domingo, 10 de julho de 2011

Monteiro Lobato (Viagem ao Céu) VI – Viagem ao céu


Daquela brincadeira do telescópio nasceu uma idéia — a maior idéia que jamais houve no mundo: uma viagem ao céu! A coisa parecia impossível, mas era simplicíssima, porque ainda restava no bolso de Pedrinho um pouco daquele pó de pirlimpimpim que o Peninha lhe dera na viagem ao País das Fábulas. A quantidade existente bastava para levar seis pessoas.

— O bom seria irmos todos — propôs a menina. — Todos menos vovó, coitada. Sofreu tanto lá com o Pássaro Roca, que bem merece um bom descanso-de-lagarto.

— Mas Tia Nastácia não há de querer ir — lembrou Pedrinho. — É a maior das medrosas.

— Pois levemo-la à força — sugeriu Emília.

— Como?

— Muito fácil. Ninguém lhe diz nada dos nossos projetos. Na hora de partir, Narizinho faz cara de santa e lhe dá uma pitada do pó dizendo que é rapé. Ela adora o rapé...

— Não está mal pensado — disse Pedrinho. — E o Burro Falante? Vai ou fica?

— Vai — decidiu Narizinho. — Vamos ter muita necessidade dele na Lua. E se lá vive o cavalo de São Jorge, pode muito bem viver um burro.

Tudo bem assentado, puseram-se a cuidar dos preparativos. Dessa vez Emília não pensou em levar a sua canastrinha. Levou outra coisa — uma coisa que ninguém pôde descobrir o que era. Um “bilongue” pequenininho, embrulhado em papel de seda e amarrado com um fio de lã cor-de-rosa. Narizinho insistiu em saber o que era.

— Não digo, não! — respondeu a boneca. — Se eu disser vocês caçoam. É uma idéia muito boa que eu tive...

No dia seguinte, bem cedo, levantaram-se na ponta dos pés e saíram para o terreiro, enquanto Narizinho se dirigia ao quarto de Tia Nastácia. Tinha de enganá-la, mas como? Pensou, pensou e afinal resolveu-se.

— Tia Nastácia! — gritou do lado de fora da janela. — Venha ver que manhã linda está fazendo.

A negra estranhou a novidade. Levantarem-se cedo assim não era comum, e ainda menos Narizinho convidá-la para “ver a manhã”, uma coisa tão à toa para uma negra que se levanta sempre às cinco horas. Mas foi ao terreiro ver o que era, com aqueles resmungos de sempre. Lá encontrou todos reunidos em redor do Burro Falante e a cochicharem baixinho:

— Hum! Temos novidade — murmurou a preta consigo, já na desconfiança. — Qual é a “peça” de hoje, Pedrinho?

— Nada, boba! Que peça havia de ser? É que nos deu na cabeça levantarmos muito cedo para assistirmos ao nascer do sol e agora estamos brincando de espirrar com este rapé que arranjei na cidade.

— Rapé? Rapé? — repetiu a preta, que era doidinha por uma pitada de rapé. — Será daquele que o Coronel Teodorico, compadre de Dona Benta, usa?

O Coronel Teodorico, fazendeiro vizinho de Dona Benta, aparecia por lá de vez em quando a visitá-la. Era compadre de Dona Benta, homem dos bem antigos, dos que até rapé ainda tomam. O tal rapé não passa de fumo torrado e moído; quem o aspira pelo nariz espirra — e parece que o gosto é esse: espirrar... Napoleão foi um grande tomador de rapé. Hoje pouca gente usa tal coisa, só os homens muito carrancas e conservadores, como aquele compadre de Dona Benta.

— Pois quero experimentar, sim — disse a negra. — O coronel chupa esse rapé com tanto gosto que sempre tive desejo de ver se a marca é boa — e assim falando tomou o pó que o menino lhe apresentava e sem desconfiança nenhuma aspirou-o. Assim que a negra fez isso, os outros fizeram o mesmo, inclusive o burro e... mais nada! Veio aquele fiunnn no ouvido, e depois a tonteira própria do pó de pirlimpimpim, e todos perderam a consciência. Estavam voando pelo espaço com a velocidade quase da luz.

Súbito, perceberam que haviam chegado. Começaram a abrir os olhos. No começo nada viram. Tudo muito embaralhado. Por fim as coisas se foram aclarando e puderam olhar em torno. Estavam numa terra esquisitíssima, sem gente, sem vida, toda cheia de picos de montanhas em forma de crateras de vulcões extintos. Todos haviam voltado a si, menos Nastácia. A pobre negra, que pela primeira vez naquele dia aspirava o pó de pirlimpimpim, estava escarrapachada no chão, com os olhos arregaladíssimos — mas sem ver nem sentir coisa nenhuma.

— Temos de esperar que ela acorde — disse Pedrinho. — Parece que a boba tomou dose dupla...

Esperaram alguns minutos, até que a negra começou a dar mostras de estar voltando a si. Passou a mão pela cara, esfregou os olhos e, correndo-os em torno, disse com voz sumida:

— Que será que me aconteceu? Amode que caí num poço...

— Não caiu nada, bobona. Você está conosco num astro qualquer no céu.

— No céu?!... — repetiu a preta, arregalando ainda mais os olhos. — Deixem de pulha. Para que enganar uma pobre velha como eu?

— Não estamos enganando ninguém, Nastácia — disse Pedrinho. — Estamos, sim, no céu, num astro que ainda não sabemos qual é.

O assombro da negra foi tamanho que não achou palavra para dizer. Nem o seu célebre “Credo!” ela murmurou. Quedou-se imóvel onde estava, a olhar ora para um, ora para outro, de boca entreaberta.

— Eu acho que isto aqui é o Sol — declarou Emília. — Apenas estou estranhando não ver nenhuma floresta de raios.

— O disparate está de bom tamanho! — caçoou Pedrinho. — Não sabe que o Sol é mais quente que todos os fogos e que se estivéssemos no Sol já estávamos torrados até o fundo da alma? Pelo que vovó nos explicou, isto está com cara de ser a Lua — mas não tenho certeza. De longe é muito fácil conhecer a Lua — aquele queijo que passeia no céu. Mas de perto é dificílimo. O melhor é mandarmos o Doutor Livingstone a um astro próximo para de lá nos dizer se isto é mesmo a Lua ou o que é.

Uma pequena dose do pó de pirlimpimpim foi enfiada no nariz do antigo Visconde, o qual imediatamente se sumiu no espaço. Emília deixou passar uns segundos e gritou para o ar:

— É a Lua ou não, Doutor Livingstone?

Mas nada de resposta. A distância devia ser muito grande, de modo que a vozinha rouca do Doutor Livingstone não podia chegar até eles.

— Que asneira fizemos! — exclamou Pedrinho. — Devíamos ter pensado nisso — que era impossível que a vozinha do Visconde pudesse varar a imensidão do espaço. Além disso, para onde será que ele se dirigiu? Em que astro foi parar? Há milhões e milhões de astros por essa imensidade afora...

— Milhões e milhões, Pedrinho? Não acha meio muito? — duvidou a menina.

— Pois é o que dizem os astrônomos. O espaço é infinito. Sabe o que é ser infinito? É não ter fim, nunca, nunca, nunca. Quem sair voando em linha reta por essa imensidade não volta jamais ao mesmo ponto. Fica a voar eternamente.

Emília interrompeu-o:

— Achei um jeito de resolver o caso de saber que astro é este. Basta fazermos uma votação. Se a maioria votar que isto é a Lua, fica sendo a Lua. É assim que os homens lá na Terra decidem a escolha dos presidentes: pela contagem dos narizes.

Não havendo outro meio de saírem daquela incerteza, fizeram a votação. Pedrinho foi tomando os votos.

— Você, Narizinho?

— Lua!

— E você, Emília?

— Luíssima!

— Eu, Pedrinho, também Lua. E você, Tia Nastácia?

A negra, ainda tonta, olhou para o menino com expressão idiotizada e respondeu:

— Para mim, nós estamos na Terra mesmo; e tudo que está acontecendo não passa de um sonho de fadas.

— Três narizes a favor da Lua e um a favor da Terra! — gritou Pedrinho. — A Lua ganhou. Estamos na Lua. Viva a Lua!...

A negra sentiu um calafrio. Se a maioria tinha decidido que estavam na Lua, então estavam mesmo na Lua. E isso de estar na Lua parecia-lhe um enorme perigo. A única coisa que Tia Nastácia sabia da Lua era que lá morava São Jorge a cavalo, sempre ocupado em espetar na sua lança o dragão. Com São Jorge, que era um santo, ela poderia arranjar-se. Mas que fazer com o dragão? E a pobre negra pôs-se a tremer.

— Meu Deus! — suspirou ela. — Tudo é possível neste mundo...

— Como sabe? — perguntou Emília espevitadamente.

— Se você nunca esteve neste mundo, como sabe que nele tudo é possível?

— Quando eu digo este mundo, falo do meu mundo, do mundo onde nasci e sempre morei — explicou a preta.

— Bom. Se você se refere ao mundo em que nasceu e sempre morou, deve dizer naquele mundo, porque este mundo é a Lua, e neste mundo da Lua não sabemos se tudo é possível.

Enquanto Emília argumentava com a preta, Pedrinho afastou-se para examinar a paisagem. Sim, tudo exatamente como Dona Benta dissera. Aparentemente, nada de água e, portanto, nada de vegetação e vida animal como na Terra. Sem água não há vida. Todas as vidas são filhas da água. E o número de crateras não tinha fim.

Pedrinho ia levando o burro pelo cabresto e com ele trocava impressões.

— Se não há água neste astro, então também não há capim — dizia o pobre animal. — Não haver capim!... Que absurdo! O capim é o maior encanto da natureza. É uma coisa que me comove mais que um poema.

— E qual é a sua opinião, burro, sobre a formação da Lua? Há várias hipóteses.

— Sim. Uns sábios acham que a Lua foi um pedaço da Terra que se desprendeu no tempo em que a Terra ainda estava incandescente. Outros acham que o planeta Saturno foi vítima duma tremenda explosão causada pelo choque dum astro errante. Fragmentos de Saturno ficaram soltos no céu, atraídos por este ou aquele astro. Um dos fragmentos foi atraído pela Terra e ficou a girar em seu redor.

— E sabe que tamanho tem a Lua?

— O volume da Lua é 49 vezes menor que o da Terra. A superfície é treze vezes menor. A superfície da Lua é de 38 milhões de quilômetros quadrados — mais que as superfícies da Rússia, dos Estados Unidos e do Brasil somadas.

Pedrinho admirou-se da ciência do burro. Não havia lido astronomia nenhuma e estava mais afiado que ele, que era um Flammarionzinho... Mas não querendo ficar atrás, disse:

— Pois eu também sei uma coisa da Lua que quero ver se é certa. O peso de tudo aqui é mais de seis vezes menor que lá na Terra. Um quilo lá da Terra pesa aqui 154 gramas. Eu, por exemplo, que lá em casa peso 46 quilos, aqui devo pesar 7 quilos!... É pena não termos uma balança para verificar isso.

— Há um jeito — lembrou o burro. — Dê um pulo e veja se pula seis vezes mais longe que lá no sítio.

Pedrinho achou excelente a idéia. Os melhores pulos que ele havia dado no sítio foram: pulo de altura, 1 metro e 20; e de distância, 5 metros. Se ali na Lua ele pulasse seis vezes e pouco mais longe que no sítio, então estavam certos os cálculos dos astrônomos.

Pedrinho amarrou o burro numa ponta de pedra, marcou um lugar no chão, deu uma carreira e pulou — e foi parar exatamente a 33 metros de distância, mais de seis vezes o seu pulo recorde lá no sítio! E no pulo de altura alcançou mais de 8 metros. Um assombro!...

Depois de feitas as medições, Pedrinho ficou radiante.

— É verdade, sim! — gritou ele. — Aqui na Lua eu pulo melhor que qualquer gafanhoto da Terra — e começou a brincar de pular. Deu vinte pulos de altura; e depois em cinco pulos chegou ao ponto onde estavam os outros — uma distância total de 165 metros.

— Que é isso, Pedrinho? — exclamou a menina. — Virou pulga?

— Aqui toda gente vira pulga — respondeu ele. — Experimente pular. Veja que gostosura.

Narizinho pulou e viu que estava levíssima. Emília também pulou como um grilo. E ainda estavam entretidos naquele pula-puía, quando Tia Nastácia apareceu, muito aflita, com a pacuera batendo.

— Um bufo! — exclamou a pobre preta, toda sem fôlego. — Ouvi um bufo! Há de ser do dragão...

Pedrinho riu-se.

— Dragão nada, boba. Isso de dragão é lenda. Como poderia um dragão vir da Terra até aqui, se na Terra não há dragões? Tudo é fábula. E se acaso pudesse um dragão vir da Terra até aqui, como viver num astro que não tem água nem vegetação? Isso de dragão na Lua não passa de caraminhola de negra velha...

Apesar dessas palavras, novo bufo soou. Todos voltaram-se na direção do som e com o maior dos assombros viram sair de dentro duma das crateras a monstruosa cabeça do dragão de São Jorge.

— Lá está o malvado! — berrou Emília. — Enxergou o burro e vem comê-lo.

Tia Nastácia ia dando um berro de pavor, que Narizinho teve tempo de evitar tapando-lhe a boca. “Louca! Se você grita, ele ouve e vem devorar-nos. Por enquanto só viu o burro. Temos de esconder-nos numa das crateras.”

O dragão ia lentamente saindo de sua toca. Breve puderam vê-lo todo de fora — um comprido corpo de lagarto recoberto de escamas verdes e com uma enorme cauda de serra com ponta de flecha no fim. Tal qual Emília o descrevera ao telescópio. A língua também, muito vermelha, terminava em ponta de flecha.

Todos se encolheram dentro dum buraco próximo e ficaram a espiar por uma rachadura da pedra. Falavam aos cochichos.

— Ele está na Lua há séculos — sussurrou Pedrinho — e há séculos que não come coisa nenhuma. Agora viu o burro. Sua fome despertou. Olhem como está lambendo os beiços com aquela língua de flecha...

— Mas não podemos deixar que coma o nosso burro — murmurou Narizinho. — Vovó ficaria danada. Temos de salvá-lo...

— Como?

— Indo procurar São Jorge. Se existe o dragão, há de existir também São Jorge.

— Sim, mas onde morará ele? Nalguma cratera também? O dragão aproximava-se cada vez mais, embora muito lentamente. Parece que com os séculos de imobilidade passados ali seus músculos tinham enferrujado.

— E o burro está amarrado pelo cabresto a uma ponta de pedra. Não pode fugir! Que estupidez a minha, amarrar um burro daqueles...

— Pois é desamarrá-lo — sussurrou Emília. — Não vejo outro jeito.

— E quem vai fazer isso?

— Eu, que sou de pano — e sem mais discussão Emília saiu do buraco e correu na direção do burro, o qual já estava dando visíveis sinais de terror.

O que valeu foi o emperramento dos músculos do dragão. Vinha vindo como fita em câmera lenta. Emília num instante alcançou a ponta de pedra, desfez o nó do cabresto e gritou para o burro: “Fuja, senão está perdido para sempre! Esse dragão há séculos que não come coisa nenhuma”.

Com grande surpresa, porém, Emília viu que o pobre burro, paralisado pelo terror, não se mexia do lugar.

— Vamos! — gritava ela. — Mova-se! Raciocine e fuja...

E o burro imóvel, paralisado de movimentos, não conseguia nem raciocinar, quanto mais fugir!

O dragão vinha vindo, vinha vindo, balançando a língua de ponta de flecha para a direita e para a esquerda. Mais uns segundos e chegava — e adeus, Burro Falante!...

Na sua aflição Emília teve uma grande idéia. Correu a buscar com Pedrinho uma pitada de pó — e de volta assoprou-o nas ventas do pobre burro paralisado. Isso exatinho no momento em que a ponta da língua do dragão já se armava para fisgar. Ouviu-se um fiunnn e o burro lá se foi pelos espaços, que nem um cometa.

Vendo-se logrado, o dragão desferiu um urro medonho, ao mesmo tempo que jatos de fogo espirraram de seus olhos.

Nem de propósito. São Jorge, que estava cochilando longe dali, ouviu o estranho urro, pulou no cavalo e veio de galope.

Assim que o viu chegar, o dragão baixou a cabeça com grande humildade e foi tratando de recolher-se à sua cratera.

— Já, já para a toca, seu malandro! — gritou São Jorge sacudindo no ar a lança.

Depois, vendo por ali aquela boneca, abriu a boca, espantadíssimo.
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Continua … VII – Coisas da Lua
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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