NOTURNO
Quando jamais na ausência escura,
Na imensa noite sem memória,
Há de repetir-se a aventura
Da antiga floresta ilusória?
Dormência lunar vaga e pura,
Flores, folhas, troncos, raízes,
Revivas de extinto mistério...
Quando na tépida espessura
Há de tornar o sono aéreo,
Os límpidos sonhos felizes?
Mimar de múrmura magia!
Remansear de sombra fremente!
Magia e sombra pesam onde
Se ouvia a voz de um deus presente...
De ouvir a terra estremecia,
O céu profundo se acendia,
Noturnamente, brandamente!
Depois... Depois a voz sombria
Se velou na treva, que a esconde,
Atrás do universo silente.
Ó tempo em flor e folha, menos
Amarga fora esta lembrança,
O mais sutil de teus venenos,
Se cansasse do que não cansa...
Lembrança! filtro acerbo e quente,
Que eu bebo, e quero mais! – espelho,
Mágico espelho contemplado,
Miragem de cristal vermelho
Que fixa o tempo eternamente,
E faz presente do passado!
Imagem nunca mais perdida,
Surta na sombra, que demora!
Noturno ardor, boca de aurora
Que oferta a fruta apetecida!
Forma de si mesma despida,
Imagem sempre a mesma – embora
Paire suspensa além da vida,
Penso que a vejo viva agora,
Não porque a veja revivida,
Só por sonhá-la a igual de outrora.
Sonho! É sonho, minha alma! Vede
O avito engano em que se agita
Para matar a própria sede,
Aumentando a própria desdita...
É sonho! Traz no riso mudo
Certeza e dádiva de tudo...
Sonho!... E sonho, por ele a nua
Negra floresta reverdece;
Por ele, outra vez, no ar flutua
A Presença, que não esquece.
Odor e flor a terra, estuante,
Trescala, arrouba-se no espaço,
Esto que impele ansiosa amante
A procurar no ansiado abraço,
Maviosa vertigem do instante,
A unidade do ser disperso;
E o deus aspira a morna essência
Por que se desvela, diverso,
Múltiplo e solto na consciência
Predestinada do universo.
De novo a Lua, mãe propícia,
Derrama o leite de seu seio;
A vida, a vida esponsalícia,
Vibra total no que era alheio!
Desce de novo a claridade
Por nova confusa carícia,
Enquanto o gesto de bondade
Da vestal dourada derrama
Em lábios eleitos a flama
Da mais que perfeita delícia.
Delícia eterna sempre nova!
Porque a merece a alma sincera
Nem se teme do mal que prova
Nem teme a dor que desespera...
Respiro da noite sonora,
Cujo segredo o dia ignora!
Repouso ao fim de escusas trilhas!
Recompensa de estranho rito,
Maravilha das maravilhas,
Dom do Infinito, – indefinito!
Em teu limiar, porta secreta,
Onde a imensidade começa,
Ressoa a resposta completa,
Murmúrio florido em promessa...
Livre, – livre da aérea bruma
Por que o mistério azul inquieta,
Cria o sonho de si a suma
Graça, a ingênua suma surpresa,
A novidade que perfuma
Esta promessa de beleza.
Fecham-se os braços sobre a escolha
Sem nome, nata do desejo;
De flor a flor, de folha a folha,
A selva salva o suave ensejo,
Encontro prometido e lento,
Ou sonho ou destino, composto
Em um só beijo, – claro intento,
Um mel de música no gosto,
Rosto abismado em outro rosto,
Forma prima de pensamento.
Eu beijo o beijo e abraço o abraço,
Meu raro instante luminoso,
Que se exclui do tempo e do espaço
Na eternidade de um regaço,
A dar-me sem medir seu gozo...
Mago instante que não refaço!
Divino instante que me adverte!
Fugiu-me cedo...
– Onde ir a esmo,
Alma ferida, corpo inerte,
Buscar a ilusão de mim mesmo?
AR DA FLORESTA NOTURNA
Sumida sombra, secreta espessura,
– A noite em meio, ou lembrança do dia,
Selva! selva abismal do tempo, escura,
Onde a força renasce, que não dura,
E fulge a imagem, forma fugidia:
Selva – assombro, sombrio fundo emerso!
Ardor indene, força fria e mansa!
Ventre que gera a suma do universo!
– Tornas o sonho múltiplo, diverso,
O tempo em sonho tornas, sem mudança.
Ou tempo ou sonho, em teu seio, sozinha,
Perdeu-se uma alma, e sozinha consulta
A sombra e, sombra ela mesma, caminha...
Acaso busca, alma enganosa e minha,
Atrás da sombra a maior sombra oculta.
Eu mesmo, o mesmo, bebo neste engano,
E outro, que sou, indago, diferente,
Se a aparência me engana, ou se me engano,
Ao pensar dispartir-me ao desengano
Que faz sentir mais grave o que se sente.
Perdidos evos, quem vos acha o traço?
Existe um norte onde não adivinho?
Qual nume ou nome procuro de espaço?
Importa apenas o gesto que faço?
– No chão noturno escondeu-se o caminho.
Muda-se o mudo momento em surpresa,
Ambíguo pasmo, ao vir de outro momento...
Jamais se muda a sutil incerteza,
Jamais! jamais! – porta de ouro defesa
Da Fábula, que alerta um mundo isento.
O perpassar de uma sombra ligeira
Corta a noite, vai onde a noite a some...
Assim perpassa a doce mensageira
Saudade, que não sinta quem não queira,
E a noite acorda a música de um nome!
Talvez de novo a dileta presença,
Atando enleios de amorosa trama,
Ora tornasse, eterna amante infensa,
Para fugir quando menos se pensa...
E volta, e parte, e quer, e ilude, e chama!
E chama! E vem de novo, como vinha,
A meu desejo, adorada visita,
Perdida para sempre, e mais vizinha,
A minha toda bela, a minha minha;
Meu bem! meu mal! minha amante infinita!
Ela, e não ela, imagem dela ainda,
Certeza dela, e divina conquista,
Veste as rosas da noite, e vem, bem-vinda...
Florido engano! E o doce engano finda,
E se deflora sobre a imagem vista.
Bem longe estais, meus tesouros de outrora,
– Carícias de sol, palores de lua,
Cúmplice olhar ofertando o que implora,
Vermelho riso esparzido na aurora
Da paisagem de linho branca e nua!
Nomais a mim, nomais de mim suponho
Rever-me a ver renovar-se de opressa
Pena de amor um tumulto risonho!
Na sombra a Sombra desfez-se... Foi sonho,
Mal acabou... – Novo sonho começa.
Como se aspira a presença ignorada
De uma flor – pura flama de mil vidas,
Que tanto mais esparsa mais agrada,
Aqui se ouve o silêncio... Ó tudo! ó nada!
Silêncio – voz de harmonias perdidas!
Silêncio – trama infinita do instante!
No afastamento, onde a memória alcança,
Move-se imensa tua vaga, avante,
Inunda, vai, sorve a noite de amante,
Até morrer na inconcessa lembrança...
Lembrança inútil, silêncio indiviso!
Espelho de arremedos e de mágoas!
Sepultou-se na treva um paraíso,
Entre águas negras... Treva! nem me aviso
Do espírito que voga sobre as águas.
Luz, mas luz presa no abismo indistinto,
O pensamento furta-me o que penso,
Outro abismo... Atro abismo! – E cedo! e sinto,
Imagem dupla de mim mesmo, o instinto,
Meu ser de treva entre dois caos suspenso.
A mão de leve se alonga, palpita,
Procede lenta no ar soturno e quedo,
Procura... – Que procura a mão aflita?
Quem guarda a sombra assombrosa onde habita
O instante, imoto, eviterno segredo?
Não sou? não fui? – A unânime verdade
Se faz ínvio jardim de ausência pura;
E no aroma selvagem que as invade,
Gêmeas fatais, a noite e a soledade
Respiram sós de impossível doçura...
Respira livre a noite sem destino,
Sem limite... Respira, ignota e calma,
Respira sobre um delírio divino,
Transmuta-se em temor quando imagino,
E a magia do Sol me extingue na alma!
Recresce o caos... Onde a purpúrea argila
Se turba, tombam as rosas que dantes
Frescas sangravam da manhã tranquila...
E tomba a flor de sonho, que cintila,
– Ouro sutil das estrelas distantes!
Eu cego! Eu só! E a negra plenitude
No ausente espaço urde a surpresa enorme
De um mundo esconso, ermo, repulso, rude...
Não mente a noite, a mente não se ilude,
É teu, minha alma, este mundo que dorme.
É tua a noite, a voragem secreta,
Fora do tempo, alheia ao tempo insonte,
E as aves torvas do fundo sem meta,
– Lascívias idas, que a palavra inquieta,
Imagens, nuvens de inviso horizonte:
É tua a soledade em que te apagas,
Imane mar de morte sonolento...
E elas revoam de inauditas plagas,
Informes, – formas dissolutas, vagas,
Flutuantes entre a noite e o pensamento.
Meu pensamento – minha noite escura!
Desejos, iras, penas, alegrias,
Foram de novo insuspeita amargura
Se foram mais que a sombra, que perdura
No abismo das memórias erradias...
Dormi, lembradas iras! Dormi, penas,
Desejos baldos que nunca dormistes!
As alegrias passaram apenas
Como as furtivas mágoas mais serenas...
Dormi, sombras! Dormi, fantasmas tristes!
Fonte:
FACÓ. Américo. Poesia Perdida. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1951.
FACÓ. Américo. Poesia Perdida. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1951.
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