sábado, 9 de julho de 2011

Vicência Jaguaribe (A Decisão)


Não valia a pena ficar batendo boca. Ela via o mundo de maneira diferente. Tinha uma vida para fora. Tinha outra vida para dentro. A vida para fora, ela a vivia de acordo com as normas sociais e com os valores da família. A vida para dentro, ela a vivia seguindo suas próprias leis. O diabo era quando essas duas vidas se chocavam. Abria-se um campo de batalha. Mas ela sabia que logo logo precisaria decidir.

O conflito maior ela travava com o noivo, que desejava casar sem demora. Era juiz em começo de carreira, fora nomeado para uma cidadezinha nos confins do estado e queria assumir a comarca já com a esposa do lado. Ela terminava o Curso Médio e queria ingressar na universidade. Mas, pelo que estava vendo, era uma coisa ou outra.

Gostava do noivo, isto é, gostava de conversar com ele, de estar com ele, mas não sentia a paixão de que as amigas falavam. Nem se imaginava em uma cidadezinha do interior, limpando a casa, cozinhando para o marido e, um pouco mais adiante, cuidando de filhos. Quando via uma família feliz – pai, mãe e filhotes –, arrepiava-se. Não. Não nascera para isso. Podia até ser que, mais adiante, encontrasse alguém com quem pudesse dividir alguns momentos da vida. Dividir a vida toda, não, muito menos a casa. Seria cada um no seu muquifo. Mas o namorado tinha pressa, e os pais – meu Deus! – não admitiam nem em sonho que rejeitasse aquele partido.

Partido! Por que chamam as pessoas casadouras de partido? O bom e o mau partido! Pelo que ela sabia, essa palavra se originara, por derivação imprópria ou conversão, do adjetivo partido, isto é, algo quebrado, fragmentado, que se dividiu em partes. Vem a palavra da fonte latina – part/us, que significa “que partilhou, que tomou o seu quinhão”. Isso pode querer dizer que em um casamento os cônjuges devem partilhar tudo: o material e o imaterial; o que é bom e o que é ruim. Mas pode significar também que devem tomar para si parte do outro. Não, ela não queria dividir-se como se divide um espólio, para que alguém se tornasse dono de uma parte do seu ser. Ela se queria inteira, para tomar suas decisões, para resolver o que fazer de sua vida.

Fora criada ouvindo que o destino da mulher é o casamento. É a procriação. Uma mulher sem marido e sem filhos é uma mulher incompleta. Ela não pensava assim. É verdade que não desejava viver sozinha, mas ainda não era hora para tomar uma decisão tão radical. Acabara de completar dezoito anos e ia prestar vestibular, disputando uma vaga no curso de História. Tinha certeza de que seria aprovada. Aí, então, largaria tudo, para casar e morar longe dos centros intelectuais? Para que, então, estudara tanto, dedicara-se tanto aos livros. Não fazia sentido. A mãe já dissera que, se ela decidisse pelos estudos e despachasse o noivo, teria que arranjar um emprego para se sustentar enquanto fizesse a faculdade. Contasse somente com casa, comida e roupa lavada e engomada. Mais nada.

A mãe apostava no seu gosto por roupas e sapatos caros, na sua ânsia de comprar, principalmente livros e discos. Jurava que ela não seria capaz de renunciar à vaidade, à vida fácil; trabalhar e privar-se das coisas de que gostava. Mas a mãe se enganava. Mostraria aos pais que tinha um objetivo na vida, que desejava crescer como pessoa, por seus próprios méritos. O casamento ficaria para depois.

Queria falar com o noivo pessoalmente. Não lhe daria a notícia por carta nem por telefone, por isso esperou que ele fizesse uma de suas viagens periódicas para visitar a família e revê-la. Por mais que temesse sua reação, preferia falar cara a cara. Sabia que ele sofreria, pois sempre a amara muito. Tinha certeza de que ele tentaria o impossível para dissuadi-la. Mesmo assim, preferia enfrentá-lo. E tiveram a conversa definitiva.

A reação do rapaz foi surpreendente. Parecia até que já aguardava aquele desfecho. Agiu como se ela fosse mais uma namoradinha de fim de semana, com quem não tivesse nenhum compromisso mais sério. Desejou-lhe boa sorte nos estudos. Deixou-a perplexa, mas ao mesmo tempo tranquilizada. O problema a enfrentar não seria tão grande quanto pensara. Teria que entender-se somente com os pais. Mas no fundo achava que a reação dele não fora normal. Havia alguma coisa de que ela não sabia naquela história. Ah! se havia!

Não foi surpresa nem para ela nem para ninguém sua aprovação no vestibular. Também não foi surpresa para ela – mas só para ela – a notícia de que ele estava de casamento marcado com a filha única de um fazendeiro rico da região. Bem que desconfiara de que havia alguma coisa por trás daquela sua reação, melhor dizendo, da sua falta de reação ao fim do compromisso com ela. Dizer que ela não sentiu nada quando soube seria mentir. Sentiu, sim, uma leve mordida em seu amor próprio, mas foi coisa de momento. Logo mergulhou de cabeça nos estudos, conheceu gente nova, fez amizades e sentiu que tomara a decisão certa. Logo se engajou em pesquisas e assim que o tempo permitiu candidatou-se a uma bolsa de iniciação científica, que lhe rendia algum dinheiro todos os meses.

Lembrava-se do ex-namorado? Cada vez menos. E, sempre que isso acontecia, a lembrança vinha acompanhada de uma sentença que ouvira muitas vezes de uma pessoa da família: Coração de homem é terra que ninguém pisa.

Fonte:
Texto enviado pela autora

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