terça-feira, 5 de julho de 2011

Aurélio Buarque de Holanda (À margem da “Canção do Exílio”)

pintura a óleo sobre tela de Nicéas .
As Laveiras do Rio São Francisco. pintado na Bahia em 1982.

Discorda Manuel Bandeira do receio da ênfase que levou José Veríssimo a chamar “quase sublime” à “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias. Admirando irrestritamente o poema, Bandeira não vê razão para o “quase”. Embora eu não morra de amores pelo sublime, estou de acordo com o poeta de A Cinza das Horas. Afinal de
contas, o bom ou mau gosto do qualificativo é questão pessoal: o certo é que a ideia nele contida me parece bem ajustada àqueles versos de 20 anos, de uma beleza tão simples e tão alta.

Esta simplicidade será uma das razões mais seguras da boa fortuna da “Canção”. Pela altura de 1943 ocorreu o centenário dela: viu-se que ainda estava bem viva, a ponto de ter recebido festas em sua honra, promovidas por aquele excelente Nogueira da Silva, um possesso da glória de Gonçalves Dias, e que parece só haver mesmo esperado a comemoração para liquidar contas com a vida.

Refletindo no segredo de tal simplicidade, vejo que ele reside em mais de um ponto. O principal é talvez o seguinte: a ausência de qualificativos. A falta desse elemento valoriza de maneira singular os substantivos do poema, dando–lhes relevo, dilatando-lhes a sugestão emocional.

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar – sozinho, à noite –
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Observe-se: além dos conectivos – onde, que, como, sem que, por, para – tudo o mais são substantivos (ou pronomes pessoais) e verbos, elementos básicos da oração; advérbios de lugar – aqui, cá (a terra do exílio) e lá (a pátria distante); possessivos – minha, nosso – e o quantitativo mais (aqueles e este repetidos tantas vezes); e, por fim, o não. Nada de qualificativos.

Quanto aos possessivos e ao quantitativo, a presença deles basta para sugerir a antítese: “minha terra tem palmeiras” (e subentende-se: e esta terra não as tem), ou o segundo elemento da comparação: “Nosso céu tem mais estrelas” (do que o céu desta terra); “Mais prazer encontro eu lá” (do que aqui). Só duas vezes a comparação, ou correlação, aparece integral: “As aves, que aqui gorjeiam, / Não gorjeiam como lá”, e “Minha terra tem primores, / Que tais não encontro eu cá”. O não, nestes dois casos, serve para mostrar a inferioridade da terra de exílio; e no terceiro e último – “Não permita Deus que eu morra” – indica o receio do poeta de morrer sem tornar a ver o chão natal.

Alguém poderá lembrar-me que sozinho figura no poema e é um qualificativo. A rigor, porém, não merecerá tal denominação: falta a sozinho (como a só, está claro) a essência pictural característica das palavras daquela categoria, corno, por exemplo, azul, branco, bom, forte, largo, rico.

E por que razão a ausência de qualificativos valoriza tão fortemente os substantivos do poema, conforme foi dito? Porque o poeta usou de substantivos carregados, já por si, de um denso conteúdo sugestivo – seres e coisas da natureza, na maioria, ou abstrações: elementos que, assim despojados, nus, ganham fundo em intensidade; que se fazem valer melhor por si sós: terra, palmeiras, Sabiá, aves, céu, estrelas, várzeas, flores, bosques, vida, amores, noite, prazer, primores, Deus.

De tais elementos o mais importante é Sabiá, que, por sinal, Gonçalves Dias escreveu com inicial maiúscula. Sabiá aparece quatro vezes na poesia, e rimando com as palavras cá e lá, de tão vivo poder de sugestão, pois designam, respectivamente, o país estrangeiro e a terra natal.

Repare-se, agora, na posição destas palavras – Sabiá, cá e lá –, seguramente as mais importantes do poema, ao lado de terra e palmeiras: posição de relevo, em fim de verso; a mesma do vocábulo palmeiras, quatro vezes empregado. Na segunda estrofe, o encadeamento, somente usado nela e, em parte, na última, contribui para a variedade, quebrando o que poderia haver de monótono pela insistência em determinados efeitos de repetição e criando novo efeito. Com exceção dos substantivos finais da segunda estrofe – estrelas, flores, vida, amores –, precedidos do quantitativo mais para fim de comparação (a qual, como se viu, fica subentendida), todos os demais substantivos de fim de verso vêm desacompanhados de adjetivos de qualquer natureza. Por outro lado, todos os substantivos usados em meio de verso, fora aves, acham-se modificados por um adjetivo: “minha terra”, “nosso céu”, “nossas várzeas”, “nossos bosques”, “nossa vida”, “mais prazer”. O próprio aves está modificado por uma oração adjetiva: “que aqui gorjeiam”.

Na lista de substantivos do poema incluí noite. Normalmente, talvez não devesse fazê-lo, pois o termo é parte integrante de uma locução adverbial. Mas a palavra, aliada ao sozinho, traduz tão poderosamente o abandono do poeta que a sinto como obstinada em não se diluir no conjunto da locução. E quanto aquele sozinho, à noite é fundamente sentido (as cismas noturnas, na solidão do exílio!), é o mesmo Gonçalves Dias quem o mostra: usando-o por duas vezes, da segunda procura dar-lhe relevo, ladeando-o de travessões.

Vejamos a admirável técnica da repetição.

Dos 24 versos do poema, nada menos de sete (o 11.o, o 12.o, o 15.o, o 16.o, o 17.o, o 18.o e o 24.o) repetem na íntegra versos anteriores, e quatro (o 13.o, o 21.o, o 22.o e o 23.o) são repetições parciais. Os elementos da segunda estrofe, paralelística, não se reiteram nunca. A terceira estrofe constitui-se de dois versos novos, mais os dois iniciais da primeira.

Na quarta nota-se a repetição quase integral do primeiro verso do poema, com a simples mudança de palmeiras em primores (palavra esta, por sinal, em que a primeira letra de cada sílaba é exatamente a mesma que em palmeiras, fato possivelmente intencional); depois, um verso inteiramente novo – “Que tais não encontro eu cá” – e a repetição de toda a estância anterior, constituindo-se assim uma sextilha.

A última estrofe, sextilha também, admirável de sentimento, é um achado de poética: um verso formado de palavras inteiramente novas; outro em que aparece uma das constantes mais poderosas do poema – lá; dois que repetem parcialmente o 13.° e o 14.°, terminando o segundo deles com outra constante das mais valiosas – cá; no penúltimo verso, a repetição de nova palavra de igual natureza – palmeiras; por fim, integralmente, o verso mais repetido de toda a composição; o único, pode-se dizer, em que se apresenta um ser vivo, o Sabiá – a nota mais típica da terra pátria.Oúnico, sim; porque aves, nome também de ser vivo, é usado assim, genericamente, no plural, uma só vez, apenas para, desenvolvendo a ideia de que no lugar do exílio não havia o Sabiá, poder o poeta frisar que as mesmas aves comuns aos dois países gorjeiam na terra natal com maior beleza.

Ainda mais: o encadeamento, desprezado na terceira e na quarta estrofe, retoma aqui, na última, o seu lugar, utilizando agora o autor um expediente de efeito: a aliança daquele processo de repetição – elemento tão largamente valorizador do poema – “Sem que eu volte”, “Sem que desfrute”, “Sem qu’inda aviste” (uma sequência só interrompida pelo antepenúltimo verso – “Que não encontro por cá”) – com a iteração, no fim de cada um dos versos começados por “Sem que”, de palavras-temas várias vezes repetidas ao longo da composição – lá, palmeiras – e primores, empregada uma vez antes. E se, no encadeamento, a sequência perfeita é quebrada por aquele antepenúltimo verso – “Que não encontro por cá” – a arte do poeta fez que ele fosse quase uma repetição integral, e talvez melhorada, do “Que tais não encontro eu cá”.
Abril de 1944.

Fonte:
Revista Brasileira n. 64. Academia Brasileira de Letras.

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