— Quem é você, criaturinha? — perguntou São Jorge parando diante dela.
— Eu sou a Emília, antiga Marquesa de Rabicó, sua criada — respondeu a boneca, muito lampeira e lambeta.
O santo ficou na mesma. E ainda estava na mesma, sem compreender coisa nenhuma, quando viu aparecerem Pedrinho e Narizinho com Tia Nastácia atrás, de mãos postas, rezando atropeladamente quantas orações sabia.
— Como conseguiram chegar até aqui? — perguntou ele. Isto me parece a maravilha das maravilhas.
— Foi o pó de pirlimpimpim que nos trouxe — respondeu Pedrinho — e dessa vez São Jorge ficou na mesmíssima.
— Não conheço semelhante droga — disse ele — mas deve ser das mais enérgicas, porque a distância da Terra à Lua é de 64.000 léguas — um bom pedaço!
Pedrinho riu-se e respondeu numa gíria que o santo não podia entender:
— Para o nosso pó essa distância é a canja das canjas. Num pisco devoramos essas 64.000 léguas como se fossem uns biscoitinhos de polvilho dos que derretem na boca.
O santo admirou-se da maravilha e disse:
— Estimo muito, mas saiba que inúmeros homens têm tentado vir à Lua e bem poucos o conseguiram. O último veio dentro duma bala de canhão, num tiro mal calculado. A bala passou por cima da Lua e ficou rodando em redor dela. Não sei quem foi esse maluco.
— Eu sei! — gritou Pedrinho. — Foi um personagem de Júlio Verne, no romance Da Terra à Lua. Vovó já nos leu isso.
São Jorge estava ali desde o reinado do Imperador Diocleciano sem outra companhia a não ser o dragão, de modo que ficava muito alegre quando alguém aparecia por lá. Mas como era raro! Um dos “lueiros” mais interessantes foi um tal Cyrano de Bergerac, que por lá andou e escreveu a respeito uma obra célebre. E agora apareciam aquelas criaturas — duas crianças, uma negra velha, uma bonequinha... Foi com imenso prazer que o santo começou a indagar de tudo — quem eram, como se chamavam, onde moravam, e que negra tão esquisita era aquela.
— E o senhor? — quis saber Emília depois que tudo foi explicado. — Agora que sabe a nossa história, conte-nos a sua.
São Jorge contou que nascera príncipe da Capadócia e tivera no mundo vida muito agitada. A sua luta contra o poderosíssimo mágico Atanásio ficou histórica. Por fim fez-se cristão e em virtude disso padeceu morte cruel numa das matanças de cristãos ordenadas pelo Imperador Diocleciano. Depois da morte veio morar na Lua.
— E sabe que é hoje o patrono da Inglaterra? — lembrou Narizinho. — Vovó diz que o senhor é o santo mais graúdo de todos, porque dá o nome a muitas ordens de cavalaria e tem aparecido até em moedas de ouro.
São Jorge não sabia nada daquilo, nem sequer que era santo, porque só depois de sua morte é que começou a virar tanta coisa. Também não sabia o que era ser “patrono da Inglaterra”, nem o que significava isto de “ordens de cavalaria”. Os meninos tiveram de dar-lhe uma lição de tudo.
— Mas não posso compreender donde vem a minha importância, o meu “graudismo”... — declarou ele com toda a modéstia, pensativamente.
— Eu sei! — berrou Emília. — É por causa do dragão e dessa tremenda e bonita armadura de guerreiro. Santos de camisolão e porretinho podem ser muito milagrosos, mas não impressionam. Diga-me uma coisa: onde é que descobriu esse dragão?
O santo contou que era um monstro que ele havia matado certa vez em que o encontrou prestes a devorar a filha do rei da Líbia.
— Mas se o matou, como é que o dragão está vivinho aqui?
— Mistérios deste mundo de mistérios, gentil bonequinha. Eu também fui morto e no entanto todos lá da Terra (segundo vocês dizem) me vêem aqui nesta Lua, a cavalo, de lança erguida contra o dragão. Mistérios deste mundo de mistérios.
Enquanto as crianças se entretinham com São Jorge, Tia Nastácia o espiava de longe, fazendo volta e meia um trêmulo pelo-sinal. A pobre negra não entendia coisa nenhuma do que estava se passando.
Pedrinho começou a fazer perguntas sobre a Lua, que São Jorge respondia com verdadeira paciência de santo.
— Pois isto aqui, meus meninos, é o satélite da nossa querida Terra. Satélite vocês devem saber o que é...
— Eu sei! — gritou Emília. — É como um cachorro que segue o dono!...
São Jorge riu-se.
— Sim. Satélite é uma coisa que segue outra, e na linguagem astronômica é um planeta que gira em redor de outro.
— Eu também sei o que é planeta -— disse Emília com todo o oferecimento (parecia até que estava namorando São Jorge). — É um astro que gira em redor do Sol, e é também o nome duns arados que Dona Benta tem lá no sítio...
— Muito bem — aprovou o santo. — O planeta gira em redor do Sol e o satélite gira em redor do planeta. A Lua é o satélite da Terra; é uma filha da Terra, hoje mais velha que a mãe.
Os meninos admiraram-se.
— Mais velha como? — indagou Pedrinho. — De que modo uma filha pode ser mais velha que a mãe?
— Há filhas que envelhecem mais depressa que as mães — respondeu o santo — e Emília confirmou essa idéia com a citação do caso duma Nhá Viça que morava perto da casinha do Tio Barnabé. — “A Nhá Viça é filha da Nhá Tuca e está dez vezes mais velha que a mãe por causa dum tal reumatismo.”
São Jorge riu-se e explicou:
— A velhice dos astros não se mede pelos anos que eles têm e sim pelo grau de resfriamento a que chegaram. O Sol, por exemplo, é o pai de todos os planetas e no entanto mostra-se muito mais jovem que esses filhos. Por quê? Porque está custando muito a resfriar.
— Eu sei a razão — declarou Pedrinho. — É por causa do tamanho. Já fiz a experiência lá em casa. Esquentei no fogão uma bola de ferro grande e uma pequenininha. A grande levou muitíssimo mais tempo para esfriar.
— Exatamente — aprovou o santo. — O Sol também há de acabar tão resfriado quanto esta Lua, mas isto só daqui a milhões de séculos. O Sol, que é muitíssimas vezes maior que a Terra, levará muito mais tempo para resfriar. A Lua sendo 49 vezes menor que a Terra tinha de resfriar-se muito mais depressa.
— E não há vida por aqui? — indagou Pedrinho. — A opinião geral entre os homens é que a Lua é um astro totalmente morto, sem vida humana.
— Eu também julguei que assim fosse — disse São Jorge. — mas ao vir para cá verifiquei o contrário. Ainda há alguma vida na Lua. Acontece, porém, que a vida está muito mais adiantada na Terra, de modo que nós nem reconhecemos os animais e as plantas daqui. São diferentíssimos. Também o ar é muito rarefeito, de modo que os animais e as plantas tiveram de adaptar-se a essa situação.
— Então o ar da Lua é rarefeito assim? — perguntou Pedrinho, já com um começo de falta de ar — e quando soube que era várias vezes mais rarefeito que o ar da Terra, ficou numa grande aflição, a respirar precipitadamente — e todos fizeram o mesmo. Emília chegou a dar escândalos com a sua falta de ar...
Depois São Jorge contou que a Lua gasta um mês para dar uma volta em redor da Terra; mas como gira sobre si mesma no mesmo espaço de tempo, está sempre com a mesma face voltada para a Terra.
— Isso eu sei — gritou Emília — porque desde que vim ao mundo sempre vi a Lua com a mesma cara. E é por isso que gosto da Lua. Tenho ódio às criaturas de duas caras...
São Jorge explicou que pelo fato de a Lua gastar um mês para dar uma volta em redor da Terra, os dias ali eram compridíssimos e as noites também.
— Cada dia aqui equivale a quatorze dias lá da Terra; e cada noite equivale a quatorze noites de lá. E por causa disso só há duas estações: verão e inverno. O verão é o dia; o inverno é a noite. O dia é quentíssimo e a noite é geladíssima.
— Nesse caso, quantos dias de 24 horas tem o ano aqui? — perguntou Narizinho.
— Tem doze dias — cada dia correspondendo a um mês lá da Terra.
Todos se admiraram.
— Quer dizer então — lembrou a menina — que se eu fosse nascida na Lua teria apenas 120 dias de idade — quatro meses?
— Exatamente. Se lá na Terra você tem dez anos, aqui teria quatro meses. Seria uma nenezinha...
— Que graça! — exclamou Emília. — E Dona Benta? Que idade teria Dona Benta, se fosse lunática?
— Dois anos e quatro meses — mas “lunático” quer dizer “maluco” e não “habitante da lua”. Os habitantes da Lua chamam-se “selenitas”.
— Por quê?
— Porque em grego o nome da Lua é “Selene”. Selenita e uma palavra derivada do grego.
Pedrinho quis saber das montanhas e mares da Lua, e contou que num livro de Flammarion vira um mapa da Lua cheio de nomes de mares e montanhas. E com grande admiração do santo foi dizendo os nomes daqueles mares e montes. Falou no mar da Serenidade, no mar dos Humores, no mar das Chuvas, no mar das Nuvens, no mar do Néctar...
— Esse eu quero conhecer! — berrou Emília. — Tomar banho no mar do Néctar deve ser batatal!...
São Jorge franziu a testa. “Batatal?” Nem batata ele sabia o que era, quanto mais batatal! Pedrinho teve primeiro de contar a história da batata, que apareceu no mundo depois da descoberta da América, para depois explicar o que Emília queria dizer com o tal “batatal”.
— Quando uma coisa é muito boa, mas boa mesmo de verdade, Emília vem sempre com esse “batatal”...
Em seguida Pedrinho desfiou o nome das montanhas da Lua que havia visto no mapa do Flammarion.
— Há inúmeras montanhas — disse ele — batizadas com o nome de astrônomos e sábios célebres. Há a montanha de Fabrício, a de Clávio, a de Plínio, a de Platão, a de Aristóteles, a de Copérnico... Vovó diz que a Lua é o cemitério dos astrônomos. A ciência os vai enterrando nestas montanhas aqui.
São Jorge admirou-se daquilo e contou que a montanha que dali avistavam era a mais alta da Lua. “Então deve ser o monte Leibniz, com 7.610 metros de altura, o mais alto de todos”, explicou Pedrinho.
São Jorge achou muito interessante a idéia que os homens faziam da Lua, mas declarou que havia erros.
— Os mares, por exemplo, parecem mares vistos lá da Terra; mas não são mares, sim imensas florestas das plantas que existem aqui.
— E que plantas são essas? — quis saber Pedrinho.
— São as plantas que a nossa Terra vai ter quando ficar velhinha como a Lua. Hoje você olha e nem entende essas plantas. Como também não entende os animais daqui, de tão diferentes que são dos da Terra. Isso de quatorze em quatorze dias a Lua passar dum terrível verão para um terrível inverno fez das plantas e dos animais lunares umas coisas que nem entendemos. E também muito influiu a rarefação do ar. Os animais tiveram que tornar-se quase que só pulmões. São verdadeiros “pulmões animalizados”. A Emília há pouco manifestou vontade de ver um gatinho e um cachorrinho da Lua — mas se os visse nem sequer os reconheceria. São mais pulmões-bichanos do que gatos...
— Eu quero ver um pulmão-bichano! — berrou Emília. — Eu quero ver um pulmão-totó!...
— É difícil — informou o santo. — Além de serem raros, esses animais andam muito bem ocultos no fundo dessas crateras, onde ainda há uns restos de água.
— Por falar em cratera, como há disso por aqui! — observou Pedrinho. — Parece que antigamente a Lua não fazia outra coisa senão brincar de vulcão.
— Realmente — concordou o santo. — O número de crateras na Lua é prodigioso, mas estas crateras não são de vulcões. São de bolhas que arrebentaram, quando isto aqui era tudo pedra derretida.
— Como bolhas de sabão de cinza no tacho — exemplificou Emília.
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Continua … VIII – A Terra vista da Lua
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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