Havia no mar certa ilha, cujos únicos habitantes eram um velho chamado Próspero e sua linda filha Miranda, a qual chegara ali tão pequenina que não se lembrava de ter visto outro rosto humano a não ser o de seu pai.
Moravam em uma caverna aberta na rocha, dividida em vários compartimentos, a um dos quais Próspero chamava de seu "gabinete". Ali, guardava seus livros, que tratavam principalmente de magia, arte muito em voga entre os eruditos da época. E tais conhecimentos lhe tinham sido de grande utilidade: ao arribar, por um estranho acaso, àquela ilha que fora encantada pela feiticeira Sycorax, morta pouco antes de sua chegada, Próspero logo libertara, graças às suas artes mágicas, uma legião de bons espíritos que a velha bruxa aprisionara no tronco de grandes árvores, por terem se recusado a executar suas perversas ordens. Esses amáveis espíritos ficaram desde então a serviço de Próspero. E Ariel era seu chefe.
Muito vivaz, Ariel não era de índole maldosa, mas se aprazia em atormentar um feio monstro chamado Calibã, a quem odiava por ser filho de sua inimiga Sycorax. Essa estranha e disforme criatura, com aspecto menos humano do que um macaco, fora encontrada no mato pelo velho Próspero. E este, que o levou para casa e lhe ensinou o uso da palavra, foi sempre muito bondoso para com seu protegido, mas a má natureza que Calibã herdara da mãe o impedia de aprender qualquer coisa de bom ou de útil. Aproveitavam-no, pois, como escravo, para carregar lenha e fazer os trabalhos mais pesados; e a Ariel cabia obrigá-lo a desempenhar seus deveres.
Quando Calibã se mostrava preguiçoso e negligenciava o trabalho, Ariel ( que só era visível aos olhos de Próspero ) aproximava-se pé ante pé e beliscava-o, ou o fazia cair de borco em algum banhado. Ou então, tomando a forma de um macaco, punha-se a lhe fazer caretas; depois, mudando subitamente, virava ouriço-cacheiro e metia-se no caminho de Calibã, que ficava a tremer, com medo de que os espinhos do animal lhe picassem os pés descalços. Com estas e outras picardias, Ariel martirizava Calibã toda vez que ele descurava das tarefas de que Próspero o incumbira.
Com tantos espíritos poderosos sujeitos à sua vontade, Próspero podia governar os ventos e as águas. Assim, por ordem sua, eles desencadearam urna tempestade violentíssima. Próspero então mostrou à filha um belo e grande navio, a lutar com as furiosas ondas que ameaçavam tragá-lo, e disse-lhe que estava cheio de seres vivos como eles.
– Ó meu querido pai, se, com tua arte, desencadeaste esta horrível tormenta, tem piedade daquelas pobres criaturas. Olha, o navio já vai fazer-se em pedaços. Coitados! Todos morrerão. Eu, se pudesse, faria a terra sorver o mar, antes que aquele belo navio se despedace, com todas as preciosas vidas que leva a bordo.
– Não te aflijas, Miranda. Eu ordenei que nenhuma pessoa sofresse o mínimo dano. O que eu fiz foi em teu benefício, minha querida filha. Tu ignoras quem sejas e de onde vieste. De mim, só sabes que sou teu pai e que vivo nesta pobre caverna. Acaso não te lembras de alguma coisa anterior de tua vida? Creio que não, pois ainda não tinhas três anos quando vieste para cá.
– Creio que me lembro, pai – replicou Miranda.
– Mas como? Só se for por intermédio de outra pessoa, em algum outro lugar...
– Bem me lembro... É como se fosse a recordação de um sonho. Não tive eu, uma vez, quatro ou cinco mulheres ao meu serviço?
– Tinhas até mais – respondeu Próspero. – Como isso te ficou na memória? E não te lembras de como vieste para cá?
– Não, pai. De nada mais me lembro.
– Há doze anos, Miranda – continuou Próspero – , eu era duque de Milão, e tu eras uma princesa e minha única herdeira. Eu tinha um irmão mais jovem, chamado Antônio, a quem confiava tudo. Como eu só gostasse do isolamento e do estudo, costumava deixar os negócios de Estado para teu tio, meu falso irmão ( que na verdade provou que o era) . Desprezando as coisas do mundo, enterrado entre os livros, eu dedicava meu tempo ao aperfeiçoamento do espírito. Meu irmão Antônio, vendo-se assim investido de meu poder, começou a considerar-se o próprio duque. O ensejo que eu lhe dava de se popularizar entre meus súditos despertou, em sua má índole, a orgulhosa ambição de despojar-me de meu ducado; o que ele não tardou a fazer, com a ajuda do rei de Nápoles, um poderoso príncipe inimigo meu.
– Mas por que eles não nos mataram então?
– Não se atreveram a tanto, minha filha, tal era o amor que o povo me dedicava. Antônio nos colocou a bordo de um navio e, quando nos achávamos algumas léguas ao largo, fez-nos tomar um pequeno bote, sem vela nem mastro. Ali nos abandonou, pensava ele, para morrermos. Mas um bom fidalgo de minha Corte, de nome Gonzalo, que muito me estimava, colocara no bote, às ocultas, água, provisões, aparelhagem e alguns dos livros que eu apreciava acima do meu ducado.
– Oh, meu pai! Quanto trabalho não devo te haver causado, então!
– Não, minha querida. Tu eras um pequenino anjo protetor. Teus inocentes sorrisos me davam forças para lutar contra os infortúnios. Nosso alimento durou até que abordamos nesta ilha deserta. Desde então, meu maior prazer tem sido educar-te, Miranda, e bem vejo que aproveitaste minhas lições.
– Que Deus te recompense, meu querido pai. Dize-me agora por que provocaste esta tempestade.
– Fica sabendo que esta tormenta há de trazer para cá meus inimigos, o rei de Nápoles e meu cruel irmão.
Dito isso, tocou delicadamente a filha com sua varinha mágica e ela tombou adormecida; Ariel acabava de se apresentar ante seu senhor, para descrever a tempestade e contar o que fora feito dos passageiros. Como os espíritos eram invisíveis para Miranda, não queria Próspero que ela o surpreendesse a conversar com o ar.
– E então, meu gentil espírito – disse Próspero a Ariel – , como desempenhaste tua tarefa?
Ariel fez-lhe uma viva descrição da tempestade e do terror reinante a bordo. O filho do rei, Ferdinando, fora o primeiro a se jogar ao mar; e seu pai julgara-o tragado pelas ondas, para todo o sempre.
– Mas ele está salvo – informou Ariel – , num recanto da ilha, sentado com os braços pendentes, a chorar a perda do rei, seu pai, a quem julga afogado. Nem um fio dos seus cabelos sofreu o mínimo que fosse, e suas vestes principescas, embora encharcadas d'água, parecem mais lindas do que antes.
– Reconheço nisto meu delicado Ariel – disse Próspero. – Traze-o para cá. Minha filha precisa ver esse jovem príncipe. Mas onde estão o rei e meu irmão?
– Deixei-os em busca de Ferdinando, o qual têm poucas esperanças de encontrar, pois supõem tê-Io visto sumir-se nas águas. Quanto à tripulação, nenhum homem se perdeu, embora cada um deles se julgue o único sobrevivente; o navio, invisível para todos, acha-se em segurança no porto.
– Ariel, executaste fielmente teu trabalho, mas ainda há mais o que fazer.
– Ainda mais trabalho? – estranhou Ariel. – Permita que vos lembre, senhor, que vós me prometestes a liberdade. Considerai que vos tenho servido dignamente, sem jamais resmungar, e que nunca vos enganei nem cometi enganos.
– Como !? Já não te lembras de que torturas te livrei? Já esqueceste a horrenda bruxa Sycorax, quase dobrada pelo meio, ao peso dos anos e da maldade? Onde nasceu ela? Fala, dize-me.
– Em Argel, senhor.
– Ah, lembraste, então? Creio que devo também recordar o que te aconteceu, pois me pareces muito esquecido. Essa feiticeira, com seus maléficos bruxedos, demasiado terríveis para a compreensão humana, foi expulsa de Argel e aqui abandonada pelos marinheiros; como tu eras um espírito muito delicado para executar suas ordens, ela te encerrou no tronco de uma árvore, onde te encontrei a soltar gemidos. Desse tormento, fui eu quem te livrou.
– Perdão, caro senhor – disse Ariel, envergonhado de parecer ingrato. – Eu obedecerei às vossas ordens.
– Obedece e serás livre.
Deu-lhe então as ordens necessárias. Ariel dirigiu-se primeiro ao lugar onde deixara Ferdinando e achou-o ainda sentado na relva, na mesma melancólica postura.
– Ó meu jovem cavalheiro – disse Ariel, ao avistá-lo – , não tardarei a levar-vos daqui. Tendes de ir à presença da menina Miranda, para que ela lance um .olhar à vossa linda pessoa. Vamos, senhor, acompanhai-me.
E Ariel pôs-se a cantar:
Essas estranhas novas do pai desaparecido despertaram o príncipe do torpor em que tombara. Seguiu, atônito, a voz de Ariel, e assim chegou à presença de Próspero e Miranda, que estavam sentados à sombra de uma grande árvore. Ora, Miranda nunca vira homem algum além de seu pai.
– Minha filha, dize-me o que estás a olhar.
– Oh, pai – disse Miranda, numa estranha surpresa – , decerto é um espírito. Como ele olha em volta! Que linda criatura, meu pai. Não é um espírito?
– Não, filha. Ele come, dorme e tem sentidos como nós. Esse jovem que vês se achava no navio. Está um tanto desfigurado pela dor, senão poderias chamá-lo de uma bela pessoa. Perdeu seus companheiros e anda à procura deles.
Miranda, que imaginava todos os homens com semblante grave e barba grisalha como o pai, ficou encantada com a aparência do jovem príncipe. E Ferdinando, vendo tão encantadora moça naquele local deserto e não esperando mais que maravilhas depois das estranhas vozes que ouvira, pensou que estava numa ilha encantada, da qual Miranda fosse a deusa, e como tal lhe falou.
Ela timidamente respondeu que não era deusa, mas uma simples moça; ia dar outras informações acerca de si mesma, quando Próspero a interrompeu. Estava satisfeito de que os jovens se admirassem mutuamente, pois logo percebeu que se tratava de um caso de amor à primeira vista. Mas, para experimentar a constância de Ferdinando, resolveu opor-lhe alguns obstáculos. Avançou para o príncipe com ar severo, acusando-o de haver chegado à ilha como espião, para dela se apossar.
– Segue-me. Vou amarrar-te o pescoço aos pés. Beberás água do mar e terás por alimento mariscos, raÍzes secas e bolotas de carvalho.
– Não. Resistirei a tal tratamento até encontrar inimigo mais forte. – Ferdinando puxou da espada, mas Próspero, agitando a varinha mágica, fixou-o no lugar onde ele estava, impossibilitando-o de se mover.
Miranda agarrou-se ao pai, dizendo-Ihe:
– Por que és tão cruel? Tem piedade, pai; eu garanto por ele. Este é o segundo homem que vejo, e a mim parece digno de confiança.
– Silêncio! Nenhuma palavra mais, menina! Com que então, advogada de um impostor! Pensas que não há homens mais bonitos, pois só viste a este e a Calibã. Pois eu te digo que a maioria dos homens é tão superior a este, quanto este é melhor que Calibã.
– Minhas ambições são mais humildes. Não desejo conhecer nenhum homem mais bonito.
– Vamos – disse Próspero ao príncipe. – Não tens poder para me desobedecer.
– De fato não o tenho – respondeu Ferdinando. Sem saber que era por magia que se achava privado de todo poder de resistência, sentia-se atônito de se ver tão estranhamente compelido a seguir Próspero. Voltou-se para olhar Miranda enquanto podia avistá-Ia. E dizia consigo, ao penetrar depois de Próspero na caverna:
– Minhas forças estão amarradas, como num pesadelo. Mas leves me seriam as ameaças desse homem e a fraqueza que sinto, se, de minha prisão, eu pudesse, uma vez por dia, contemplar aquela linda moça.
Próspero não deteve Ferdinando por muito tempo na caverna. Logo o levou para fora e encarregou-o de um árduo serviço, tendo o cuidado de informar a Miranda o pesado trabalho que impusera ao príncipe. Depois, fingindo ir para o gabinete, ficou secretamente a espreitá-Ios.
Próspero mandara Ferdinando empilhar algumas pesadas achas de lenha. Como filhos de reis não são muito afeitos a tais misteres, Miranda logo foi achar seu enamorado quase morto de fadiga.
– Ai! Não trabalhe tanto. Meu pai está entretido com seus estudos e não aparecerá antes de três horas. Por que não descansa um pouco?
– Ah, senhora, não me atrevo. Preciso terminar meu trabalho antes de repousar.
– Senta-te, que eu carregarei as achas.
Mas Ferdinando consentiu. E, em vez de ajudá-lo, Miranda acabou estorvando-o, pois iniciaram uma longa conversa, de modo que o trabalho ia muito devagar.
Próspero, que encarregara Ferdinando daquele trabalho apenas para testar seu amor, não estava com os livros, como supunha a filha, mas achava-se invisível perto deles, ouvindo o que diziam.
Ferdinando perguntou o nome dela. Miranda disse, acrescentando que o fazia contra ordens expressas do pai.
Próspero limitou-se a sorrir a essa primeira desobediência da filha. Tendo feito, com suas artes mágicas, que ela se apaixonasse tão subitamente, não se zangava por esta revelar seu amor à custa da obediência. E escutou de boa sombra uma longa tirada de Ferdinando, em que este dizia amá-Ia acima de todas as damas que conhecera.
Em resposta aos louvores à sua beleza, que ele dizia exceder à de todas as mulheres do mundo, ela replicou:
– Não me lembro do rosto de nenhuma mulher, nem nunca vi outros homens além do senhor, meu bom amigo, e do meu querido pai. Como são os outros, por este mundo afora, eu não o sei. Mas, acredite-me, não desejo nenhum companheiro no mundo que não seja o senhor, nem pode minha imaginação conceber outras feições diversas das suas, de que eu pudesse gostar. Mas temo estar a lhe falar muito livremente, esquecendo os preceitos de meu pai.
A isso, Próspero sorriu e sacudiu a cabeça, como se dissesse: – Vai tudo exatamente como eu desejava; minha filha será rainha de Nápoles.
Depois Ferdinando, em outro lindo e comprido discurso (pois os jovens príncipes apreciam belas frases), disse à inocente Miranda que era herdeiro da coroa de Nápoles e que ela seria sua rainha.
– Ah, senhor! Tola sou eu em chorar pelo que me faz feliz. Eu lhe responderei com toda a pureza de alma: serei sua esposa, se comigo quiser casar-se.
Próspero, então, apareceu visível diante deles.
– Nada temas, minha filha. Ouvi e aprovo tudo o que disseste. Quanto a ti, Ferdinando, se te tratei com excessivo rigor, quero oferecer-te generosa compensação, cedendo-te a mão de minha filha. Todos os vexames por que passaste eram apenas para experimentar teu amor, e tudo suportaste nobremente. Como merecido prêmio ateu verdadeiro amor, toma pois minha filha e não sorrias de eu me vangloriar de ela estar acima de qualquer elogio.
Depois, alegando haver coisas que reclamavam sua presença, Próspero lhes disse que sentassem e conversassem até seu regresso. Quanto a essa ordem, Miranda não parecia nada disposta a desobedecer.
Após deixá-los, Próspero chamou Ariel, que logo apareceu, ansioso por contar o que fizera com o irmão de seu senhor e com o rei de Nápoles. Disse que os deixara quase doidos de terror, pelas coisas que lhes fizera ver e ouvir. Quando já estavam os dois cansados de vaguear e loucos de fome, ele fizera surgir à sua frente um delicioso banquete. Depois, quando já se preparavam para comer, aparecera-lhes sob a forma de uma harpia, voraz monstro alado, e o festim sumira. Para aterrá-los ainda mais, a harpia lhes falou, recordando a crueldade do banimento de Próspero do ducado e da desumanidade de deixar que ele e a filha perecessem no mar; e afiançou que, por isso, sofriam eles agora tantos horrores.
O rei de Nápoles e o dissimulado Antônio arrependeram-se da injustiça que tinham feito a Próspero. E Ariel garantiu ao amo que estava certo da sinceridade de ambos e que, embora fosse um espírito, não podia deixar de lastimá-Ios.
– Então, traze-os cá, Ariel. Se tu, que és apenas um espírito, sentes as suas desditas, como não vou eu, que sou um ser humano como eles, compadecer-me de tanto sofrimento? Traze-os depressa, meu gentil Ariel.
Ariel não tardou em voltar com o rei, Antônio e o velho Gonzalo, que os tinha seguido, maravilhados com a música selvagem que ele tocava nos ares para os arrastar à I presença do amo. Esse Gonzalo era o mesmo que tão bondosamente fornecera mantimentos e livros a Próspero, quando o perverso irmão o abandonara em alto-mar, entregue à morte.
De tal modo a mágoa e o terror lhes haviam embotado os sentidos que eles não reconheceram Próspero. Este primeiro se deu a conhecer ao bom Gonzalo, chamando-o de seu salvador; só assim, seu irmão e o rei souberam de quem se tratava.
Antônio, com lágrimas e tristes palavras de pesar e verdadeiro arrependimento, implorou o perdão de Próspero, e o rei expressou seu sincero remorso por ter auxiliado Antônio a depor o irmão. Próspero perdoou-lhes. E, tendo ambos se comprometido a lhe restituir o ducado, disse ele ao rei Nápoles:
– Tenho uma surpresa para vós.
Abrindo uma porta, mostrou-lhe Ferdinando a jogar xadrez com Miranda.
Nada podia exceder a alegria do pai e do filho ante esse encontro inesperado, pois cada um julgava o outro afogado.
– Oh, maravilha! – disse Miranda. – Que nobres criaturas! Que mundo admirável deve ser o que contém pessoas como essas.
O rei de Nápoles ficou tão espantado ante a beleza e a graça de Miranda quanto ficara anteriormente seu filho.
– Quem é? – perguntou ele. – Deve ser a deusa que nos separou e, de novo, nos juntou.
– Não, senhor – respondeu Ferdinando, sorrindo ao constatar que o pai incorrera no mesmo engano que ele, ao ver Miranda. – Ela é uma mortal. E, pela imortal Providência, é minha. Escolhi-a quando não podia pedir teu consentimento, pois não te supunha vivo. Ela é filha de Próspero, o famoso duque de Milão, de que tanto ouvi falar, mas nunca tinha visto. Dele recebi nova vida: tornou-se para mim um novo pai, ao conceder-me esta linda moça.
– Então, serei pai dela – disse o rei. – Mas que coisa estranha ter de pedir perdão à minha filha!
– Basta – disse Próspero. – Não relembremos os males passados, já que tiveram tão venturoso fim.
E Próspero abraçou o irmão, assegurando-lhe novamente que o perdoava; disse que uma sábia Providência fizera com que ele fosse banido de seu pobre ducado de Milão, para que a filha herdasse a coroa de Nápoles, pois acontecera de o filho do rei ter-se enamorado de Miranda naquela ilha deserta.
Essas bondosas palavras, ditas na intenção de consolar Antônio, encheram-no de tal vergonha e remorso que ele rompeu em pranto, incapaz de dizer qualquer coisa. O velho Gonzalo chorava ao ver a feliz reconciliação e pedia a bênção de Deus para o jovem par.
Próspero comunicou então que o navio estava a salvo no porto, com os marinheiros a bordo, e que ele e a filha partiriam com todos na manhã seguinte.
– Enquanto isso – acrescentou ele – , venham receber a guarida que minha pobre caverna pode oferecer, e passarei o serão a distraí-Ios com a história da minha vida, desde que cheguei a esta ilha deserta.
Chamou então Calibã, para preparar algum alimento e pôr a caverna em ordem. E todos se espantaram com a forma extravagante e selvagem daquele feio monstro, que, segundo Próspero, era o único criado a seu serviço.
Antes de deixar a ilha, Próspero liberou Ariel, para grande alegria do travesso e pequenino gênio, que, embora fosse um fiel servidor do seu amo, estava sempre a suspirar pela liberdade, a fim de poder vagar pelos ares, como um pássaro selvagem, sob as árvores verdes, entre as belas frutas e as cheirosas flores.
– Meu querido Ariel – disse Próspero ao libertá-Io – , sentirei tua falta. Contudo, terás a prometida liberdade.
– Obrigado, meu amo. Mas deixai-me acompanhar vosso navio ao porto, para garantir ventos favoráveis. Depois, meu senhor, quando eu for livre, que alegre vida hei de levar!
E então Ariel cantou esta linda canção:
Próspero abriu uma profunda cova e nela enterrou seus livros de magia e a vara de condão, pois resolvera nunca mais utilizar as artes mágicas. Tendo vencido seus inimigos efeito as pazes com o irmão e o rei de Nápoles, nada agora faltava para completar sua felicidade, senão rever a terra natal e assistir às núpcias da filha com o príncipe Ferdinando, que seriam celebradas com a maior pompa, logo que chegassem ao seu destino. E, após uma agradável viagem, graças à proteção de Ariel, não tardaram todos em aportar a Nápoles.
Fonte:
Charles & Mary Lamb. Contos de Shakespeare. Tradução de Mario Quintana.
Moravam em uma caverna aberta na rocha, dividida em vários compartimentos, a um dos quais Próspero chamava de seu "gabinete". Ali, guardava seus livros, que tratavam principalmente de magia, arte muito em voga entre os eruditos da época. E tais conhecimentos lhe tinham sido de grande utilidade: ao arribar, por um estranho acaso, àquela ilha que fora encantada pela feiticeira Sycorax, morta pouco antes de sua chegada, Próspero logo libertara, graças às suas artes mágicas, uma legião de bons espíritos que a velha bruxa aprisionara no tronco de grandes árvores, por terem se recusado a executar suas perversas ordens. Esses amáveis espíritos ficaram desde então a serviço de Próspero. E Ariel era seu chefe.
Muito vivaz, Ariel não era de índole maldosa, mas se aprazia em atormentar um feio monstro chamado Calibã, a quem odiava por ser filho de sua inimiga Sycorax. Essa estranha e disforme criatura, com aspecto menos humano do que um macaco, fora encontrada no mato pelo velho Próspero. E este, que o levou para casa e lhe ensinou o uso da palavra, foi sempre muito bondoso para com seu protegido, mas a má natureza que Calibã herdara da mãe o impedia de aprender qualquer coisa de bom ou de útil. Aproveitavam-no, pois, como escravo, para carregar lenha e fazer os trabalhos mais pesados; e a Ariel cabia obrigá-lo a desempenhar seus deveres.
Quando Calibã se mostrava preguiçoso e negligenciava o trabalho, Ariel ( que só era visível aos olhos de Próspero ) aproximava-se pé ante pé e beliscava-o, ou o fazia cair de borco em algum banhado. Ou então, tomando a forma de um macaco, punha-se a lhe fazer caretas; depois, mudando subitamente, virava ouriço-cacheiro e metia-se no caminho de Calibã, que ficava a tremer, com medo de que os espinhos do animal lhe picassem os pés descalços. Com estas e outras picardias, Ariel martirizava Calibã toda vez que ele descurava das tarefas de que Próspero o incumbira.
Com tantos espíritos poderosos sujeitos à sua vontade, Próspero podia governar os ventos e as águas. Assim, por ordem sua, eles desencadearam urna tempestade violentíssima. Próspero então mostrou à filha um belo e grande navio, a lutar com as furiosas ondas que ameaçavam tragá-lo, e disse-lhe que estava cheio de seres vivos como eles.
– Ó meu querido pai, se, com tua arte, desencadeaste esta horrível tormenta, tem piedade daquelas pobres criaturas. Olha, o navio já vai fazer-se em pedaços. Coitados! Todos morrerão. Eu, se pudesse, faria a terra sorver o mar, antes que aquele belo navio se despedace, com todas as preciosas vidas que leva a bordo.
– Não te aflijas, Miranda. Eu ordenei que nenhuma pessoa sofresse o mínimo dano. O que eu fiz foi em teu benefício, minha querida filha. Tu ignoras quem sejas e de onde vieste. De mim, só sabes que sou teu pai e que vivo nesta pobre caverna. Acaso não te lembras de alguma coisa anterior de tua vida? Creio que não, pois ainda não tinhas três anos quando vieste para cá.
– Creio que me lembro, pai – replicou Miranda.
– Mas como? Só se for por intermédio de outra pessoa, em algum outro lugar...
– Bem me lembro... É como se fosse a recordação de um sonho. Não tive eu, uma vez, quatro ou cinco mulheres ao meu serviço?
– Tinhas até mais – respondeu Próspero. – Como isso te ficou na memória? E não te lembras de como vieste para cá?
– Não, pai. De nada mais me lembro.
– Há doze anos, Miranda – continuou Próspero – , eu era duque de Milão, e tu eras uma princesa e minha única herdeira. Eu tinha um irmão mais jovem, chamado Antônio, a quem confiava tudo. Como eu só gostasse do isolamento e do estudo, costumava deixar os negócios de Estado para teu tio, meu falso irmão ( que na verdade provou que o era) . Desprezando as coisas do mundo, enterrado entre os livros, eu dedicava meu tempo ao aperfeiçoamento do espírito. Meu irmão Antônio, vendo-se assim investido de meu poder, começou a considerar-se o próprio duque. O ensejo que eu lhe dava de se popularizar entre meus súditos despertou, em sua má índole, a orgulhosa ambição de despojar-me de meu ducado; o que ele não tardou a fazer, com a ajuda do rei de Nápoles, um poderoso príncipe inimigo meu.
– Mas por que eles não nos mataram então?
– Não se atreveram a tanto, minha filha, tal era o amor que o povo me dedicava. Antônio nos colocou a bordo de um navio e, quando nos achávamos algumas léguas ao largo, fez-nos tomar um pequeno bote, sem vela nem mastro. Ali nos abandonou, pensava ele, para morrermos. Mas um bom fidalgo de minha Corte, de nome Gonzalo, que muito me estimava, colocara no bote, às ocultas, água, provisões, aparelhagem e alguns dos livros que eu apreciava acima do meu ducado.
– Oh, meu pai! Quanto trabalho não devo te haver causado, então!
– Não, minha querida. Tu eras um pequenino anjo protetor. Teus inocentes sorrisos me davam forças para lutar contra os infortúnios. Nosso alimento durou até que abordamos nesta ilha deserta. Desde então, meu maior prazer tem sido educar-te, Miranda, e bem vejo que aproveitaste minhas lições.
– Que Deus te recompense, meu querido pai. Dize-me agora por que provocaste esta tempestade.
– Fica sabendo que esta tormenta há de trazer para cá meus inimigos, o rei de Nápoles e meu cruel irmão.
Dito isso, tocou delicadamente a filha com sua varinha mágica e ela tombou adormecida; Ariel acabava de se apresentar ante seu senhor, para descrever a tempestade e contar o que fora feito dos passageiros. Como os espíritos eram invisíveis para Miranda, não queria Próspero que ela o surpreendesse a conversar com o ar.
– E então, meu gentil espírito – disse Próspero a Ariel – , como desempenhaste tua tarefa?
Ariel fez-lhe uma viva descrição da tempestade e do terror reinante a bordo. O filho do rei, Ferdinando, fora o primeiro a se jogar ao mar; e seu pai julgara-o tragado pelas ondas, para todo o sempre.
– Mas ele está salvo – informou Ariel – , num recanto da ilha, sentado com os braços pendentes, a chorar a perda do rei, seu pai, a quem julga afogado. Nem um fio dos seus cabelos sofreu o mínimo que fosse, e suas vestes principescas, embora encharcadas d'água, parecem mais lindas do que antes.
– Reconheço nisto meu delicado Ariel – disse Próspero. – Traze-o para cá. Minha filha precisa ver esse jovem príncipe. Mas onde estão o rei e meu irmão?
– Deixei-os em busca de Ferdinando, o qual têm poucas esperanças de encontrar, pois supõem tê-Io visto sumir-se nas águas. Quanto à tripulação, nenhum homem se perdeu, embora cada um deles se julgue o único sobrevivente; o navio, invisível para todos, acha-se em segurança no porto.
– Ariel, executaste fielmente teu trabalho, mas ainda há mais o que fazer.
– Ainda mais trabalho? – estranhou Ariel. – Permita que vos lembre, senhor, que vós me prometestes a liberdade. Considerai que vos tenho servido dignamente, sem jamais resmungar, e que nunca vos enganei nem cometi enganos.
– Como !? Já não te lembras de que torturas te livrei? Já esqueceste a horrenda bruxa Sycorax, quase dobrada pelo meio, ao peso dos anos e da maldade? Onde nasceu ela? Fala, dize-me.
– Em Argel, senhor.
– Ah, lembraste, então? Creio que devo também recordar o que te aconteceu, pois me pareces muito esquecido. Essa feiticeira, com seus maléficos bruxedos, demasiado terríveis para a compreensão humana, foi expulsa de Argel e aqui abandonada pelos marinheiros; como tu eras um espírito muito delicado para executar suas ordens, ela te encerrou no tronco de uma árvore, onde te encontrei a soltar gemidos. Desse tormento, fui eu quem te livrou.
– Perdão, caro senhor – disse Ariel, envergonhado de parecer ingrato. – Eu obedecerei às vossas ordens.
– Obedece e serás livre.
Deu-lhe então as ordens necessárias. Ariel dirigiu-se primeiro ao lugar onde deixara Ferdinando e achou-o ainda sentado na relva, na mesma melancólica postura.
– Ó meu jovem cavalheiro – disse Ariel, ao avistá-lo – , não tardarei a levar-vos daqui. Tendes de ir à presença da menina Miranda, para que ela lance um .olhar à vossa linda pessoa. Vamos, senhor, acompanhai-me.
E Ariel pôs-se a cantar:
Lá está teu pai dormindo
No mais profundo dos leitos:
Seus ossos feitos coral,
Seus olhos pérolas feitos.
E do seu corpo mortal
Nada, nada se fanou,
Que em lindas e estranhas coisas
Logo o mar o transformou.
Nas tíbias dele, as sereias
Agora estão a tocar:
Escuta os límpidos sons
Que vêm do fundo do mar
No mais profundo dos leitos:
Seus ossos feitos coral,
Seus olhos pérolas feitos.
E do seu corpo mortal
Nada, nada se fanou,
Que em lindas e estranhas coisas
Logo o mar o transformou.
Nas tíbias dele, as sereias
Agora estão a tocar:
Escuta os límpidos sons
Que vêm do fundo do mar
Essas estranhas novas do pai desaparecido despertaram o príncipe do torpor em que tombara. Seguiu, atônito, a voz de Ariel, e assim chegou à presença de Próspero e Miranda, que estavam sentados à sombra de uma grande árvore. Ora, Miranda nunca vira homem algum além de seu pai.
– Minha filha, dize-me o que estás a olhar.
– Oh, pai – disse Miranda, numa estranha surpresa – , decerto é um espírito. Como ele olha em volta! Que linda criatura, meu pai. Não é um espírito?
– Não, filha. Ele come, dorme e tem sentidos como nós. Esse jovem que vês se achava no navio. Está um tanto desfigurado pela dor, senão poderias chamá-lo de uma bela pessoa. Perdeu seus companheiros e anda à procura deles.
Miranda, que imaginava todos os homens com semblante grave e barba grisalha como o pai, ficou encantada com a aparência do jovem príncipe. E Ferdinando, vendo tão encantadora moça naquele local deserto e não esperando mais que maravilhas depois das estranhas vozes que ouvira, pensou que estava numa ilha encantada, da qual Miranda fosse a deusa, e como tal lhe falou.
Ela timidamente respondeu que não era deusa, mas uma simples moça; ia dar outras informações acerca de si mesma, quando Próspero a interrompeu. Estava satisfeito de que os jovens se admirassem mutuamente, pois logo percebeu que se tratava de um caso de amor à primeira vista. Mas, para experimentar a constância de Ferdinando, resolveu opor-lhe alguns obstáculos. Avançou para o príncipe com ar severo, acusando-o de haver chegado à ilha como espião, para dela se apossar.
– Segue-me. Vou amarrar-te o pescoço aos pés. Beberás água do mar e terás por alimento mariscos, raÍzes secas e bolotas de carvalho.
– Não. Resistirei a tal tratamento até encontrar inimigo mais forte. – Ferdinando puxou da espada, mas Próspero, agitando a varinha mágica, fixou-o no lugar onde ele estava, impossibilitando-o de se mover.
Miranda agarrou-se ao pai, dizendo-Ihe:
– Por que és tão cruel? Tem piedade, pai; eu garanto por ele. Este é o segundo homem que vejo, e a mim parece digno de confiança.
– Silêncio! Nenhuma palavra mais, menina! Com que então, advogada de um impostor! Pensas que não há homens mais bonitos, pois só viste a este e a Calibã. Pois eu te digo que a maioria dos homens é tão superior a este, quanto este é melhor que Calibã.
– Minhas ambições são mais humildes. Não desejo conhecer nenhum homem mais bonito.
– Vamos – disse Próspero ao príncipe. – Não tens poder para me desobedecer.
– De fato não o tenho – respondeu Ferdinando. Sem saber que era por magia que se achava privado de todo poder de resistência, sentia-se atônito de se ver tão estranhamente compelido a seguir Próspero. Voltou-se para olhar Miranda enquanto podia avistá-Ia. E dizia consigo, ao penetrar depois de Próspero na caverna:
– Minhas forças estão amarradas, como num pesadelo. Mas leves me seriam as ameaças desse homem e a fraqueza que sinto, se, de minha prisão, eu pudesse, uma vez por dia, contemplar aquela linda moça.
Próspero não deteve Ferdinando por muito tempo na caverna. Logo o levou para fora e encarregou-o de um árduo serviço, tendo o cuidado de informar a Miranda o pesado trabalho que impusera ao príncipe. Depois, fingindo ir para o gabinete, ficou secretamente a espreitá-Ios.
Próspero mandara Ferdinando empilhar algumas pesadas achas de lenha. Como filhos de reis não são muito afeitos a tais misteres, Miranda logo foi achar seu enamorado quase morto de fadiga.
– Ai! Não trabalhe tanto. Meu pai está entretido com seus estudos e não aparecerá antes de três horas. Por que não descansa um pouco?
– Ah, senhora, não me atrevo. Preciso terminar meu trabalho antes de repousar.
– Senta-te, que eu carregarei as achas.
Mas Ferdinando consentiu. E, em vez de ajudá-lo, Miranda acabou estorvando-o, pois iniciaram uma longa conversa, de modo que o trabalho ia muito devagar.
Próspero, que encarregara Ferdinando daquele trabalho apenas para testar seu amor, não estava com os livros, como supunha a filha, mas achava-se invisível perto deles, ouvindo o que diziam.
Ferdinando perguntou o nome dela. Miranda disse, acrescentando que o fazia contra ordens expressas do pai.
Próspero limitou-se a sorrir a essa primeira desobediência da filha. Tendo feito, com suas artes mágicas, que ela se apaixonasse tão subitamente, não se zangava por esta revelar seu amor à custa da obediência. E escutou de boa sombra uma longa tirada de Ferdinando, em que este dizia amá-Ia acima de todas as damas que conhecera.
Em resposta aos louvores à sua beleza, que ele dizia exceder à de todas as mulheres do mundo, ela replicou:
– Não me lembro do rosto de nenhuma mulher, nem nunca vi outros homens além do senhor, meu bom amigo, e do meu querido pai. Como são os outros, por este mundo afora, eu não o sei. Mas, acredite-me, não desejo nenhum companheiro no mundo que não seja o senhor, nem pode minha imaginação conceber outras feições diversas das suas, de que eu pudesse gostar. Mas temo estar a lhe falar muito livremente, esquecendo os preceitos de meu pai.
A isso, Próspero sorriu e sacudiu a cabeça, como se dissesse: – Vai tudo exatamente como eu desejava; minha filha será rainha de Nápoles.
Depois Ferdinando, em outro lindo e comprido discurso (pois os jovens príncipes apreciam belas frases), disse à inocente Miranda que era herdeiro da coroa de Nápoles e que ela seria sua rainha.
– Ah, senhor! Tola sou eu em chorar pelo que me faz feliz. Eu lhe responderei com toda a pureza de alma: serei sua esposa, se comigo quiser casar-se.
Próspero, então, apareceu visível diante deles.
– Nada temas, minha filha. Ouvi e aprovo tudo o que disseste. Quanto a ti, Ferdinando, se te tratei com excessivo rigor, quero oferecer-te generosa compensação, cedendo-te a mão de minha filha. Todos os vexames por que passaste eram apenas para experimentar teu amor, e tudo suportaste nobremente. Como merecido prêmio ateu verdadeiro amor, toma pois minha filha e não sorrias de eu me vangloriar de ela estar acima de qualquer elogio.
Depois, alegando haver coisas que reclamavam sua presença, Próspero lhes disse que sentassem e conversassem até seu regresso. Quanto a essa ordem, Miranda não parecia nada disposta a desobedecer.
Após deixá-los, Próspero chamou Ariel, que logo apareceu, ansioso por contar o que fizera com o irmão de seu senhor e com o rei de Nápoles. Disse que os deixara quase doidos de terror, pelas coisas que lhes fizera ver e ouvir. Quando já estavam os dois cansados de vaguear e loucos de fome, ele fizera surgir à sua frente um delicioso banquete. Depois, quando já se preparavam para comer, aparecera-lhes sob a forma de uma harpia, voraz monstro alado, e o festim sumira. Para aterrá-los ainda mais, a harpia lhes falou, recordando a crueldade do banimento de Próspero do ducado e da desumanidade de deixar que ele e a filha perecessem no mar; e afiançou que, por isso, sofriam eles agora tantos horrores.
O rei de Nápoles e o dissimulado Antônio arrependeram-se da injustiça que tinham feito a Próspero. E Ariel garantiu ao amo que estava certo da sinceridade de ambos e que, embora fosse um espírito, não podia deixar de lastimá-Ios.
– Então, traze-os cá, Ariel. Se tu, que és apenas um espírito, sentes as suas desditas, como não vou eu, que sou um ser humano como eles, compadecer-me de tanto sofrimento? Traze-os depressa, meu gentil Ariel.
Ariel não tardou em voltar com o rei, Antônio e o velho Gonzalo, que os tinha seguido, maravilhados com a música selvagem que ele tocava nos ares para os arrastar à I presença do amo. Esse Gonzalo era o mesmo que tão bondosamente fornecera mantimentos e livros a Próspero, quando o perverso irmão o abandonara em alto-mar, entregue à morte.
De tal modo a mágoa e o terror lhes haviam embotado os sentidos que eles não reconheceram Próspero. Este primeiro se deu a conhecer ao bom Gonzalo, chamando-o de seu salvador; só assim, seu irmão e o rei souberam de quem se tratava.
Antônio, com lágrimas e tristes palavras de pesar e verdadeiro arrependimento, implorou o perdão de Próspero, e o rei expressou seu sincero remorso por ter auxiliado Antônio a depor o irmão. Próspero perdoou-lhes. E, tendo ambos se comprometido a lhe restituir o ducado, disse ele ao rei Nápoles:
– Tenho uma surpresa para vós.
Abrindo uma porta, mostrou-lhe Ferdinando a jogar xadrez com Miranda.
Nada podia exceder a alegria do pai e do filho ante esse encontro inesperado, pois cada um julgava o outro afogado.
– Oh, maravilha! – disse Miranda. – Que nobres criaturas! Que mundo admirável deve ser o que contém pessoas como essas.
O rei de Nápoles ficou tão espantado ante a beleza e a graça de Miranda quanto ficara anteriormente seu filho.
– Quem é? – perguntou ele. – Deve ser a deusa que nos separou e, de novo, nos juntou.
– Não, senhor – respondeu Ferdinando, sorrindo ao constatar que o pai incorrera no mesmo engano que ele, ao ver Miranda. – Ela é uma mortal. E, pela imortal Providência, é minha. Escolhi-a quando não podia pedir teu consentimento, pois não te supunha vivo. Ela é filha de Próspero, o famoso duque de Milão, de que tanto ouvi falar, mas nunca tinha visto. Dele recebi nova vida: tornou-se para mim um novo pai, ao conceder-me esta linda moça.
– Então, serei pai dela – disse o rei. – Mas que coisa estranha ter de pedir perdão à minha filha!
– Basta – disse Próspero. – Não relembremos os males passados, já que tiveram tão venturoso fim.
E Próspero abraçou o irmão, assegurando-lhe novamente que o perdoava; disse que uma sábia Providência fizera com que ele fosse banido de seu pobre ducado de Milão, para que a filha herdasse a coroa de Nápoles, pois acontecera de o filho do rei ter-se enamorado de Miranda naquela ilha deserta.
Essas bondosas palavras, ditas na intenção de consolar Antônio, encheram-no de tal vergonha e remorso que ele rompeu em pranto, incapaz de dizer qualquer coisa. O velho Gonzalo chorava ao ver a feliz reconciliação e pedia a bênção de Deus para o jovem par.
Próspero comunicou então que o navio estava a salvo no porto, com os marinheiros a bordo, e que ele e a filha partiriam com todos na manhã seguinte.
– Enquanto isso – acrescentou ele – , venham receber a guarida que minha pobre caverna pode oferecer, e passarei o serão a distraí-Ios com a história da minha vida, desde que cheguei a esta ilha deserta.
Chamou então Calibã, para preparar algum alimento e pôr a caverna em ordem. E todos se espantaram com a forma extravagante e selvagem daquele feio monstro, que, segundo Próspero, era o único criado a seu serviço.
Antes de deixar a ilha, Próspero liberou Ariel, para grande alegria do travesso e pequenino gênio, que, embora fosse um fiel servidor do seu amo, estava sempre a suspirar pela liberdade, a fim de poder vagar pelos ares, como um pássaro selvagem, sob as árvores verdes, entre as belas frutas e as cheirosas flores.
– Meu querido Ariel – disse Próspero ao libertá-Io – , sentirei tua falta. Contudo, terás a prometida liberdade.
– Obrigado, meu amo. Mas deixai-me acompanhar vosso navio ao porto, para garantir ventos favoráveis. Depois, meu senhor, quando eu for livre, que alegre vida hei de levar!
E então Ariel cantou esta linda canção:
As flores que a abelha suga
Essas flores sugo eu.
E numa corola durmo
O sono que Deus me deu.
Ai! quando pia a coruja
É ali que busco sossego,
A menos que voando fuja
Sobre as costas de um morcego.
Alegria! Oh Alegria!
Adeus, adeus, dissabores!
Irei viver todo o dia
Por entre os ramos e as flores.
Essas flores sugo eu.
E numa corola durmo
O sono que Deus me deu.
Ai! quando pia a coruja
É ali que busco sossego,
A menos que voando fuja
Sobre as costas de um morcego.
Alegria! Oh Alegria!
Adeus, adeus, dissabores!
Irei viver todo o dia
Por entre os ramos e as flores.
Próspero abriu uma profunda cova e nela enterrou seus livros de magia e a vara de condão, pois resolvera nunca mais utilizar as artes mágicas. Tendo vencido seus inimigos efeito as pazes com o irmão e o rei de Nápoles, nada agora faltava para completar sua felicidade, senão rever a terra natal e assistir às núpcias da filha com o príncipe Ferdinando, que seriam celebradas com a maior pompa, logo que chegassem ao seu destino. E, após uma agradável viagem, graças à proteção de Ariel, não tardaram todos em aportar a Nápoles.
Fonte:
Charles & Mary Lamb. Contos de Shakespeare. Tradução de Mario Quintana.
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