Horas depois a vista daquela enorme Terra pendurada no céu já estava completamente mudada, e Pedrinho retomou as suas lições de geografia a São Jorge.
— Lá está o continente europeu! — disse ele. — Aquelas ilhas naquele ponto (e apontava) são as ilhas Britânicas, ou Grã-Bretanha — a tal Bretanha sem nenhuma importância no tempo do seu amigo Diocleciano. Mais adiante temos a Noruega com os seus fiordes...
— E suas sardinhas também — acrescentou Emília. — As sardinhas da Noruega viajam pelo mundo inteiro nuns barquinhos, chamados “latas”.
São Jorge não entendeu, porque no seu tempo não havia latas. Pedrinho continuou:
— A tal Rússia, que o senhor queria saber onde ficava, lá está — aquele país grandão. É a terra dos russos barbudos, dos cossacos, do caviar, das danças lindas e dos sovietes. Foi onde Napoleão levou a breca.
— Quem é esse leão? — perguntou o santo.
— Um grande matador de gente — explicou Pedrinho. — Depois de matar milhões de criaturas na Europa, resolveu matar russos, e invadiu a Rússia com um exército de 600.000 homens. Chegou até Moscou, que era a capital. Mas sabe o que os russos fizeram? Assim que Napoleão foi se aproximando, tocaram fogo nas casas e retiraram-se — e o pobre Napoleão, em vez de conquistar uma cidade, conquistou uma fogueira.
— Bem feito! — exclamou Emília.
— Em vista disso -— continuou Pedrinho — o conquistador não teve outro remédio senão voltar para a França com o seu exército. Essa França era a Aquitânia do tempo de Diocleciano. Mas o inverno russo estava bravo; e os dois, o inverno russo e o exército russo, caíram em cima dos franceses, fazendo uma horrorosa matança. Só vinte e tantos mil homens, dos 600.000, conseguiram atravessar a fronteira, imagine! Vovó conta a história de Napoleão na Rússia dum modo que até arrepia os cabelos da gente.
São Jorge sacudia a cabeça, pensativo. Tudo lhe eram novidades.
— E lá aquela bota, Pedrinho? — perguntou Emília, apontando.
— Pois é a Itália dos italianos. Lá é que ficava a tal Roma do tal Diocleciano, amigo cá do nosso São Jorge. Repare que a bota italiana está dando um pontapé numa ilha — a Sicília.
— Bem feito! — exclamou a boneca.
— E aquelas duas ilhas perto do cano da bota? — perguntou Narizinho.
— A maior é a ilha da Sardenha ou Sardinha, e a menor é a ilha da Córsega, onde nasceu o tal Napoleão.
— Que desaforo, a ilha da Sardinha ser maior que a de Napoleão! — exclamou Emília. — Para que quer uma sardinha uma ilha tão grande assim? Eu, se fosse fazer o mundo...
— Já sei — interrompeu a menina — dava a ilha maior a Napoleão e a menor à sardinha, não é isso?
— Não! — gritou a boneca. — Dava as duas para Napoleão e à sardinha dava uma lata. As sardinhas precisam muito mais de latas do que de ilhas.
Todos riram-se, menos São Jorge, que não entendeu aquele negócio de latas.
— E aquela terra grandalhona embaixo da Europa? — perguntou Narizinho, apontando.
— Pois lá é a África, não vê? Dentro fica o deserto do Saara, com os seus oásis tão lindos, as caravanas de camelos, as palmeiras que dão tâmaras gostosas.
— E a terra dos bôeres que fizeram guerra aos ingleses? Onde fica?
— Essa é bem no fim da África, naquela pontinha. Lá existe a Cidade do Cabo, que é a capital.
Emília deu uma risada gostosa.
— Um cabo que tem cidade, ora vejam! — exclamou. — E depois dizem que a asneirenta sou eu... Onde se viu um cabo com cidade na ponta?
— É um modo de dizer — explicou Pedrinho. — Chama-se Cidade do Cabo porque fica perto do famoso cabo da Boa Esperança, que o navegador português Vasco da Gama dobrou pela primeira vez.
Emília abriu a torneirinha.
— Que danado! — exclamou arregalando os olhos. — Dobrar sem mais nem menos um cabo assim deve ser coisa difícil. Esse Vasco, ou tinha a força de dois elefantes ou o tal cabo era como o daquela caçarola de alumínio de Dona Benta, tão mole que até eu dobro quando quero.
Narizinho cochichou ao ouvido de São Jorge que Emília estava com a torneirinha aberta. “Que torneirinha?”, perguntou o santo. “A torneirinha de asneiras que ela tem no cérebro. Quando Emília abre essa torneirinha, ninguém pode com a sua vida.”
Depois que Emília parou de asneirar São Jorge pôs-se a dizer onde ficavam as terras conquistadas pelos romanos do seu tempo. Mostrou tudo, até o lugarzinho onde era a sua Capadócia e o ponto onde existiu Cartago, a república africana rival de Roma e por esta destruída depois de várias guerras. E contou tantas histórias do tempo de Diocleciano que as crianças, já cansadas, adormeceram.
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Continua … XI – Continua a viagem
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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