Acolhe a serra entre os lábios
o que o céu colore e abrasa.
Um tropel rola dos longes,
aproxima-se da casa,
e o chão despede em poeira
muitas ânsias de ter asa.
Berrante – quanta amargura!
(Que perdeu? O que reclama?)
Como a chorar já sem lágrimas
nas quebradas se derrama ...
A serra engole, de um trago,
natas de cinzas e flamas.
Chega a noite. Os brejos cantam.
O escuro faz tudo em nada.
Os golpes de mil galopes
cessam – e gritam da estrada:
- Ô de casa! abra a porteira,
que já ê-vem a boiada.
Disparar de bois que avançam
contra o curral já aberto,
na fúria das trovoadas
que pisam o céu deserto.
Mas logo calam-se os cascos.
Tudo é silêncio por perto.
Eis o fogo ... eis que a fogueira
acende o escuro e a quietude.
Em volta seis sombras falam.
Choram seis mágoas no açude.
E eis que crepitam lembranças
e sobem na fala rude.
- Foi minha culpa, foi culpa
de ter deixado o meu povo.
Já me cansava da vida
em casa, e um dia resolvo
bater pernas, correr mundo,
atrás do que fosse novo.
Gastando tudo o que tinha
dois anos vivi à-toa,
sem pensar em coisa alguma
que não fosse coisa boa ...
Mas, não sei como, uma noite
no escuro um grito ressoa.
Hora amarga! Nem sei como
à casa fui tão ligeiro.
Toda ao chão ... Meus pais e irmãos
enterrei-os no terreiro.
Sem ninguém, sem ter mais nada,
me ajustei de boiadeiro.
- Inda agora me alembrava
de quando era um rapagote
Instrução nunca me deram.
De amores eu tinha um lote.
Mais que de tudo gostava
de lidar com um bom garrote.
Já nem sei se me arrependo,
se me dá tristeza e dor
lembrar o dia em que disse
a meu patrão: - meu senhor,
quando for tirar boiada
quero ser seu laçador.
Levar a vida que levo.
Nunca ter onde parar.
Sempre a ir, uma só mágoa
me espera em cada lugar:
daí eu vou pra adiante,
daí não posso voltar.
- Me alembro: as terras lá longe ...
lá perto de Mato Grosso.
Era o bamba nos pagodes.
Montado, eu era um colosso.
Me alembro: as moças gostavam.
Ah, meu tempo de mais moço!
Não fosse bolir, não fosse,
com uma dona até que feia.
Por cismar com seus galeios,
minha vida – esperdicei-a.
Sangrei o cujo, mas outro
era eu depois da cadeia.
- O meu caso? De tão triste,
eu nem não vou contar não
Ah! talvez se alguém me ouvisse
menor seria a aflição.
Mas quem não ri quando escuta
histórias de ingratidão?
Parece até que é pecado
gostar de quem não nos queira.
Seria ela ou a fazenda?
Ao fim de muita canseira
da fazenda eu fiz um brinco
... e me quis a fazendeira?
- Quando fico a cismar coisas
é porque não tem mais jeito.
Também cresci feito os moços
que têm o mundo no peito.
Agora a vida lembrada
lembra um mel que não foi feito.
Razão forçosa, isso tenho
de clamar por todo canto.
Onde vou, está a moça
que, vai ver, botou quebranto
em mim, me deixando mole
como casca de pau-santo.
Sei lá porque fui deixá-la,
se era dela que eu gostava?
Voltei ... Voltando meu peito
ia que nem vaca brava.
Mas no mesmo dia a moça
com um pau-rodado casava.
- Também se penso na vida
logo me sinto logrado.
Não tinha nem vinte anos,
fui no exército alistado.
Por dois anos roí osso.
Dura sorte, a do soldado.
Um dia volto homem feito.
Já não encontro meus pais.
Sem eles, sem uma ajuda,
eu vim por esses gerais.
Agora toco boiada.
Já nem sei se volto mais.
Vai-se fazendo a fogueira
em cinzas e despedidas.
De um aboio sobe aos ventos
a mágoa de seis feridas,
até que o sono despeje
o esquecimento em seis vidas.
Xô-xô galinhas! o milho ...
Vacas põem mudos os galos.
Mais alta, a voz do berrante
do sono vai arrancá-los,
aos boiadeiros, que mudos
arreiam os seus cavalos.
Zona tão triste, a que a serra
empresta o sono de idades ...
A boiada come aos poucos
longes de azul e alvaiade.
Sobe poeira e o berrante
sopra ao ar mais seis saudades.
Fontes:
SOUSA, Afonso Felix de. Chamados e escolhidos. RJ: Record, 2001
Imagem - http://boiadeirorei.wordpress.com
SOUSA, Afonso Felix de. Chamados e escolhidos. RJ: Record, 2001
Imagem - http://boiadeirorei.wordpress.com
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