Com o reaparecimento do Visconde, agora transformado em Doutor Livingstone, a vida do sítio voltou a ser a mesma de outrora. Acabaram-se os suspiros de saudades, mas o Visconde ficou sendo duas coisas: Visconde e Doutor Livingstone. Todos o tratavam ora dum jeito, ora de outro — como saía.
Numa das noites daquele mês de abril estava Dona Benta na sua cadeira de balanço, lá na varanda, com os olhos no céu cheio de estrelas. A criançada também se reunira ali. Pedrinho, de cócoras no último degrau da escada, abria com a ponta do canivete um furo no seu pião novo de brejaúva. Diante dele o Doutor Livingstone seguia o trabalho com a maior atenção.
— Vai ser uma caviúna batuta! — exclamou o menino. — Se este piãozinho não assobiar que nem um saci, perco até o meu canivete.
— Que quer dizer caviúna? — perguntou o novo Visconde.
— É por causa da cor preta — respondeu Pedrinho, — Aquela madeira caviúna, ou cabiúna, tem exatinha esta cor de brejaúva madura. Há brejaúva, ou brejaúba, lá na sua África?
— Não há coco que não haja no continente africano — respondeu o Doutor Livingstone — mas por que essa história de caviúna ou cabiúna, brejaúva ou brejaúba? Que preocupação é essa?
Pedrinho riu-se.
— É que o tal “b” e o tal “v” parecem que são uma e a mesma coisa. As palavras com “b” ou “v” ora aparecem dum jeito, ora de outro. Tudo que aqui dizemos com “b”, os portugueses lá em Portugal dizem com “v”, e vice-versa; e aqui mesmo há um colosso de palavras que a gente diz com “b” ou “v”, à vontade — como essas duas.
Dona Benta continuava com os olhos nas estrelas. Súbito, Narizinho, que estava em outro degrau da escada fazendo tricô, deu um berro.
— Vovó, Emília está botando a língua para mim!
Mas Dona Benta não ouviu. Não tirava os olhos das estrelas. Estranhando aquilo, os meninos foram se aproximando. Ficaram também a olhar para o céu, em procura do que estava prendendo a atenção da boa velha.
— Que é, vovó, que a senhora está vendo lá em cima? Eu não estou enxergando nada — disse Pedrinho.
Dona Benta não pôde deixar de rir-se. Pôs nele os olhos, puxou-o para o seu colo e falou:
— Não está vendo nada, meu filho? Então olha para o céu estrelado e não vê nada?
— Só vejo estrelinhas — murmurou o menino.
— E acha pouco, meu filho? Você vê uma metade do universo e acha pouco? Pois saiba que os astrônomos passam a vida inteira estudando as maravilhas que há nesse céu em que você só vê estrelinhas. É que eles sabem e você não sabe. Eles sabem ler o que está escrito no céu — e você nem desconfia que haja um milhão de coisas escritas no céu...
— Desconfio sim, vovó, mas fico nisso. Sou muito bobinho ainda.
— Bobinho como todos os grandes astrônomos na sua idade, meu filho. Os maiores sábios do mundo foram bobinhos como você, quando crianças — mas ficaram sábios com a idade, o estudo e a meditação.
Narizinho interrompeu o tricô para perguntar:
— Fala-se muito em sábio aqui neste sítio, mas eu não sei, bem, bem, o que é. Conte, vovó — e retomou o tricô.
Dona Benta, quando tinha de dar uma explicação difícil, tomava um fôlego comprido, engolia em seco e às vezes até se assoprava resignadamente. Mas não falhava.
— Os sábios, menina, são os puxa-filas da humanidade. A humanidade é um rebanho imenso de carneiros tangidos pelos pastores, os quais metem a chibata nos que não andam como eles pastores querem e tosam-lhes a lã e tiram-lhes o leite, e os vão tocando para onde convém a eles pastores. E isso é assim por causa da extrema ignorância ou estupidez dos carneiros. Mas entre os carneiros às vezes aparecem alguns de mais inteligência, os quais aprendem mil coisas, adivinham outras, e depois ensinam à carneirada o que aprenderam — e desse modo vão botando um pouco de luz dentro da escuridão daquelas cabeças. São os sábios.
— E os pastores deixam, vovó, que esses sábios descarneirem a carneirada estúpida? — perguntou Pedrinho.
— Antigamente os pastores tudo faziam para manter a carneirada na doce paz da ignorância, e para isso perseguiam os sábios, matavam-nos, queimavam-nos em fogueiras — um horror, meu filho! Um dos maiores sábios do mundo foi Galileu, o inventor da luneta astronômica, graças à qual afirmou que a Terra girava em redor do Sol. Pois os pastores da época obrigaram esse carneiro sábio a engolir a sua ciência.
— Por que, vovó?
— Porque a eles pastores convinha que a Terra fosse fixa e centro do universo, com tudo girando em redor dela.
— Mas por que queriam isso?
— Para não serem desmentidos, meu filho. Como os pastores sempre haviam afirmado que era assim, se os carneiros descobrissem que não era assim, eles pastores ficariam desmoralizados.
— Ficariam com caras de grandes burros, que é o que eles são — berrou Emília indignada.
Dona Benta suspirou.
— Ah, meus filhos, eu até nem gosto de pensar no que os sábios têm sofrido pelos séculos afora... Aquela coitadinha da Hipácia, por exemplo...
— Quem era ela, vovó? — quis saber a menina.
— Hipácia foi uma sábia grega nascida em Alexandria no ano 370. Não só muito culta, como de grande beleza. O pai educou-a muito bem e depois mandou-a aperfeiçoar-se em Atenas, que era a Paris do mundo antigo. De volta a Alexandria, Hipácia abriu uma escola onde ensinava as grandes idéias de Sócrates e Platão. Tornou-se queridíssima do povo, sobre o qual derramava ondas de sabedoria. Pois sabe o que aconteceu com a coitada?
— Casou-se e... — ia dizendo a Emília, mas Narizinho tapou-lhe a boca. — Que foi, vovó?
— Mataram-na! Um grupo de capangas, instigados por um tal Bispo Grilo, atacou-a na rua, matou-a e esquartejou-a.
Os quatro coraçõezinhos ali presentes pulsaram de indignação. Dona Benta continuou:
— E a Sócrates, que foi um dos maiores iluminadores da ignorância dos carneiros, os pastores da época obrigaram-no a beber cicuta, um veneno horrível. E Giordano Bruno? Ah, este foi queimado vivo numa fogueira, no ano 1600 — sabem por quê? Porque era um verdadeiro sábio e estava iluminando demais a escuridão dos carneiros.
— Queimado vivo! — repetiu Narizinho com cara de horror. — Eu nem consigo imaginar o que isso possa ser. Outro dia queimei o dedo na chapa do fogão — e doeu tanto, tanto... Imagine-se agora uma fogueira queimando a gente inteira — a pele, os olhos, o nariz, as orelhas, as mãos, tudo, tudo... — e a menina tapou a cara como para não ver a cena.
Dona Benta deu um suspiro.
— Pois, minha filha, contam-se por centenas de milhares os mártires da fogueira, e quase sempre por isso: enxergar mais que os outros e ensinar aos ignorantes. Por felicidade minha, eu vivo neste nosso abençoado século; se eu vivesse na Idade Média, já estava assada numa boa fogueira — e também vocês, pelo crime de terem aprendido comigo muita coisa. Até Quindim ia para a fogueira como feiticeiro, se os pastores soubessem daquele passeio gramatical que ele fez com vocês.
— E o Burro Falante, vovó? — perguntou Pedrinho.
— Também ia para a fogueira, meu filho. O simples fato de o nosso bom burro falar, já seria considerado crime merecedor de uma dúzia de fogueiras.
— E eu? — indagou a boneca.
— Você tem dito tantas heresias, Emília, que eles a queimavam numa vela até ficar reduzida a carvão, e depois moíam esse carvão e o assopravam aos ventos, de medo que a poeirinha se juntasse e vivesse outra vez.
— E hoje, vovó? — quis saber Pedrinho. — Por que é que hoje não há mais fogueiras para os sábios?
— Porque apesar de todas as perseguições os sábios foram abrindo a cabeça dos carneiros, e os carneiros já não deixam que os pastores queimem os seus mestres de ciência. Mas mesmo assim volta e meia um sábio vai para o beleléu, destruído pelos pastores. Não os queimam vivos, é verdade, mas prendem-nos em cárceres e às vezes até os fuzilam. Ou então perseguem-nos de outras maneiras, tornando-lhes a vida difícil. Em todo caso, já melhoramos bastante, e a prova temos aqui em nós mesmos: estamos vivos!
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Continua … IV – O Céu da Noite
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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