sexta-feira, 8 de julho de 2011

Maria Estela Guedes (A. Ramos Rosa: Obra ao Verde)


Conferência proferida na homenagem a António Ramos Rosa na II Bienal de Poesia. Câmara Municipal de Silves, 22-24 de Abril de 2005, por Maria Estela Guedes

1. Os leitores face à obra

Nascido em Faro, em 1924, António Ramos Rosa é um dos mais acarinhados poetas portugueses contemporâneos, e com toda a justiça. Faz parte de uma constelação de grandes visionários da palavra que nos têm dado a nós, portugueses, e também a povos de outras línguas, alguns dos mais importantes exemplos da excelência e beleza da nossa lírica - Natália Correia, Mário Cesariny de Vasconcelos, Eugénio de Andrade, Herberto Helder, para citar alguns.

Foi em Faro que António Ramos Rosa publicou o primeiro livro de poemas, "O grito claro", em 1958. Aí foram editadas as revistas Árvore (1951-53), Cassiopeia (1955) e Cadernos do Meio-Dia (1958), que dirigiu, até as publicações terem sido interrompidas pela censura. Nessa fase importante, criou amizade e companheirismo com outro grande poeta, Casimiro de Brito, que ainda dura. É importante esta fase inicial porque António Ramos Rosa, com as revistas, estava a criar dispositivos de autonomia literária e independência do sistema. Uma revista que nos pertence é diferente daquela de cuja direcção e aceitação do nosso trabalho estamos dependentes. As revistas não duraram muito tempo, mas o facto de a censura ter aparecido em cena prova que a independência de espírito dos autores dava os seus frutos e que a sua presença se fazia sentir de várias maneiras, e não apenas no espaço literário.

A obra de António Ramos Rosa é muito vasta e variada, dentro e fora da literatura e do país. Dentro e fora da literatura, porque também se dedica às artes visuais, não só como ilustrador, mas expondo em galerias de arte. Dentro e fora de Portugal, porque está traduzido em vários países, sobretudo de língua francesa e castelhana.

Uma consulta rápida na Biblioteca Nacional permite verificar que António Ramos Rosa figura como autor em mais de duas centenas de títulos, e como título numas dezenas de registos de livro. Além de serem já muitos os volumes de poesia publicados, vários são duplos, como o mais recente, "Génese", que inaugura uma nova colecção de poesia, dirigida por Casimiro de Brito (1). Realmente são dois livros num único registo: "Génese seguido de Constelações", número um da colecção Sopro, na Roma Editora. Já não é viável aproveitar ocasiões como esta, em que homenageamos o autor, para apresentar um estudo que contemple ao menos parte significativa dos seus livros, porque são muitos.

Quanto a registos com o nome de António Ramos Rosa em título, trata-se naturalmente de livros sobre a sua obra: teses de mestrado, antologias, retratos de jornalistas e ensaios literários. Entre os ensaios, saliento "António Ramos Rosa ou o diálogo com o universo", de João Rui de Sousa (2), e "Mediação crítica e criação poética em António Ramos Rosa", de Ana Paula Coutinho Mendes (3). Esta autora também assina a "Antologia portátil de António Ramos Rosa", que abrange textos desde o primeiro livro, "O grito claro", de 1958, até "Choque e pavor", de 2003 (4). Já que falo de antologias, é preciso lembrar Casimiro de Brito, íntimo leitor do poeta, seu amigo de muitos anos, que assinou um livro de ensaios poéticos sobre a sua obra, "Vagabundagem na poesia de António Ramos Rosa seguido de uma Antologia (5).

O reconhecimento dos leitores pela obra do poeta manifesta-se, além das entrevistas e do muito ensaísmo sobre os seus livros, dado à estampa em jornais e revistas, e agora também na Internet, nos mais importantes prémios que em Portugal se atribuem aos intelectuais. Entre outros, António Ramos Rosa já recebeu o Prémio Pessoa, o do Pen Clube, e o Grande Prémio de Poesia. O Grande Prémio de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores, foi-lhe atribuído em 1988 ou em 1989, pertencia eu então aos corpos directivos. Fiz parte do júri que o elegeu. E como o discurso se tornou agora tão pessoal, informo a audiência, e em especial António Ramos Rosa, que entre os sítios no ciberespaço onde se editam poemas seus e ensaios sobre a sua obra, se conta o TriploV (http://triplov.com), que dirijo. António Ramos Rosa tem a sua webpage no TriploV, construída com a colaboração dos poetas Rui Mendes e António Cardoso Pinto.

Homenagens também já várias foram prestadas a António Ramos Rosa, esta que hoje lhe fazemos na II Bienal de Poesia não é a primeira nem será a última. Como estamos no Algarve, recordo a que lhe fez Faro, sua terra natal, em 1999, com um festival de poesia de que resultou a obra colectiva "Encontros de Outono"(6).

Passemos agora ao que tem motivado o reconhecimento do público, a obra de António Ramos Rosa. Entre os cerca de duzentos títulos em que o seu nome figura como autor, a maior parte são os livros de poesia. Mas o poeta é também tradutor, ensaísta, crítico de literatura e de artes visuais, por isso recordo os seus ensaios: "A Poesia moderna e a interrogação do real" (7), "Poesia, liberdade livre" (8), "Incisões oblíquas" (9) e "A parede azul: estudos sobre poesia e artes plásticas" (10).

Para terminar esta nota introdutória, refiram-se as muitas traduções que desde sempre Ramos Rosa tem assinado, invariavelmente de autores muito marcantes da literatura mundial: Paul Éluard, Marguerite Yourcenar, Michel Foucault, André Gide, Brecht, Teilhard de Chardin, Albert Camus e tantos outros.

2. Liberdade de ser

António Ramos Rosa, como outros poetas que começaram a publicar antes do 25 de Abril, manifesta na sua poesia linhas temáticas que, apesar do regime de censura, são politicamente muito claras. Esses temas dizem respeito, como não podia deixar de ser, e tendo ele a experiência da tesoura, à falta de liberdade, e por isso à prisão da vida mesquinha de todos os funcionários cansados, sob a ditadura de Salazar. É ao desejo de liberdade que se aspira quando nos poemas aparecem gaiolas, prisões e pássaros, como acontece precisamente no conhecido Poema dum funcionário cansado, que remata com "palavras soterradas na prisão" da vida (11). Essa reclamação aparece com grande veemência no redundante título da colectânea de ensaios, "Poesia, liberdade livre".

Parece que no meio das muitas correspondências poéticas, a poesia é o mesmo que liberdade. Mas se a liberdade da poesia é uma liberdade livre, quer dizer que fora dela o não é. Admitindo-se assim que há uma liberdade que não é livre, verificamos que entre os termos "liberdade" e "livre" não existe total correspondência. Ou então só existe na poesia.

A falta de liberdade não se limita à prisão do corpo, e por isso o poeta não a perde como linha de força em mudanças de regime político, nem nos confins dos primeiros poemas. É um tema permanente, ontológico, ele atravessa toda a obra, unindo linguagem e ser numa só natureza ou estado de correspondência. Declara António Ramos Rosa, numa entrevista: "A minha poesia é cognitiva e metapoética. Se a metafísica é uma forma de conhecimento do universo, das coisas, da linguagem, então sim, tenho essa inquietação. Os meus textos não se reduzem a um âmbito circunstancial. Mas quando escrevo um poema, o tema que se me impõe imediatamente é o da palavra, da linguagem. Desde sempre." (12).

A liberdade que o poeta reclama para a palavra ultrapassa a liberdade de expressão, porque o ser e a palavra não se distinguem na sua perspectiva ontológica: o poeta escreve sol (13) da mesma maneira que as árvores falam, isto é, o poeta cria mundo com as palavras. Dos diversos mundos ou diversas categorias de realidade, entre elas a criada pela linguagem, ocupou-se Karl Popper. Há de facto uma dimensão cognitiva na poesia de António Ramos Rosa, que decorre da perspectiva filosófica com que vê a comunicação, e não só humana, pois também admite os códigos da Natureza.

Porque a Natureza fala, o poeta escreve: "Conheço as palavras das árvores" (14). O homem é um ser de linguagem, todo o seu afecto, saber e história residem nela. Por isso, ao interrogar a palavra, é o mundo e a vida que questiona. E também por isso a liberdade reclamada para a palavra é a liberdade de ser, e não apenas a de ser proferida ou impressa. Porque o universo é sentido como linguagem, a poesia tem nele um referente e um interlocutor, e ao poeta, o primeiro tema que se lhe impõe é o da palavra. É assim que se estabelece, entre a Natureza e a palavra, e entre a linguagem e o homem, a maior de todas as correspondências.

Mas deixemos a porta aberta, neste domínio das correspondências, em que verde é a letra "u", como escreve Rimbaud, a transmutações mais fáceis do que as alquímicas: quando num poema falamos desse assunto, nós, que escrevemos em português, temos também em mente e no plano de significação imediata dos termos, a correspondência amorosa, o estabelecimento de elos afectivos entre leitor e autor. O poeta assinou um pacto consigo mesmo e com o público, tem um compromisso ao qual sente que deve responder. E a liberdade faz parte dessa relação de intersubjectividade, em que de um lado existe uma expectativa e do outro o desejo de correspondência. Eis o que lemos em "Génese" (1), o mais recente livro de António Ramos Rosa, no qual não havia razão para estar presente o tema da liberdade, se essa liberdade fosse apenas aquela que nos garante a democracia:

Escrever é procurar corresponder
Ainda que não se saiba a quê ou se esse quê existe
A nossa liberdade nasce de uma incerteza radical
E a sua metamorfose é a invenção de um espaço
De correspondências que visam uma esfera inviolável

Vivemos num mundo prático, utilitário, economicista. O nosso cérebro, mesmo poeta, só se satisfaz com argumentos contabilizáveis. Por isso, ainda o poeta vivia no Algarve, fez contas à vida, interrogou-se sobre o sentido da sua e do que escrevia. Olhando para o resultado das contas, tomou a decisão que lhe pareceu mais justa. Sabemos qual foi a opção de António Ramos Rosa: a liberdade do franciscanismo poético. Não uso sem critério a imagem de S. Francisco: na Natureza dos poemas não faltam pássaros com os quais o poeta comunica. E apesar de não transparecer na obra nenhum tema católico, a verdade é que esvoaçam anjos nela. Por muito que sejam Anjos de terra (15), e o poeta esclareça que os anjos que conhece são de erva e de silêncio (16), anjos são anjos, e vivem na cor da esperança.

Sem emprego, sem cargos públicos, a vida, dedicada apenas à arte, só podia oferecer-lhe dificuldades materiais. No entanto, essa marginalidade franciscana não impediu Ramos Rosa de ter voz activa nas convulsões políticas e sociais em geral, e em particular nas anteriores à revolução portuguesa do 25 de Abril. Pertenceu ao MUD juvenil, embora nunca tivesse militado em nenhum partido político. Por ter ido receber Maria Lamas a Portimão, com outros intelectuais, foi preso pela PIDE, a Polícia política de então (17).

Entende-se assim que o desprendimento por empregos ou cargos públicos, e mesmo a recusa em receber um prémio do SNI, correspondeu à rejeição de um sistema político anti-democrático. Se S. Francisco falava às aves e Santo António aos peixes, é porque com os homens não era possível o diálogo.

Insisto porém em que o tema da liberdade, embora vinculado a estas experiências de vida, não está preso a elas - é mais amplo e mais profundo. Eduardo Pitta considera os ensaios "emblemáticos de uma obra centrada na noção de liberdade" (18). Essa centralidade constitui uma rede que põe todos os poemas em comunicação, não apenas próprios como alheios. Tal como a linguagem, também a liberdade é interpelada quanto ao que de facto é e quanto aos seus limites. No seu último livro, "Constelações", a liberdade é condicional, depende do desaparecimento do sujeito na brancura, isto é, da anulação do ser na inexistência de cor:

Talvez a condição da liberdade seja esta abolição no branco
Que tornará possível a nudez de um começo o esplendor do novo (19)

A liberdade, em Ramos Rosa, é a possibilidade de sermos o que queremos ser. Resultado da soma de querer e poder, a liberdade é tão difícil de alcançar que se projecta no plano da utopia. Nos versos que acabei de citar, a abolição no branco não é absoluta: ela abre a porta à renovação, e por conseguinte ao esplendor cromático da vegetação. Esta brancura é o lugar de onde fala o sujeito poético, o vazio de sentido e de valores que José Augusto Mourão, em ensaio sobre Ramos Rosa publicado agora pela primeira vez, no TriploV, diz ser insuportável ao pensamento ocidental (20). A nossa natureza tem horror ao vazio, por isso lança sementes em todos os buracos.

Se não podemos dizer que António Ramos Rosa seja um poeta católico, apesar dos seus anjos, também não poderemos dizer que seja um poeta hermético. Mas que há na sua poesia uma obra ao verde, bem primaveril, lá isso, há, como vamos ver.

3. As palavras são cores

A poesia de António Ramos Rosa deambula entre conceptualismo e pintura. Certos poemas são muito impressionistas no colorido, e já sabemos que o poeta também é artista visual e também faz crítica de pintura. Não admira assim que nos surja uma criação poética estimulada pela percepção da luz e das cores. Por vezes, à semelhança da pintura moderna, mais voltada para o efeito plástico dos materiais do que para o que possam representar, as palavras são cores, pincelando a página de verde, azul, branco, negro e amarelo, que simultaneamente produzem música:

A praia era de guitarras destruídas,
voos negros rosados sobre azul,
e sobre o branco multiplicado do céu cantava
o azul,
cantava o branco sol e azul
e os fragmentos de guitarra verdes vermelhos
negros
cantavam mar azul, praia vermelha,
voos de andorinha negros . (21)

Nos poemas pictóricos, sobretudo nos que surtem efeito figurativo, percebemos corpos e objectos em movimento num discurso que se apresenta como paisagem. Nem todos os elementos da paisagem são naturais, concretos como os pontos de referência do conhecido que guardamos na memória. Mas eles tornam-se elementos naturais pelo facto de terem certas cores. A cor é algo próprio da matéria, ou é algo que a luz faz reagir na matéria. Em António Ramos Rosa, as cores dominantes são o branco e o verde. Na brancura há sinal negativo, é quase sempre uma falta que o poeta precisa de cumular com a palavra, pois a falta está associada à página antes do Génesis, a génese da escrita, como o último título do poeta deixa claro: "Génese" tem por tema o nascimento do poema, ser orgânico, animal, como Aristóteles o definiu, por isso expresso pelo léxico normal do parto. O poema é um elemento da Natureza, como uma árvore. Daí que fale dele como gerado num "útero verde" (22).

No extremo oposto da brancura, signo da falta e do vazio, não está o negro. O negro, tal como o branco, é sinal de ausência de luz, e a luz não é só um elemento natural, próprio da physis, ela é também um elemento psíquico e cognitivo: a treva mete medo porque não sabemos o que se esconde nela, ao passo que a luz acalma ao iluminar objectos de serenidade. A luz torna visíveis as coisas, por isso as ficamos a conhecer pelo olhar e pela inteligência.

A equilibrar a balança, pesada de carga negativa com a brancura, fica, em Ramos Rosa, uma cor positiva, eufórica, cheia de esperança - o verde, evidentemente. Basta notar que quase sempre o verde surge em situação de redundância, para nos apercebermos do seu valor genesíaco, o valor de "útero verde".

Na poesia rosiana, as coisas mexem, os elementos são dotados de som, forma, cor e velocidade. Alguns reiteram-se, como ícones que conhecemos noutros autores e noutras pinturas, caso da mulher que irrompe venusinamente do seio das águas. Os textos conceptuais tendem para a filosofia, esboçando ideias e temas. Além da liberdade, do amor, do erotismo, da questa de felicidade, da génese, etc., aponte-se ainda a adolescência como estado privilegiado da poesia. Neste último livro, "Génese seguido de Constelações", a adolescência associa-se naturalmente à fertilidade, ela é um estado de alma propício para a criação poética:

Como o abdómen de uma adolescente
a página suscita a fértil fragilidade
de uma caligrafia que se apaga sobre os sulcos de neve (23)

Ramos Rosa é um poeta nervoso e inquieto, por isso certamente não encontraremos poemas puros, nem fóticos nem reflexivos, antes híbridos. A sua lírica acusa variações e mudanças bruscas de ritmo, não só ao longo dos anos como ao longo dos poemas de um mesmo livro, e até num só poema. Para usar um modelo de análise fornecido por Fontanille, numa obra que trata da semiótica da luz (24), e que propõe três estesias na obra de cultura, a estesia reflexiva, a estesia transitiva e a estesia recíproca, podemos considerar que a estesia reflexiva, em Ramos Rosa, diz respeito aos poemas centrados na relação do sujeito consigo mesmo; a estesia transitiva, que é a relação entre o sujeito e o mundo, tem um exemplo transparente em frases como "escrevo árvores", "escrevo casas", em que a transitividade do verbo se desloca dos seus objectos próprios para algo que pertence de resto à estesia reflexiva, por ser a concepção da linguagem como organismo, logo como criadora do mundo: o poeta não escreve poemas sobre a natureza, as palavras são as cores, as casas, por isso a linguagem cria a Natureza. E finalmente, ensina Jacques Fontanille, há a estesia recíproca, uma dimensão na arte que cria relações de intersubjectividade. A intersubjectividade, em Ramos Rosa, passa, como já referi, pelo desejo de correspondência, de responder ao pacto amoroso com o leitor; às vezes, mais explicitamente, com a leitora.

O movimento entre o reflexivo, o inventivo e o amoroso pode relacionar-se com posicionamentos paradigmáticos, próprios de opções de escola ou de movimento. É admissível que o poeta recuse a transparência, se lhe parece colada a uma estética fora de moda, mas Ramos Rosa alcançou uma posição em que essas questões se tornam insignificantes e os conceitos a que se ligam não passam de preconceitos. Eu diria que as variações se devem ao desejo de obscuridade, pois há na poesia um lado de enigma e mistério que convoca a vontade de conhecimento, e também a deslizamentos do humor. Em geral a revelação e o irrevelável andam de mãos dadas, acontece um poema começar com uma ideia claramente expressa, que depois se enigmatiza e transmuta em pintura muito colorida, passando-se assim de um estilo a outro completamente diverso. Vejamos um poema para exemplo, de que cito os dois primeiros e os dois últimos versos. Entre eles, estabelece-se uma polifonia de pinceladas que impedem o que, a desenvolver-se segundo as expectativas criadas nos versos iniciais, daria qualquer coisa como um ensaio, e um ensaio certamente sobre a transparência de cristal das palavras:

Talvez a simplicidade nunca seja atingida
Porque a nudez está entre a ficção e o real
[.]
Que ele reúna a chama e o grito numa lâmpada
De cristal e uma sombra se mova como uma lâmpada na lâmpada . (25)

4. A obra ao verde

Para entrarmos de chofre no tema da obra ao verde, dou como exemplo o "Telegrama sem classificação especial" (26), em que aparece um sujeito de enunciação plural, o nós, todos os que partilhavam com o poeta as mesmas contrariedades. Vejamos os primeiros versos:

Estamos nus e gramamos.
Na grama secular um passarinho verde
canta para um poema lírico, para um poeta lírico,
que se nasceu
é certo que não cantou .

Gramamos, temos de gramar, nada de mais disfórico do que as emoções contidas na palavra, no sentido habitual do termo "gramar", calão, ou langue verte, como diriam os franceses. "Gramar" é vocábulo da língua verde , o calão dos adivinhos, e neste poema é verde de forma redundante, pois que o termo "grama" também indica a relva, e além destas duas verduras ainda temos terceira, a do pássaro que canta. Ora como se chama a língua dos pássaros, além de se chamar linguagem das aves, como sabem todos os que leram Fulcanelli e outros alquimistas? Língua diplomática, diva garrafa, argótica, língua das gralhas, etc.. A língua verde é a dos alquimistas e de escritores como Rabelais, Rimbaud ou André Breton. É a língua falada pelos deuses, pelos anjos, pelos elementos da Natureza, aquela que recorre aos símbolos, aos anagramas, aos códigos destinados a iludir os inquisidores, os polícias e os curiosos que não fazem parte das confrarias do segredo.

Nada de mais afastado de Ramos Rosa, um poeta do concreto e do material, sem tendências esotéricas, crípticas nem religiosas, não é verdade? Mas não é ele quem diz que o poeta não escreve o poema, o poema é que cria o poeta? Pois então, aí está: seja o que for que o poema escreva, fá-lo com a língua verde, a falada pelo rumorejar do vento no arvoredo.

A verdura pode ter valor satírico, como aliás tem neste poema em que gramamos, ou podem ser subversivas as nossas verduras, aliás em certas circunstâncias de esoterismo, pode o verde ser maléfico, mas está sempre do lado oposto do suicídio invocado no poema que citei, "Telegrama sem classificação especial". Em António Ramos Rosa, a obra ao verde é a alquimia da esperança, o verde é metonímia da floresta, da vegetação, de toda a Natureza. É nesse espaço vegetal que o poeta se renova, renasce alquimicamente, como ele escreve, nesse livro intitulado à medida do movimento cíclico, que propicia o renovo primaveril, "Volante verde":

É uma corrente de ar brilhante, é um lugar que emerge
De obscuras veias. Que leveza no vento! Estou no meio do espaço.
Oiço os murmúrios do sol. Saboreio o que sou.
Sou renovado pelo espaço, nasço num espaço verde.
O que eu amo está perto entre a terra e o ar . (27)

Na obra ao verde, a liberdade de ser o que se quer ser passa por um renascimento idêntico ao das plantas, em que a língua verde (28) cria a própria liberdade. Para que a liberdade exista, é preciso que o poeta a escreva, tal como lemos em "Constelações": "Escrevo para que a liberdade respire com os seus veios de nada" (29). Para a escrever, precisa da língua verde, a linguagem divina, falada pelas aves e pelas árvores. A respeito da capacidade transmutatória da palavra e das sílabas, escreve Ramos Rosa, mais alquimista do que o próprio Hermes Trismegisto:

A sua inteligência porosa está na sua língua verde
que não procura os frutos mas a fábula que os transforma
num sabor obscuramente lúcido
que tem a frescura obscura da noite constelada
e a leve densidade de um silêncio de adorável surpresa
que pulsa como uma pálpebra na virgindade da página (28)

Esta aparição do hermetismo na forma da língua verde, a diva garrafa de Rabelais, poder inebriante que inspira e obriga a dizer a verdade, no caso dos ritos dionisíacos, não é de agora. Já em 1977, em "Boca incompleta", o poeta se referia à "língua áspera e verde", e ao seu oposto, o "silêncio verde" (30). Se a boca está incompleta, poderá ser por falta da língua como órgão, mas não por falta da linguagem verde.

Parece banal esta ideia de associar o verde à vegetação, mas nem por isso. Só numa primeira análise é verista pintar folhas de verde, quando, de modo geral, as cores estão desvinculadas do objecto a que em princípio pertencem, na realidade. E é útil anotar que a folha, em Ramos Rosa, tanto é folha de papel como de planta, na maior parte dos casos não há hipótese de seleccionar o valor. Verdade se diga também que a Física nega que os elementos da physis tenham cor, o que os não-daltónicos vêem como vermelho ou violeta não passa de vibrações de corpúsculos sob as ondas luminosas. Para o provar, dizem os físicos, basta apagar a luz. Não discuto, aponto apenas que em Ramos Rosa o colorido das paisagens não visa concordar com as ciências naturais, à excepção talvez do verde.

Talvez. Repare-se que o verde parece tão verista na pintura e metonímia da folhagem que é frequente anteceder elementos vegetais como a erva, a relva, as folhas. Quase sempre isto acontece, por isso faço uma única citação:

Tudo é calado alento,
Tudo é sombra verde
De um pensar sobre o sono
Das relvas espalhadas . (31)

A sombra é verde, escreve o poeta. Isto é espantoso, porque a sombra é a ausência de luz e por isso de cor. Neste poema o verde é propriedade da sombra e não das relvas, palavra de que está algo afastado. Sendo propriedade do obscuro, o verde remete para a magia, em que é considerada a mais misteriosa cor da paleta. Seria caso para voltarmos aos anjos verdes, em especial ao anjo portador da esmeralda na qual se talhou um famoso vaso, mas António Ramos Rosa, a despeito de toda esta obra ao verde, não é um poeta hermético.

E no entanto estamos mergulhados em plena obra alquímica, a que que visa a transmutação do chumbo em Leão verde, o ouro dos filósofos. É a própria cor, o verde, que tem dons transmutatórios. Tudo aquilo em que cai pincelada verde muda de natureza. E assim a Natureza tem "geometria verde", as mulheres são verdes ou de musgo, os anjos são de erva e de silêncio, os animais transformam-se em vegetais numa frase como "Alto caule de cavalo aceso", o poema tem "lábio verde" e "verde chifre", e o poeta lamenta: "A saudade torna-me verde".

Vamos ficar por aqui, nada existe que não possa ser verde na poesia rosiana. Não há que ter medo das palavras nem dos sentimentos: quando o poeta diz que a saudade o faz verde, quer dizer que a poesia é uma barragem contra a morte. Face a esta encantada Primavera da esperança, só temos de ficar contentes.

5. Referências

(1) Escrever é procurar corresponder. Em "Génese seguido de Constelações". Lisboa, Roma Editora, 2005.
(2) João Rui de Sousa, "António Ramos Rosa ou o diálogo com o universo". Leiria, Diferença, 1999.
(3) Ana Paula Coutinho Mendes, "Mediação crítica e criação poética em António Ramos Rosa ". Vila Nova de Famalicão, Quasi, 2003.
(4) Ana Paula Coutinho Mendes, "O poeta na rua, Antologia portátil de António Ramos Rosa". Vila Nova de Famalicão, Quasi, 2004.
(5) Casimiro de Brito, "Vagabundagem na poesia de António Ramos Rosa seguido de uma Antologia". Vila Nova de Famalicão, Quasi, 2001.
(6) Augusto Miranda (ed.), "Encontros de Outono - 1999, Homenagem da cidade de Faro a António Ramos Rosa". Câmara Municipal de Faro, 1999.
(7) "A poesia moderna e a Interrogação do Real". Lisboa, Arcádia, 2 vols, 1979-1980.
(8) "Poesia, liberdade livre". Lisboa, Ulmeiro, 1986.
(9) "Incisões oblíquas: estudos sobre poesia portuguesa contemporânea". Lisboa, Editorial Caminho, 1987.
(10) "A parede azul: estudos sobre poesia e artes plásticas". Lisboa, Editorial Caminho, 1991.
(11) Poema dum funcionário cansado . In: "O grito claro", 1958.
(12) António Ramos Rosa - Só a poesia . Entrevista de Ana Marques Gastão no Diário de Notícias, 4 de Julho de 1998.
(13) Estou vivo e escrevo sol . Em "Animal Olhar", Lisboa, Plátano, 1966.
(14) Os prestígios simples . Em "Volante Verde", 1986.
(15) Anjos de terra . Em "O não e o sim", 1990.
(16) Os anjos que conheço são de erva e de silêncio . Em "Ciclo do cavalo", 1975.
(17) Maria Leonor Nunes, António Ramos Rosa , V ida de palavras . Jornal de Letras, 4 de Abril de 2001.
(18) Eduardo Pitta, " Constelação Terrestre". Diário de Notícias, Outubro de 1998.
(19) Eis a cal da página sem constelações. Em "Génese seguido de Constelações", 2005.
(20) José Augusto Mourão, Em torno de um texto teórico de Ramos Rosa. Em linha em http://triplov.com/poesia/ramos_rosa/jam/index.htm
(21) Göetz . Em "Animal Olhar", 1975.
(22) Se a vida como um rio tivesse duas margens . Em "Génese seguido de Constelações", 2005.
(23) Há palavras que esperam que o branco as desnude . Em "Génese seguido de Constelações", 2005.
(24) Jacques Fontanille, «Sémiotique du visible - Des mondes de lumière». PUF, Paris, 1995.
(25) Talvez a simplicidade nunca seja atingida. Em "Génese seguido de Constelações", 2005.
(26) Telegrama sem classificação especial . Em «Viagem através duma nebulosa", 1960.
(27) O obscuro . Em "Volante Verde", Lisboa, Mooraes Editores, 1986.
(28) Esta leve obstinação de um cálido tremor . Em "Génese", 2005.
(29) Escrevo para que a liberdade respire . Em "Génese", 2005.
(30) As palavras no centro vazio. Em "Boca incompleta", 1977.
(31) Transcrição da terra . Em "Animal olhar", 1975.
(32) É assim que vem o fogo como troncos de uma grande pedra. Em "Génese seguido de Constelações", 2005.


Fonte:
http://www.monografias.com

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