Ursa não pode, boba, porque fica nos céus do norte. Estes céus aqui são os céus do sul. E o senhor que acha, Doutor Livingstone? — perguntou ele ao Visconde.

O Doutor Livingstone respondeu batendo na bibliazinha.

— Deus fez por último as estrelas, como diz aqui o Gênesis, mas Cristo disse que os últimos serão os primeiros. Logo, temos de começar pelas estrelas.

Todos se admiraram daquela sabedoria, mas Pedrinho não se contentou. Quis também consultar Tia Nastácia lá na cozinha.

— E você, Tia Nastácia, que acha? — perguntou-lhe.

A negra, que acabava de matar um frango, foi de opinião que o bonito seria começar pela Lua, “onde São Jorge vive toda a vida matando um dragão com sua lança!”

A idéia foi recebida com palmas e berros.

— O dragão! O dragão! Viva São Jorge!... — exclamaram todos — e a lembrança de Tia Nastácia foi vencedora. Uma linda lua cheia estava empalamando no céu. Pedrinho apontou para ela o telescópio. Espiou e nada viu. Emília, porém, viu coisas tremendas.

— Estou vendo, sim! — gritou ela. — Estou vendo um dragão verde, tal qual lagarto, com uma língua vermelha de fora. Língua de ponta de flecha. São Jorge, a cavalo, está espetando a lança no pescoço do coitado...

— Será possível? — exclamou Pedrinho, afastando-a do telescópio para espiar de novo — mas continuou a não ver nada.

— Você está sonhando, Emília. Não se vê nem a Lua, quanto mais o dragão.

— Pois eu vejo tudo com o maior “perfeiçume” — insistiu Emília voltando ao telescópio. — Um dragão de escamas... Com unhas afiadas... Um rabo comprido dando duas voltas.

Os meninos entreolharam-se. Verdade ou mentira? A boneca tinha fama de possuir uns olhos verdadeiramente mágicos — mas quem podia jurar sobre o que ela afirmava? A ânsia de ver coisas, porém, era maior que a dúvida, de modo que resolveram aceitar como verdade as afirmações da Emília e nomeá-la a “olhadeira do telescópio”. Ela que fosse vendo tudo e contando aos outros.

Emília começou. Depois de enumerar todas as coisas que viu na Lua, apontou o telescópio para uma estrela qualquer.

— Xi — exclamou fazendo cara de espanto. — Como é peluda!... E tem dois ursinhos ao colo... Está brincando com um de cara preta... Agora franziu a testa... Parece que percebeu que estamos apontando para lá... Com certeza pensa que este telescópio é espingarda... A Grande Ursa é enormíssima...

— A Grande Ursa não é estrela daqui, Emília. Vovó já disse. Você está nos bobeando — gritou Pedrinho meio zangado.

Mas Emília continuou a ver coisas e a insistir que era realmente uma estrela Ursa. “Com certeza cansou-se dos gelos polares e chegou cá a estes céus do sul para esquentar o corpo...”

Pedrinho deu-lhe um peteleco.
–––––––––––-
Continua … VI – Viagem ao Céu
–––––––––––-
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 268)


Uma Trova Nacional

Gera corrida e surpresa
notícia mal pontuada:
“A mulata Globeleza
visita a Serra Pelada”.
–TEREZINHA BRISOLLA/SP–

Uma Trova Potiguar

Em um pijama listrado
com as cores da zebrinha
da sorte, foste enjaulado.
pra teu azar. Sorte minha!
–ROSA REGIS/RN–

Uma Trova Premiada

2004 - Nova Friburgo/RJ
Tema: OTÁRIO - 2º Lugar

- Vai um chopinho? É do bom!
- Eu só bebo destilado.
E o otário do garçom
pôs o copo do outro lado.
–SELMA PATTI SPINELLI/SP –

Uma Trova de Ademar

Por agir sem ter cautela
um grande mico eu paguei,
investi numa donzela
que na verdade era um gay!...
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Ao contrário do automóvel
com a tração na dianteira,
mesmo quando estás imóvel,
atração tens na traseira...
–ORLANDO BRITO/MA–

Simplesmente Poesia

MOTE :
NEM TUDO QUE TOMBA CAI.

GLOSA :
Nem todo homem tem brio,
nem toda moça se casa,
nem todo fogão tem brasa
nem toda lã dá pavio.
Nem todo inverno faz frio,
nem todo filho tem pai,
nem tudo o que entra sai,
nem toda fera é valente;
nem todo lorde é decente,
nem tudo que tomba cai.
–MANOEL DE MACEDO/RN–

Estrofe do Dia

Começa brigar cedinho,
diz coisas que não tá vendo,
aquela mulher tá sendo
uma pedra em meu caminho,
a filha do meu vizinho
tem medo chega se pela,
minha gente, a língua dela
não é o cão mas atenta;
eita mulher ciumenta
essa que casei com ela!
–ZÉ CARDOSO/RN–

Soneto do Dia

–GLAUCO MATTOSO/SP–
Barbarizado

Já se disse: sete é conta de mentira e lenda.
Também dizem que de azar o treze é cifra certa.
Isso explica a redondilha como porta aberta
no cantar dos repentistas, na feroz contenda,

à bazófia descarada, onde é melhor a emenda
que o soneto decassílabo, no qual se enxerta
entre termos eruditos a falácia esperta,
lei de todo bom poeta que seu peixe venda.

Outrossim, também se explica por que nunca é visto
um soneto alexandrino, mas de pé quebrado:
este, a cuja tentação do treze não resisto.

Vou chamá-lo "aleijadinho", pois, em vez de errado,
tem caráter de obra-prima, pelo menos nisto:
completar catorze versos sem ficar quadrado!

Fontes:
textos enviados pelo autor
Sonetos

Biblioteca de Alexandria


A Biblioteca de Alexandria foi uma das maiores bibliotecas do mundo e se localizava na cidade egípcia de Alexandria que fica ao norte do Egito, situada a oeste do delta do rio Nilo, às margens do Mar Mediterrâneo.

É hoje, o mais importante porto do país, a principal cidade comercial e a segunda maior cidade do Egito. Tem cerca de 4.4 milhões de habitantes.

A cidade ficou conhecida por causa do empreendimento de tornar-se, na Antigüidade, o centro de todo conhecimento do homem, com a criação da Biblioteca de Alexandria.

Considera-se que tenha sido fundada no início do século III a.C., durante o reinado de Ptolomeu II do Egito, após seu pai ter construído o Templo das Musas (Museum).

É atribuída a Demétrio de Falero sua organização inicial. Estima-se que a biblioteca tenha armazenado mais de 400.000 rolos de papiro, podendo ter chegado a 1.000.000.

Foi destruída parcialmente inúmeras vezes, até que em 646 foi destruída num incêndio acidental.

A instituição da antiga Biblioteca de Alexandria tinha como o principal objetivo preservar e divulgar a cultura nacional. Continha livros que foram levados de Atenas. Ela se tornou um grande centro de comércio e fabricação de papiros.

Papiro (pelo latim papyrus do grego antigo πάπυρος) é, originalmente, uma planta perene da família das ciperáceas cujo nome científico é Cyperus papyrus, por extensão é também o meio físico usado para a escrita (percursor do papel) durante a Antigüidade (sobretudo no Antigo Egito, civilizações do Oriente Médio, como os hebreus e babilônios, e todo o mundo greco-romano).

Foi por volta de 2200 anos antes de Cristo que os egípcios desenvolveram a técnica do papiro, um dos mais velhos antepassados do papel.

Para confeccionar o papiro, corta-se o miolo esbranquiçado e poroso do talo em finas lâminas. Depois de secas, estas lâminas são mergulhadas em água com vinagre para ali permanecerem por seis dias, com propósito de eliminar o açúcar. Outra vez secas, as lâminas são ajeitadas em fileiras horizontais e verticais, sobrepostas umas às outras.

A seqüência do processo exige que as lâminas sejam colocadas entre dois pedaços de tecido de algodão, por cima e por baixo, sendo então mantidas prensadas por seis dias.

E é com o peso da prensa que as finas lâminas se misturam homogeneamente para formar o papel amarelado, pronto para ser usado. O papel pronto era, então, enrolado a uma vareta de madeira ou marfim para criar o rolo que seria usado na escrita.

A lista dos grandes pensadores que frequentaram a biblioteca e o museu de Alexandria inclui nomes de grandes gênios do passado.

Importantes obras sobre geometria, trigonometria e astronomia, bem como sobre idiomas, literatura e medicina, são creditados a eruditos de Alexandria.

Segundo a tradição, foi ali que 72 eruditos judeus traduziram as Escrituras Hebraicas para o grego, produzindo assim a famosa Septuaginta (tradução da Tora para o idioma grego, feita no século III a.C.).

Ela foi encomendada por Ptolomeu II (287 a.C.-247 a.C.), rei do Egito, para ilustrar a recém inaugurada Biblioteca de Alexandria.

A tradução ficou conhecida como a Versão dos Setenta (ou Septuaginta, palavra latina que significa setenta, ou ainda LXX), pois setenta e dois rabinos trabalharam nela e, segundo a lenda, teriam completado a tradução em setenta e dois dias.

A Septuaginta foi usada como base para diversas traduções da Bíblia.

Fontes:
Amigos do Livro
Imagem = Biblioteclando

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 267)


Uma Trova Nacional

Neste mundo tão mesquinho,
benditas as mães, meu Deus,
que dão amor e carinho
a filhos que não são seus.
–JOÃO COSTA/RJ–

Uma Trova Potiguar

Para que a mente não “pife,”
faça um pouco diferente,
em vez de roupa de “grife”
dê um livro de presente!!!
–SÉRGIO SEVERO/RN–

Uma Trova Premiada

1988 - Luiz de Fora/MG
Tema: MONTANHA - M/H

Montanha cheia de neve
que se desfaz no degelo,
diga ao sol que também leve
a neve do meu cabelo!
–DOROTHY JANSSON MORETTI/SP–

Uma Trova de Ademar

Disse para minha amada:
todo amor é relativo;
às vezes, nasce de um nada
e morre... Sem ter motivo!...
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Neste aceno tão comum
que fizeste na partida,
eu fui apenas mais um
a ficar, na despedida.
–ALYDIO C. SILVA /MG–

Simplesmente Poesia

–MÁRIO QUINTANA/RS–
Dos Milagres

O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo...
Nem mudar água pura em vinho tinto...
Milagre é acreditarem nisso tudo!

Estrofe do Dia

Muitas noites eu ouvindo o teu ressono
entre as chamas do amor todo abrasado
quis correr e deitar-me ao teu lado
pra ficar do seu corpo sendo dono,
refreava o furor, perdia o sono
só pensando em seu riso de ternura,
na travosa e gelada noite escura
no clarão do amor via teu leito;
foste tu que arrancaste do meu peito
a espada cruel da desventura.
–MANOEL XUDU/PB–

Soneto do Dia

–LUCILIA DE CARLI/PR–
Celeiros da Modernidade

Antigamente a sobra de tostões
ia direto a cofres bem pequenos.
As cédulas, guardadas nos colchões,
visavam novos dias... e serenos.

De cereais, lotados os galpões,
sem a penhora, livres os terrenos.
Nem cheques pré-datados, nem cartões...
Vaidade havia, só que muito menos.

Tempos modernos... Nestes, quase loucos,
endividados somos - salvo poucos -,
mil promoções, ofertas endeusadas...

De bugigangas cheios os armários;
grande aparato exposto nos "sacrários"
onde "coisas", por nós, são adoradas!...

Fonte:
Textos e imagem enviados pelo autor

Isabel Furini (Lançamento de Passageiros do Espelho)


A coletânea de contos tem a característica de respeitar o estilo de cada autor. Podemos então nos deleitar com os retratos muito bem elaborados por Bruno Camargo Manenti. Outros de alta dramaticidade, entre eles os trabalhos de Alessandra Pajola, Alessandra Magalhães, Fernando Scaff Moura, Sônia Cardoso e Zeltia G. Não falta uma visão do mundo espiritual feita pela professora Natália Bueno. Já o escritor Fernando Botto lembrou a infância e Maria Edna fala da idade madura. Elayne Sampaio e Ricardo Manzo nos levam por caminhos inesperados. Fernando Scaff Moura nos empurra para uma época de horrores que ainda está viva na memória da América Latina.

Na apresentação de “Passageiros do espelho”, José Feldman, da Academia de Letras do Brasil/Paraná, fala: “Morremos e renascemos a cada conto. A cada espelho. Nos vemos confiantes, solitários, agoniados, suicidas, aliviados, tristes e alegres. Somos vários espelhos, mas ao final, apenas um”.

A escritora e poeta Adélia Maria Woellner escreveu no prefácio: “Os ‘passageiros do espelho’ rompem silêncios, oferecendo suas histórias, seus devaneios, seus encantos, os arcanos da imaginação”.

Fortalece esse trabalho a colaboração especial do escritor, professor e crítico literário Miguel Sanches Neto, que nos convida a fazer uma “Viagem de Volta”.

Nas orelhas do livro a atriz, radialista e escritora gaúcha Ângela Reale destaca que no livro penetramos “em mundos tão diversos, em encontros inusitados, sonhos desfeitos, amores de longe e de perto, saudades, morte e vida”.

Cada um dos contos é como um reflexo do acontecer. É a vida que se espelha na construção ficcional. Múltiplas manifestações construindo ninho nas palavras – e nos silêncios.

Esse trabalho começou em fevereiro deste ano, quando a Editora Íthala nos convidou para organizar uma coletânea de contos com alunos e ex-alunos da oficina “Como Escrever um Livro”, que ministramos no Solar do Rosário, o espaço criado pela doutora Regina Casillo. Como o número de participantes era limitado, falamos com os alunos do curso do primeiro semestre. Nem todos estavam dispostos a embarcar na aventura de escrever, reescrever e publicar. Alguns decidiram que ainda não estavam preparados ou que não podiam dedicar muito tempo a esse trabalho. E respeitamos a decisão de cada um deles.

Foi então o momento de falar com alguns ex-alunos com os quais mantemos contato pelo e-mail, como é o caso do escritor e professor Fernando Botto. Ele morou um tempo na Angola e, muito gentil, procurou-me quando voltou a Curitiba para que eu autografasse alguns exemplares de “O Livro do Escritor” para enviar a seus amigos angolanos. Também mantivemos contato com a jornalista e professora Alexandra Pajola, que participou da oficina e tem paixão pela escrita. Alessandra Magalhães e Natália Bueno, cada uma com seu estilo, destacaram-se durante as oficinas, e sempre enviam e-mail falando de seus novos trabalhos. Com Sonia Cardoso foi um encontro casual na recepção da Biblioteca Pública do Paraná. Ela já havia publicado um romance e estava iniciando outro trabalho literário quando eu fiz o convite para participar da antologia. Sonia aceitou imediatamente. Ela havia participado de uma oficina de contos que eu ministrei no Delfos, e tinha vários contos escritos. Uniu-se ao grupo minha amiga Sandra Rey Mosteiro, cujo pseudônimo é Zeltia G. Ela mora na Espanha, país onde edita a revista ZK 2.0.

O convite ao escritor Miguel Sanches Neto também surgiu espontaneamente. Ele havia sido meu entrevistado, e eu gostei muito da honestidade de suas respostas, além de admirar seus trabalhos como “Chove sobre minha infância” e “Venho de um país escuro”.

Os trabalhos foram árduos. Eu sei que o crítico acha que poucos trabalhos têm verdadeiro valor, mas eu quero mostrar os passos de um livro do ponto de vista do escritor. Escrever, reescrever sabendo que é impossível agradar a todos, mas cinzelando os contos com paixão. Só faltava uma boa apresentação para o nosso livro. A poeta Adélia Maria Woellner, pessoa despojada de vaidade, disse humildemente que escreveria, mas que se não gostássemos do prefácio, poderíamos ficar à vontade para escolher outra pessoa. Adélia é membro da Academia de Letras, e ficamos comovidos com a sua humildade. José Feldman, que apresenta o livro, é escritor, poeta e presidente da Academia de Letras do Brasil/Paraná. Faltava só escrever as orelhas. Era um trabalho que eu pessoalmente não queria fazer, porque, além de organizar a coletânea, dois contos de minha autoria estavam lá, e acho triste quando a mesma pessoa organiza, escreve, prefacia, apresenta, faz as orelhas… Dá a sensação de orquestra de uma pessoa só. Eu gosto da diversidade. Gosto de olhares diferentes. Então solicitei a participação da atriz e cronista Angela Reale. Por fim, o trabalho estava tomando forma.

LANÇAMENTO

O lançamento de “Passageiros do Espelho” será em 26 de julho, a partir das 19 horas, no Palacete dos Leões, na Rua João Gualberto, 530, em Curitiba. A entrada é franca. Os interessados podem solicitar o convite pelo e-mail: isabelfurini@hotmail.com

Será um prazer compartilhar esse momento com pessoas que amam a literatura.

* Isabel Furini é escritora e educadora. Orienta a oficina “Como Escrever um Livro” no Solar do Rosário, Curitiba.

Monteiro Lobato (Negrinha)


Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados.

Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.

Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo.

Ótima, a dona Inácia.

Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa:

— Quem é a peste que está chorando aí?

Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de desespero.

— Cale a boca, diabo!

No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer...

Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a idéia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava. Com pretextos de que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta.

— Sentadinha aí, e bico, hein?

Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas.

— Braços cruzados, já, diabo!

Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. E o relógio batia uma, duas, três, quatro, cinco horas — um cuco tão engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas. Sorria-se então por dentro, feliz um instante.

Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem fim.

Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria um gostinho só na vida — nem esse de personalizar a peste...

O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce para o aço. Mãos em cujos nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De passagem. Coisa de rir e ver a careta...

A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos — e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo — essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! “Qualquer coisinha”: uma mucama assada ao forno porque se engraçou dela o senhor; uma novena de relho porque disse: “Como é ruim, a sinhá!”...

O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo:

— Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...

Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Cocres: mão fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom! bom! bom! gostoso de dar) e o a duas mãos, o sacudido. A gama inteira dos beliscões: do miudinho, com a ponta da unha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões a uma — divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante: para “doer fino” nada melhor!

Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um castigo maior para desobstruir o fígado e matar as saudades do bom tempo. Foi assim com aquela história do ovo quente.

Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha — coisa de rir — um pedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim. A criança não sofreou a revolta — atirou-lhe um dos nomes com que a mimoseavam todos os dias.

— “Peste?” Espere aí! Você vai ver quem é peste — e foi contar o caso à patroa.

Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos. Sua cara iluminou-se.

— Eu curo ela! — disse, e desentalando do trono as banhas foi para a cozinha, qual perua choca, a rufar as saias.

— Traga um ovo.

Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta, gozando-se na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um canto, aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou a ponto, a boa senhora chamou:

— Venha cá!

Negrinha aproximou-se.

— Abra a boca!

Negrinha abriu aboca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou da água “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:

— Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste?

E a virtuosa dama voltou contente da vida para o trono, a fim de receber o vigário que chegava.

— Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha da Cesária — mas que trabalheira me dá!

— A caridade é a mais bela das virtudes cristas, minha senhora —murmurou o padre.

— Sim, mas cansa...

— Quem dá aos pobres empresta a Deus.

A boa senhora suspirou resignadamente.

— Inda é o que vale...

Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas.

Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos do céu — alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de vê-la armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo.

Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? Estaria tudo mudado — e findo o seu inferno — e aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos.

Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos ouvidos, o som cruel de todos os dias: “Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga”?

Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral —sofrimento novo que se vinha acrescer aos já conhecidos — a triste criança encorujou-se no cantinho de sempre.

— Quem é, titia? — perguntou uma das meninas, curiosa.

— Quem há de ser? — disse a tia, num suspiro de vítima. — Uma caridade minha. Não me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus... Uma órfã. Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por aí afora.

— Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! — refletiu com suas lágrimas, no canto, a dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco.

Chegaram as malas e logo:

— Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas.

Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.

Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa assim tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que falava “mamã”... que dormia...

Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial.

— É feita?... — perguntou, extasiada.

E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala a providenciar sobre a arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão,o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura de louça. Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, sem ânimo de pegá-la.

As meninas admiraram-se daquilo.

— Nunca viu boneca?

— Boneca? — repetiu Negrinha. — Chama-se Boneca?

Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.

— Como é boba! — disseram. — E você como se chama?

— Negrinha.

As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinha perdurava, disseram, apresentando-lhe a boneca:

— Pegue!

Negrinha olhou para os lados, ressabiada, como coração aos pinotes. Que ventura, santo Deus! Seria possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor menino, sorria para ela e para as meninas, com assustados relanços de olhos para a porta. Fora de si, literalmente... era como se penetrara no céu e os anjos a rodeassem, e um filhinho de anjo lhe tivesse vindo adormecer ao colo. Tamanho foi o seu enlevo que não viu chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia entreparou, feroz, e esteve uns instantes assim, apreciando a cena.

Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha, e tão grande a força irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pela primeira vez na vida foi mulher. Apiedou-se.

Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido, passando-lhe num relance pela cabeça a imagem do ovo quente e hipóteses de castigos ainda piores. E incoercíveis lágrimas de pavor assomaram-lhe aos olhos.

Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo — estas palavras, as primeiras que ela ouviu, doces, na vida:

— Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein?

Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viu mais a fera antiga. Compreendeu vagamente e sorriu.

Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi naquela surrada carinha...

Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma — na princesinha e na mendiga. E para ambos é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o momento da boneca — preparatório —, e o momento dos filhos — definitivo. Depois disso, está extinta a mulher.

Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa — e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!

Assim foi — e essa consciência a matou.

Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa voltou ao ramerrão habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada.

Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de coração, amenizava-lhe a vida.

Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a expressão de susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos, cismarentos.

Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seu doloroso inferno, envenenara-a.

Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Acalentara, dias seguidos, a linda boneca loura, tão boa, tão quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação. Desabrochara-se de alma.

Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos... E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça — abraçada, rodopiada.

Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, num disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu de boca aberta.

Mas, imóvel, sem rufar as asas.

Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou...

E tudo se esvaiu em trevas.

Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira — uma miséria, trinta quilos mal pesados...

E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das meninas ricas.

— “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?”

Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia.

— “Como era boa para um cocre!...”

Fonte:
Ítalo Moriconi (seleção). Os cem melhores contos brasileiros do século. RJ: Objetiva, 2000.

Cilza Carla Bignotto (Duas Leituras da Infância Segundo Monteiro Lobato)


Emília. O nome de uma boneca provavelmente é a primeira “palavra-chave” que a memória puxa do fundo dos arquivos pessoais quando o assunto é Monteiro Lobato. A palavra Emília certamente abrirá algumas gavetas empoeiradas, onde a memória guarda O Sítio do Picapau Amarelo e todos os seus habitantes. Pode ser que, além de histórias infantis lidas e assistidas na tv, as gavetas também guardem Jecas Tatus, um artigo chamado Paranóia ou Mistificação, ou quem sabe, algumas histórias envolvendo petróleo.

O que for lembrado depois de Emília pode variar bastante de leitor para leitor. De qualquer forma, a boneca, sempre metida onde não é chamada, estará sentada no topo de tudo o que estiver arquivado com a etiqueta “Monteiro Lobato”. Clichê maior que começar artigo sobre Lobato falando de Emília não há. A força da boneca, porém, é grande: se Gustave Flaubert disse “Madame Bovary sou eu”, Emília poderia muito bem ter dito, em suas Memórias, “Monteiro Lobato sou eu”.

Mas Emília só começou a falar em 1921, ano de lançamento de Narizinho arrebitado, livro que iniciou a série de aventuras dos habitantes do Sítio. Antes disso, Lobato já havia escrito três livros de contos: Urupês, Cidades Mortas e Negrinha. É deste último livro o conto homônimo sobre uma menina que, como Narizinho, tem sua vida transformada por uma boneca.

No conto Negrinha, o cenário é uma fazenda. Esta fazenda pertence a uma velha senhora, Dona Inácia, que cria uma menina órfã, a Negrinha do título. As Reinações de Narizinho acontecem em um sítio, que pertence a outra velha senhora, Dona Benta, que cria a menina órfã e reinadora do título. Dona Benta é a mais feliz das vovós, porque vive em companhia da mais encantadora das netas - Lúcia, a menina do narizinho arrebitado, ou Narizinho como todos dizem.
Dona Inácia é ótima (...) mas não admitia choro de criança (...) Assim mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança [Negrinha], gritava logo nervosa: - Quem é a peste que está chorando aí?

Narizinho, a encantadora, é neta da dona do sítio. Negrinha, a peste, é filha de escrava da dona da fazenda. Uma menina é apresentada como Lúcia, e depois como Narizinho. A outra é apresentada como Negrinha, e se tem nome, não é dito no conto. O apelido Narizinho tem origem em uma característica física, o nariz arrebitado. A menina tem sete anos, é morena como jambo, gosta muito de pipoca e já sabe fazer uns biscoitos de polvilho bem gostosos.

Negrinha também tem sete anos, e seu apelido também tem origem em uma característica física.
Preta? Não, fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados (...) seus primeiros anos vivera-os pelos cantos da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos.

O nome “inicia a existência religiosa e civil da criatura. O pagão é apenas uma perspectiva de direitos até que lhe imponham o nome”, afirma Luiz da Camara Cascudo. Sem nome, não há batismo, documentos, identidade social ou identidade individual. O que é imposto a Negrinha é um apelido que, dentro dos costumes de tratamento brasileiros poderia até ser considerado afetivo. Essa possibilidade desaparece algumas linhas depois:

Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa (...) - não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam.

Seu corpo “era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo.”

O narrador entra nas casas pela cozinha, cômodo em que nos são apresentadas as meninas. Em seguida, descreve-as fisicamente. As primeiras informações que se lê sobre Negrinha e Narizinho lembram dados de Censo do IBGE: nome, filiação, idade, cor. Essas “fichas” das crianças servem para mostrar o lugar que ocupavam na sociedade brasileira. O fato de aparecerem pela primeira vez na cozinha, mostra o espaço que ocupavam dentro de casa, na família.

A cozinha era o lugar das mulheres. Narizinho sabe cozinhar, e isso funcionacomo mais um atributo, porque saber cozinhar bem era ato valorizado na educação das mulheres da época. Seu papel ativo na cozinha revela que ocupa um lugar importante dentro da família. Negrinha vive “pelos cantos”, como um “gato sem dono”. Seu papel passivo, dentro de um grupo duplamente passivo (criadas negras), num lugar consagrado ao sexo “frágil”, torna-a ainda mais “coisa”.

Portanto, Negrinha não tem nome - tem apelido; não tem família - tem dona, que não cuida dela; não tem cor definida - é mulatinha escura; não tem lugar dentro da cozinha, dentro da casa, dentro da sociedade. Não é à toa que parece “um gato sem dono” - sua condição é quase a mesma de um animal. “Aprendeu a andar, mas quase não andava”.

Apesar de todas essas diferenças, as duas garotas vão encontrar na companhia de bonecas as experiências que trasnformarão suas vidas.

Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma - na princezinha e na mendiga. E para ambas é a boneca o supremo enlevo.

Este trecho é de Negrinha. Duas sobrinhas de Dona Inácia vem passar férias na fazenda. Trazem, entre outros brinquedos, uma boneca.

Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial. - É feita? ...- perguntou, extasiada.

As meninas deixam que ela se aproxime e ficam admiradas com seu assombro. “- Nunca viu boneca?” E Negrinha repete: “Boneca? Chama-se boneca?” As meninas, depois de rirem-se “de tanta ingenuidade”, perguntam o nome da companheira. “Negrinha”. Mais risos, e Dona Inácia, comovida, deixa que Negrinha vá para o jardim brincar com “a criancinha de cabelos amarelos...que falava “mamã”...que dormia...” e suas louras donas.

Acontece, então, o despertar da consciência da menina.
Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia que tinha uma alma. Divina eclosão! (...) Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa - e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava! Assim foi - e essa consciência a matou.

A imaginação de Negrinha, que só ousava acompanhar os movimentos de um relógio-cuco da patroa, liberta-se durante o ato de brincar. E irrompe de forma tão forte em seu “doloroso inferno” que, quando as meninas vão embora e a vida volta “ao normal”, Negrinha vai definhando e morre em sua esteirinha, rodeada de “bonecas, todas louras, de olhos azuis”. Sua humanidade, restaurada pela imaginação, só encontra liberdade na morte. Antes de tudo se esvair “em trevas”, a imaginação, na forma mais dolorosa de delírio, a rodeia de brancas bonecas e anjos de olhos azuis.

Narizinho vive sua primeira aventura na companhia da boneca Emília. As duas vão ao Reino das Águas Claras, convidadas pelo príncipe Escamado. A boneca é de pano, e foi feita por tia Nastácia “com olhos de retrós preto e sombrancelhas tão lá em cima que é ver uma bruxa.” Emília toma uma pílula do Dr. Caramujo e começa a falar. A primeira coisa que diz não é o óbvio “mamã”, mas: “Estou com um horrível gosto de sapo na boca! E falou, falou, falou, mais de uma hora sem parar”.

Narizinho “viu que a fala de Emília não estava bem ajustada” e “viu também que era de gênio teimoso e asneirenta, pensando a respeito de tudo de um modo especial todo seu”. Qualquer semelhança com Monteiro Lobato...

O ato de falar é fundamental nessas histórias. Negrinha não pode dizer asneiras, sob pena de ser torturada. Quando chama de “peste” uma criada que lhe roubara um pedaço de carne, é torturada por Dona Inácia, que põe um ovo quente em sua boca. Aliás, não pode falar nada. Talvez por isso seja tão fascinada pela “bocarra” do cuco e seu único passatempo, antes da boneca, seja vê-lo “cantar as horas”. A iniciativa da conversa cabe às sobrinhas de Dona Inácia. A boneca delas fala “mamã”.

Narizinho tem liberdade para falar com quem quiser, seja tia Nastácia ou um Príncipe Escamado. E Emília passa a participar ativamente da história a partir do momento em que começa a falar. Boa deixa para se fazer uma abordagem, agora, do conceito de infante - palavra que, na origem latina, significa “aquele que não fala”.

Quem fala sobre, para e pela infância são os adultos. Que, através dos séculos, têm esticado, espremido e torcido o conceito infância, de acordo com visões de mundo peculiares a cada época e a cada povo. “Até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la. É difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência ou à falta de habilidade. É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo”, afirma Philippe Ariès.

É só a partir do fortalecimento da burguesia como classe, com intenções políticas e ideológicas a firmar, que a categoria criança, como a conhecemos hoje, passa a designar um grupo específico, com necessidades específicas quanto à roupas, comida, educação, lazer. Mercados são criados para suprir essas necessidades familiares; é quando a literatura passa a ter seu ramo infantil. Não é para pessoas de uma determinada idade que são escritos livros infantis; mas para pessoas de uma determinada idade que fazem parte das classes média e alta, que vão à escola e que são cuidadas por gente que se preocupa com sua educação e pode comprar seus livros.

Portanto, os dados iniciais das duas narrativas são muito significativos. Ao mostrar como as meninas são fisicamente e qual a sua condição familiar e social, as narrativas permitem que se possa situá-las dentro de um contexto histórico. E a partir daí, analisar como as representações do que seja ou não uma criança podem mudar de acordo com vários fatores, todos externos.

No momento em que aparecem as bonecas, o foco narrativo das duas histórias passa a se concentrar no interior das meninas, em sua imaginação, ou “alma”, como escreve Lobato. E então elas se mostram iguais, com as mesmas potencialidades e desejos. Mas primeiro vamos olhar mais de perto estes fatores externos.

Negrinha é filha de escrava. Dona Inácia “nunca se afizera ao regime novo - essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia!” Qualquer coisinha, no caso, é “uma mucama assada no forno porque se engraçou dela o senhor”. O que são alguns espancamentos em uma pessoa que até pouco tempo atrás era considerada oficialmente mera mercadoria? Delso Renault, em seu livro Indústria, Escravidão e Sociedade: Uma pesquisa historiográfica do Rio de Janeiro no século XIX, apresenta vários anúncios de jornal que demonstram claramente a condição de “coisa” dos escravos negros. Um exemplo é o anúncio publicado no Jornal do Commercio em 29/01/1851:

Na rua do Ouvidor vendem uma negrinha muito bonita e elegante, muito própria para presente, sabendo coser bem e andar com crianças, a qual é muito carinhosa

Vende-se uma negrinha como se fosse uma boneca, para dá-la de presente e deixá-la andar com crianças. O leitor contemporâneo de Lobato, assim como o leitor de hoje, estão inseridos em um mundo ideologicamente diverso daquele em que viviam as crianças negras no século XIX. O horizonte de perpectivas do leitor atual abrange conceitos como o de “direitos da criança”, conceito este que serve, pelo menos em teoria, para todas as crianças. Diferente era o modo de pensar de alguém que fosse senhor de escravos - e esse modo de pensar não desapareceu com a abolição da escravatura, infelizmente.

Lobato situa a história de Negrinha em um tempo em que a escravidão havia sido abolida por lei - mas leis não têm força para abolir costumes culturais entranhados em pessoas que conheceram uma época em que a lei era outra. O mundo (ou o Brasil, a vida, o “certo”) para Dona Inácia ainda é aquele da escravidão. A ideologia da ex-senhora de escravos choca-se violentamente com a nova ideologia decretada no 13 de maio. Para o narrador Negrinha é uma criança, e é assim que ele a apresenta ao leitor - não é à toa que a palavra criança aparece 8 vezes no conto, sempre ligada à menina. Mais: ele mostra o interior da menina, diz que ela tem alma - portanto é gente.

É natural para Dona Inácia que Negrinha seja “boa para uns croques”, viva dentro de sua casa como um enfeite da sala e, a princípio, não possa brincar com suas sobrinhas. Negrinha é a boneca de Dona Inácia, que a conserva como “remédio para os frenesis” - daí as marcas de espancamentos no corpo da menina, como as marcas que as crianças deixam em alguns brinquedos. Boneca que não corresponde, porém, ao ideal físico imaginado para as bonecas da época. Razão pela qual, talvez, receba apenas os croques, e não carinhos.

O culto das bonecas louras e de olhos azuis entre as meninas da gente mais senhoril ou rica do Império deve ter concorrido para contaminar algumas delas de certo arianismo; para desenvolver no seu espírito a idealização das crianças que nascessem louras e crescessem parecidas às bonecas francesas; e também para tornar a francesa o tipo ideal de mulher bela e elegante aos olhos das moças em que depressa se transformavam nos trópicos aquelas meninas.

Este comentário de Gilberto Freyre reforça a idéia de que uma criança negra não era considerada uma criança na época de Negrinha. E mesmo para uma boneca, ela estava longe do ideal, e portanto dos cuidados, que “o culto” das meninas deveria proporcionar às bonecas loiras. Aliás, no final do século passado era famosa uma cantiga de roda com os seguintes versos:

Quem são estes anjos
Que estão me rodeando?
(...) Somos filhos de um Conde
e netas de um Visconde

Negrinha, ao morrer, vê-se rodeada de anjos e bonecas, todos louros. Como se queriam louras as crianças filhas da elite brasileira. Quem faz brinquedos, e os dá às crianças, são os adultos. Brinquedos são objetos nada ingênuos. Carregam informações sobre a ideologia de seus produtores e compradores. Quem dá o brinquedo à criança pela primeira vez são os adultos, que fazem representar no objeto o seu ideal de infância. Walter Benjamin comentou a respeito:

E mesmo que a criança conserve uma certa liberdade de aceitar ou rejeitar, muitos dos mais antigos brinquedos (...) de certo modo terão sido impostos à criança como objeto de culto, que somente graças à sua imaginação se transformam em brinquedos. É, portanto, um grande equívoco supor que as próprias necessidades infantis criem os brinquedos.

A boneca é um brinquedo cuja origem se confunde com a própria origem humana. Miniaturas de seres humanos têm sido usadas, há milênios, como objeto de culto, representações de deuses e demônios, anjos e musas. Quando produz o objeto boneca, o homem projeta e modela nele a imagem de ser humano ideal que traz dentro de si, de acordo com os horizontes históricos, sociais, religiosos e estéticos de sua cultura. A boneca representa, portanto, não uma criança, mas o ideal de criança ou de adulto de um determinado grupo social; é a projeção, em forma de roupas e aparência física, dos valores deste grupo.

Negrinha percebe que a boneca das meninas louras é “uma criança artificial”. Usando de um certo exagero, poderíamos fazer um exercício imaginário e enxergar a pequena escrava no momento em que contempla a boneca. Uma criança real, brasileira, pobre e sofrida contempla a forma que deveria ter para ser considerada criança pelos adultos que ditavam os valores ideológicos no país. Valores esses importados da Europa, juntamente com estilos literários, modelos de leis e vestidos.

Quando Monteiro Lobato entra em cena, o modelo europeu de um “projeto educativo e ideológico que via no texto infantil e na escola (e, principalmente, em ambos superpostos) aliados imprescindíveis para a formação de cidadãos” havia sido apropriado por vários escritores e educadores e adaptado à realidade brasileira. Com a industrialização, algumas crianças pobres puderam passar a frequentar escolas. A literatura infantil da época, no entanto, se pudesse ser traduzida em forma de brinquedo, seria muito mais parecida com a boneca loira do que com Emília. Basta lembrar o sucesso dos livros Le Tour de France par deux garçons (1877), de G. Bruno, e Cuore (1886), de Edmundo de Amicis. Em 1901, Afonso Celso publicaria Por que me ufano de meu país, proclamando em português o patriotismo tematizado pelos escritores europeus. Em 1930, quando Narizinho e Emília já eram sucesso, Cuore continuava best-seller no Brasil: é desse ano a 39ª edição da tradução brasileira do livro.

O subtítulo do primeiro livro de Lobato para crianças, Narizinho Arrebitado, é “segundo livro de leitura para uso das escolas primárias”. O autor visava, mais do que as crianças, os “escolares” 12. Dentro do Sítio do Picapau Amarelo, porém, ele encontrou espaço não só para um projeto estético ou pedagógico, mas para um projeto político que envolvia inúmeros setores da vida brasileira. Mostrou idéias sobre literatura, história, economia, política, religião... Idéias que nem sempre estavam de acordo com o que queria o tal projeto educativo brasileiro. Seus livros sofreram campanhas. Não era “recomendável” que a futura elite lesse, nas Memórias da Emília, que “a verdade é uma espécie de mentira bem pregada, das que ninguém desconfia”, entre outras “inconveniências”.

A maior inconveniência, porém, era a existência, ainda, de gente como Negrinha. Ela não tem nome porque é uma multidão. Quantas meninas brasileiras foram chamadas assim? Quantas foram analfabetas, maltratadas, tratadas como coisas? Quantas são assim? Negrinha é o símbolo de uma grande parte da população brasileira, criança e mulher, da época de Lobato e da nossa época. Negrinha é a criança real.

A boneca de olhos azuis também não tem nome. É o símbolo da criança ideal, modelo europeu. A fôrma dessa criança ideal, branca e virtuosa como um anjo, só existiu no mundo das idéias. Dela só era possível saírem bonecas e personagens, crianças artificiais, como percebeu Negrinha; não gente de verdade. As louras sobrinhas de Dona Inácia não são virtuosas; riem-se da miséria intelectual e material de Negrinha. Também elas não têm nome. Mas são crianças reais: brancas, ricas, filhas de uma elite dominante, que se espantam ao perceber a existência de crianças como Negrinha. Quantas meninas poderiam se encaixar nessa descrição?

Esse conto põe para brincar juntas crianças símbolos de duas classes sociais, separadas por um abismo econômico e ideológico, e unidas por um modelo de ser ideal, pretendido para “o país do futuro”. No começo deste século, a literatura para crianças no Brasil era importada, como a boneca loura. Traduzia-se o francês maman para mamã e as mamães compravam o produto. Ou emprestava-se a fôrma estrangeira para fabricar aqui mesmo as bonecas e histórias européias. Monteiro Lobato, quando escreveu esse conto, com certeza não pensou em tal comparação. Isso é trabalho para Viscondes de Sabugosa. Ele simplesmente criou Lúcia-Narizinho e Emília.

A família da menina tem um ramo europeu e outro africano, como a maioria das crianças reais brasileiras. A boneca nasceu de uma mistura de vários objetos: macela, pano de saia velha, retrós. Como a literatura infantil de Lobato, que costura juntos crianças e bichos mágicos, políticos e sabugos falantes, o Brasil e o mundo. Essa boneca não tem fôrma, é única. Por isso mesmo não
é um anjo. “O mau romance é aquele que visa a agradar, adulando, enquanto o bom é uma exigência e um ato de fé”. Aí está a força da literatura de Lobato e a raiz das polêmicas causadas por seus livros.

A boneca loira chegou às mãos de Negrinha por meio de uma mulher branca e rica - Dona Inácia. Emília chega às mãos de Narizinho por meio de uma mulher negra e pobre - Tia Nastácia. Esse fato singular, que passa quase despercebido no meio do imenso desfile de narrativas maravilhosas que compõe o universo do Sítio do Picapau Amarelo, é importantíssimo.

A boneca que iria virar mania infantil, símbolo da obra de Lobato e portanto símbolo da literatura infantil brasileira, foi feita por uma velha negra. Levando em conta o que foi dito acima a respeito dos valores ideológicos que uma boneca representa, e que o “público-alvo” de Lobato era formado por escolares, ou seja, pelas crianças de melhor condição social, é simples entender o que isto significa.

A criança não é nenhum Robinson, as crianças não constituem nenhuma comunidade separada, mas são partes do povo e da classe a que pertencem. Por isso, o brinquedo infantil não atesta a existência de uma vida autônoma e segregada, mas é um diálogo mudo, baseado em signos, entre a criança e o povo.

Enquanto os adultos conceituavam de diversas maneiras a infância, num mundo de idéias que o tempo foi modificando, e a representaram de acordo com esses diferentes conceitos, no mundo real gente continuava a nascer, crescer, aprender, amadurecer. Durante todo esse tempo, os brinquedos foram um elo entre adultos e crianças, a representação de um diálogo mudo.

Ao dar o dom da fala a Emília, Monteiro Lobato estava usando essa espécie de “transmissorde sinais” que é o brinquedo para mandar suas mensagens, sua visão de mundo, para as crianças. Da boca de pano fez sair uma resposta pessoal, singular, para a “ordem mundial” e brasileira de seu tempo. Sua verdade pessoal personificou-se em Emília, e por meio desse outro diálogo mudo que é a literatura, tornou-se uma verdade compartilhada por milhões de leitores.

A grande ironia é que, anos depois, quando o Sítio do Picapau Amarelo virou seriado na televisão, a boneca feia e ordinária virou brinquedo caro, ganhou olhos azuis e foi parar nas
mãos de crianças ricas. Mas isso já é outra história.

Fontes:
http://www.monografias.com
Imagens:
Negrinha = Cabeça de mulata, por Di Cavalcanti
Emília = Diário Catarinense