sábado, 14 de março de 2020

Varal de Trovas n. 208


Chico Anysio (A Mulher de Preto)


— Olha a mulher de preto!

Poucos sabem que se chama Fátima. A maioria nem se interessa por saber se tem nome, sequer. Chamam-na "mulher de preto" e isto basta para que qualquer um saiba a quem se referem.

Tem 39 anos de vida e 14 de Brasil, onde chegou de Portugal, solteira. Nasceu no Vizeu, o que lhe dá ao "s" um sabor de "x", considerado cômico.

— O xenhor xabe que não aprexio exa mania de paxar o dia a olhar pro xéu. Xi o trabalho o chama, que o faxa.

O menino, seu empregado no bar, volta ao trabalho por um momento. Não é tão eficiente quanto o bar precisa, mas custa salário pequeno. E não é dos que gostam de responder às admoestações. De boa paz, o menino.

— Xegura cá a xerveja, m'nino.

No bar, o menino é o único homem, desde que Teófilo morreu, num acidente de ônibus na Rio—Petrópolis, três anos depois do casamento.

Fátima, pelo choque, perdeu o filho que começava a gerar. Esteve à beira da morte. Escapou. Mas ficou mais só do que devia. Não tinha tido tempo de fazer amigos, e o marido, ciumento, sempre evitou associar-se às casas portuguesas e a qualquer clube. Viviam um para o outro. Depois, Fátima viu-se obrigada a viver sozinha.

Na parede do bar, atrás do caixa, o retrato do marido: tripeiro de barba cerrada, azulada, que começava ao pé dos olhos, confundindo-se com os pelos do peito. Tinha feições finas, o marido: um homem bem apessoado. Foi enterrado no Cemitério São Francisco Xavier, onde, todos os domingos, Fátima comparece, levando as flores da saudade. Não chora, todavia. Apenas, triste e solene, deita os cravos sobre o cimento e, após dizer umas poucas rezas, volta ao bar na Rua Salvador de Sá, único patrimônio que lhe ficou.

A mulher de preto. Colarinho fechado, mangas compridas, punhos invariavelmente abotoados, sempre de meias nada transparentes, rosto pálido onde nunca tocaram o ruge e o batom. Faz questão de viver no hábito português do luto eterno. Tem os cabelos escondidos pelo lenço de seda preta que não esquece de atar à cabeça, dando-lhe um jeito de camponesa de Vila Franca do Xira. As pernas, brancas demais, acinzentam-se pelos cabelos que deixa crescer, descuidada, esquecida da vaidade — coisa de gente moça. Imagina-se que nas axilas também os haja.

O bar é pequeno e antigo. São cinco mesas com pés de ferro e tampo de mármore malhado. Cadeiras pequenas, de madeira de lei, fabricadas pelo marido, marceneiro no Porto. Além das mesas, há o balcão onde o mármore, de beiradas comidas e quebradas, serve de pouso aos cálices de cachaça e conhaque ou xícaras de cafezinho.

— Me dá um Cinzano Tinto.

— Acabou. Tem branco, serve?

— Não.

Perde mais um freguês. O negócio não vai bem. Fala-se na desapropriação do bar, para a abertura de uma rua nova, acabando na Presidente Vargas. Nas prateleiras, um fim de estoque.

— Um Dreher.

— Acabou.

Outro freguês para o bar moderno que se abriu na esquina, concorrência desigual. Para ela restam os da cachaça, que dividem a pinga com o "santo" e não economizam palavrões no vocabulário. Já está acostumada aos nomes que escuta. Antes chamava os brasileiros de "Boca Xuja". Agora aceita-os. Deles vem o dinheiro diário.

O menino-ajudante lê a página esportiva do jornal, sentado na caixa de refrigerantes. Ela se aborrece com a inércia do ajudante que não tem a décima parte da sua disposição.

— Eu não te pago para que tu paxes o dia xentado, m'nino. Anda cá a ajudar-me.

Fátima vigia, ensina, comanda, compra, vende, evita.

— Sabe que a senhora, com uma roupinha mais leve, uma blusinha estampada, um penteadozinho maneiro... Não sei não. Tá sozinha porque quer, sabia?

Ela nem sorri, temendo alimentar qualquer esperança sem o menor sentido, impossível mesmo. Desde que o marido se foi, jurou solidão eterna.

— Dois vermutes.

— Xó tem uma dóje. Xerve?

— Não, obrigado.

Vão-se mais dois para beber no bar da esquina. Ah, quanto tempo falta para acabar com tudo isso?

Mora num quarto alugado, em casa de família, com café da manhã e almoço aos domingos. Junta dinheiro. O que con­segue economizar, ao fim de cada mês, amealha, sonhando com o dia em que poderá comprar a passagem de volta ao Vizeu, onde tem parentes que escrevem cartas prometendo coisas melhores do que a vida que o bar lhe permite.

— Por que não casa de novo?

Responde ao dono da casa onde mora, com indisfarçável contrariedade:

— Faxa o favor de não me tocar nexe axunto...

Às vezes cora, à simples ideia de nova união. Considera esses comentários um desrespeito ao luto que esfrega na cara do mundo. Então não veem que a uma viúva não se devem falar certas coisas? Temendo a continuação do assunto, volta ao quarto, onde mantém acesa uma lâmpada sobre a imagem de Nossa Senhora de Fátima, sob a qual há um copo com água, molhando um cravo. Os outros onze, da dúzia, deitou-os domingo sobre o túmulo do finado. Amanhã mudará o cravo do copo.

Reza, dorme e trabalha. Sua vida resume-se à conjugação desses três verbos. Não sabe de cinemas ou teatros e mesmo a Copacabana só foi uma vez, passear pela calçada da praia. O mar nunca lhe tocou o corpo.

Hoje é domingo. Está saindo do cemitério, depois de cumprir a tarefa habitual. Há um vento forte que a faz andar tomando conta da saia que, vez por outra, sobe, deixando que se veja o nó no alto das meias, no começo da coxa.

Tem o marido à sua frente, de tanto que pensa nele. Rememora o acidente. Relembra conversas. No dia seguinte à sua morte iriam ao Pão de Açúcar.

A roupa que usa, o comportamento a que se determinou, a cara fechada e o passo cadenciado são os responsáveis pelos gracejos que ouve. Os galanteios são infinitamente menores do que merece. Isso atribua-se também à roupa, comportamento, cara e passo.

O Pão de Açúcar! Imagina que não será nenhum absurdo fazer o passeio hoje, domingo. Admite, inclusive, ser uma homenagem póstuma a Teófilo. Despreza o táxi que se oferece, preferindo o ônibus.

Há uma fila grande para o bondinho. A mulher de preto, no entanto, sente-se num deserto. É a única a não mostrar alegria. Não há prazer no passeio. Age no tom que se determinou: homenagem póstuma. Qualquer atitude diferente disto, encarará como pecado, quase heresia, nem sabe definir.

Turistas esbarram nela que, da janela do bondinho, olha a cidade sem maior interesse. Vê as praias repletas, os automóveis que mais parecem formigas, de tão pequeninos. Teme, por um momento, que se quebre o cabo, e o carro despenque. Afasta os olhos da paisagem, virando-se para o interior. Examina os companheiros da viagem. As famílias e os casais, alegres, tirando fotografias, fazendo piadas que imaginam engraçadas.

— O cabo vai quebrar... vai quebrar... vai quebrar...

Ridículos. Um menino faz cócegas na tia, provocando-lhe um grito, de susto.

— Xi exe miúdo foxe meu, eu o enxinava... — pensa.

Está quase arrependida do passeio.

Seus olhos param num homem sentado no canto do bondinho. Comporta-se diferente dos demais, porque se comporta igual a ela. Está só, o homem. Igual a ela. O homem lhe sorri, de modo simpático. Ela retribui e depois se arrepende. Volta à paisagem. Mas já não vê os carros nem as praias. U'a mão invisível torce-lhe o pescoço, obriga-a a virar o rosto para o canto, onde Geraldo continua sorrindo, sorrindo, sorrindo, adulto, compenetrado, cara de trabalhador, respeitável, simpático, aparentemente honesto.

Saltam no morro da Urca para trocar de bondinho. As crianças correm na frente, querendo lugar na janela. Os pais tentam alcançá-las. Os casais têm menos pressa. No fim do grupo, Fátima e Geraldo. Olham-se com respeito, com esperança, com temor e quase carinho. Ele lhe dá passagem. Ela entra no bondinho, já admitindo comprar uma blusinha estampada que viu anteontem numa vitrine, no Estácio.

Geraldo sorrindo, sorrindo, sorrindo, adulto, compenetrado, cara de trabalhador, respeitável, simpático, aparentemente honesto, sorrindo, sorrindo...

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.

J.G. de Araújo Jorge (O Canto da Terra) 1


A CARTA QUE NÃO CHEGOU
                               ( A Ladislau Stowinsky - 1944 )

Eu também queria viver para a alegria pura de criar
para o convívio das obras que nos contam da vida e da beleza;

para beijar as mulheres que me oferecesse as suas carícias
e aceitasse uma parcela de minhas preocupações;

para regar as plantas de manhã cedo, quando o sol
ainda não desceu das montanhas,
e dizer para as crianças não pisarem nos canteiros;

para podar o jardim e encher o jarro de flores
de flores macias e frescas como as faces das crianças;
para sentir no corpo sadio a ducha fria do chuveiro
e a alma cantar feliz numa canção qualquer.

eu também queria viver para levar orgulhoso pela mão, o meu filho,
para a escola que canta ao longe como um viveiro de pássaros;
e tomar posse, com ele, pelo caminho, das belezas insuspeitáveis,
e ensiná-lo a ser puro como a manhã, e a ser bom como a terra
e ensiná-lo a deslumbrar-se diante das coisas simples:

- uma gota que ficou brilhando imóvel, trespassada num espinho...
- um pássaro que apanhou, ligeiro, um pedaço de grama...
- um botão que se entreabre ainda molhado da noite
puro como um sonho de criança que não adivinha a vida...
- um menino passa de bicicleta, assoviando...
- o jornaleiro que não sabe que leva a História na mão...
- uma semente que alteia o chão e vence a terra
no supremo milagre da beleza: - à procura do sol!

Eu também queria viver, para voltar e encontrar a mesa posta,
a toalha limpa, o prato branco, o pão cortado,
os talheres brilhando, os guardanapos dobrados;

para deitar-me cansado e adormecer depressa, conversando,
sem perceber que estou dividindo as coisas mínimas  
e que há alguém que dá valor às minhas mínimas coisas;

eu também queria viver para as horas leves que passam
sem que cheguemos a perceber que são as horas de prazer,
para um dia então nos lembrarmos, de que elas foram, em verdade,
as horas boas e inesquecíveis de felicidade...

Eu também queria viver, sem esperar e temer a morte todos os segundos,
sem pensar que ela é o fim necessário, a grande paz inviolável;
sem esse medo da chuva, da noite, do inimigo,
sem ter que me alimentar de pensamentos dolorosos e vãos
e me contentar com a esperança vaga de um tempo perdido...

Eu também queria viver, - nessa grande felicidade intraduzível
de quem vive feliz sem saber mesmo que está vivendo;
sem essa presença angustiosa de todas as coisas e de todos os seres
que amamos e que desejamos como à terra e como à vida,
e que só a dor e a ausência tornam poderosamente presentes...
- - - - - –

A ETERNA LUTA
                       ( A Modesto de Abreu - 1940 )
   
Não te irrites, amigo - a verdade é uma lança
que a mentira, aos pedaços, lentamente faz!
E o tempo - o tempo é a esponja que apaga... é a bonança
que vem, quando a tormenta fica para trás!

Não duvides de ti, se és forte e se és capaz!
E tem fé que esta fé deve ser a esperança
de que apesar de tudo é a verdade que avança
e a ignorância que foge, e aos poucos se desfaz!

Tu que és a mocidade e o pensamento novo,
luta por tua terra e defende teu povo,
que é preciso afinal lutar pelo que é teu!

Tem sido eterna a luta entre as sombras e a luz!
Foi por pregar o bem que mataram Jesus!
E por crer na verdade: - Sócrates morreu!
- - - - - –

A LIBERDADE E A LARANJA
                (A Guilherme Figueiredo)

Um dia a liberdade será como a laranja
que tens na mão...

Já não será o sangue que espirrará em teu rosto
prova, e sentirás o gosto,
- será apenas o suco doce da laranja irmão...

Um dia, sentirás o gosto da liberdade,
apalparás a liberdade entre os dedos,
e ela escorrerá pelos teus lábios
e molhará a tua garganta...

Um dia, essa liberdade de que tanto te falam
e que tanto te prometem
deixará de ser palavra, e terá forma e cor...
E hás de apertá-la então, nas mãos ansiosas,
e hás de sentir na boca e na alma o seu sabor!
- - - - - –

A TORRE DE BABEL

Eu creio que os homens seriam bons
se a torre de Babel
não se tivesse feito em pedaços no chão...

(As línguas são os estilhaços sonoros
de um só coração...)

Não importa que eu seja ainda uma vez profano,
mas se hoje, uma outra torre se erigisse
no centro do Vaticano,

- eu sei de homens que derrubariam essa nova Babel
com receio talvez que ela chegasse ao céu!...
- - - - - –

A VOLTA DO CAMPONÊS
              ( A José Queirós Júnior-1940 )
   
Outrora, por estas terras, uma estrada desenrolava
pacificamente  
o seu novelo de paisagens bucólicas,  
e havia cantos, e havia vozes,
e automóveis velozes,  
e carros pachorrentos
indo e vindo, pelas tardes quietas e melancólicas  
lentos... muito lentos...

Outrora, sobre aquelas águas que ainda hoje
não cessaram de rolar  
ligeiras  
- mas que riam - e agora parecem chorar,
havia uma ponte, uma ponte que era como uma pulseira  
que o progresso ofertara
ao braço branco do rio de água sonora e clara...

E do outro lado, junto ao seio da colina
que arqueia, numa suave claridade,
é que ficava a cidade...
Era de ver, a grande praça aos domingos, contente
e sempre cheia,
ou nos dias de semana, monótona, tranquila,
- tão linda a praça da vila...

E subindo as encostas, debruando as ruas:
o casario
com seus telhados de cor e seus penachos de fumo. . .
- como se cada rua fosse um rio
vermelho, descendo pelas encostas
sem rumo...

Outrora, - ( até parece no outro dia,
- se eu cerrar os meus olhos sou capaz de crer
nestas lembranças,
- e de escutar, quem sabe? a algazarra, a alegria
das crianças...)

- Se eu cerrar os meus olhos, sou capaz de ver,
o dia em que me chamaram
o dia em que eu parti
e os dois olhos embaciados que ficaram
me acompanhando,
e a criança que acenou as mãozinhas, chorando
e que eu nunca mais vi
...........................................................................

Chamaram-me e eu fui. Disseram-me que eu ia
para a guerra,
(que guerra?)  
- que eu ia defender a minha terra
e era preciso lutar,
que a pátria me chamava, e que eu defenderia
meu trabalho, meu lar  

Chamaram-me e eu fui . . . matei voltei...
Por que deixaram-me voltar?  
Antes ficasse, se já não encontro
a terra que deixei,
se não tenho trabalho e se perdi meu lar...

Voltei... por que deixaram-me voltar?

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. O Canto da Terra. 1945.

Nilto Maciel (O Fogo e a Luz)


Porque suas palavras vieram voando no brilho dos olhos, cor­rendo nas batidas do coração, deslizando no suor da pele, cantan­do na carícia de todo o corpo dele, eu me fiz nuvem e desfiei-me ao seu chegar, aceitei-me chão e espichei-me ao seu retorno, constituí-me árvore e me deixei lamber pela sua maciez, assumi-me na­tureza e atentei para a sua melodia.

Contou-me tudo, todo aquele passado, aquele tempo curto em que se deixou enfeitiçar pela beleza solta que passeava pelas ruas. E conversamos longas horas, amargurados de sermos tão vulneráveis, maravilhados de podermos renascer das cinzas. Compreendeu e compreendi que paixão é morbidez, fogo de artifício, às vezes fogo fátuo. Não vai além do voo mais alto, não suporta gotícula de luz. Rosana era um fantasma de braços estendidos ao tempo. Não se manteria ao menor terral, ruiria como a marmota do arrozal.

A sedução de uns olhos de serpente pode encantar qualquer passarinho perdido, mas não ata nenhum pássaro de voo mais arrojado. Rosana era essa beleza insuportável que laça qualquer cristão solitário.

A quem atribuir a culpa pela queda dele, se não somos o pri­meiro casal? Ao contrário, mais um nesse enxame do século XX.

Coitada de mim que não sabia o fogo que ardia no peito dele e nos queimava aos três como a bruxas de repente rodeadas de batinas. E vão dizer que mulher é bicho astuto, possuidor de não sei qual outro sentido, encarnação do diabo. Ele, sim, foi mais inte­ligente do que eu e me pôde esconder sua loucura até que seu próprio desengano o fez revelar-me todo o seu transe. Não por compaixão de mim ou por remorso, mas porque anteviu a fragilidade daquele amor nascido do sonho.

Ele queria a mulher imaculada, bela e terna, eternamente jo­vem e infinitamente amorável. E construiu sua quimera a partir do primeiro corpo belo que encontrou adiante.

No começo veio o acaso de ver diante de si, risonha, caloro­sa e esvoaçante, aquela fêmea  a um tempo comum e singular. Depois foram os risos, as conversinhas fúteis, cigarrinho praqui, cafezinho prali, caronas, chopes e o fogo corroendo as entranhas dele, devassador e tirano. Cuidou, bebia para recriar a imagem dela na retina acesa, dormia pouco para mais pensá-la, sonhava muito para mais senti-la dele. E me chamava de Rosana no meu ouvido com a língua ardente e eu entendia “querida”. E me olhava estranho da cabeça aos pés e eu suspeitava o remoçar da paixão antiga. E me a­braçava tentacular e poderoso e eu pressentia um filho em seu de­sejo de monstro. E me beijava louco e eu desmaiava de ternura. E nunca compreendi amor tão desleal, tanta astúcia ou tanta necessidade de enganar-se.

Ele era todo um espoucar de fogos, intensa claridade a sobre­voar-me a vida, constelação em constante pisca-pisca. Esperava tudo dela, o que não fui, o que não sou. A dos bosques, fada verde, deusa rebrilhante. Misto de mito grego e americano. Amor que nun­ca se esvai, taça inquebrável, voz de veludo.

Ele era só a luz que banha a terra, claridade que me circundava a fronte, incêndio queimando os campos. Tudo o que nunca foi, tudo o que não é. Porque somos mulher e homem, somos daqui desta cidade de esgotos e ratos, de assassinatos e fome, de mansões e choupanas, de cachaças e champanhes, sangue e ossos que se buscam, caminhantes incertos dos becos escuros, o copo que se quebra na cozinha, o grito que salta dos dentes na hora necessária.

Talvez eu seja mesmo astuta e disso não saiba. Quem sabe, eu sabia de tudo e não dizia nada para não fazê-lo explodir no alto e esborrachar-se feito sapoti que cai do galho ou apagar-se em sua escuridão? Porque não me revoltei quando tive que ouvir aque­la ficção de amor tão bem bordada. Simplesmente ouvi e analisei com ele o transe daquela paixão tão majestosa. Não havia nada a lamentar nem a vingar. E ele não teve vergonha de escancarar a alma nem eu de encostar meus ouvidos no seu peito roto. Ia eu brigar numa guerra acabada? Aceitei a derrota dele como lição. Não co­mo castigo, que ele não me desamou. Nem Rosana era a inimiga minha ou dele. Era objeto, palha que se joga ao fogo que nos incendeia. Conheci-a e vi-lhe a candura incrustada no bonito de seus olhos. Somos quase amigas porque sei das águas que ela lançou sobre o peito dele, amargurada de ser tão dupla assim – palha e água. Se culpa tem, é de ser ninfa até aos olhos meus. E se a culpa é dele, é por ser louco e apaixonado pela vida.

Mas é dia e o fogo é morto nos meus campos.

Fonte:
Nilto Maciel. Punhalzinho Cravado de Ódio, contos. Secretaria da Cultura do Ceará, 1986.

XXX Concurso Nacional de Trovas da UBT Bandeirantes/PR (Prazo: 31 de Julho)


Tema: DECISÃO ( L/F ) - Valendo termos cognatos.

Veteranos e Novos Trovadores (NT): 02 (duas) trovas por concorrente (NT digitar abaixo da trova a sua categoria).

Prazo: até 31 de julho de 2020 (valendo a data de envio).

ENVIO POR E-MAIL: 
daguima123@gmail.com
( Fiel Depositária: Dáguima Verônica de Oliveira ).

ENVIO PELOS CORREIOS:
Lucília A. T. Decarli
Caixa Postal 186
CEP 86360-000- BANDEIRANTES - PR

OBSERVAÇÕES IMPORTANTES:

1) O concurso é ofertado aos trovadores de todos os estados do Brasil, inclusive aos trovadores do estado do Paraná;

2) Não haverá festejos e os certificados serão enviados via correio aos classificados;

3) Os membros da Comissão Julgadora não concorrerão.

Fonte:
A. A. De Assis

sexta-feira, 13 de março de 2020

Varal de Trovas n. 207


Amani Spachinski de Oliveira (Amor de Bugio)


A história que vou contar, aconteceu, mais ou menos, há uns trinta e cinco anos atrás, envolvendo um bugio fêmea, seus três filhotes, uns caçadores e com seus cachorros de caça, numa floresta virgem do belíssimo Estado do Paraná, no Sul do Brasil

O Bugio, como sabemos, é um bicho muito "inteligente". Viveu durante milhares de anos, e ainda vive, na mata atlântica e florestas tropicais. Anda sempre em bandos, geralmente, sobre as copadas de árvore e pinheiros. Muito parecido, principalmente, nos gestos e fisionomia, com os macacos, que conhecemos hoje, presos nos zoológicos. Percorrem grandes distâncias com a ajuda da cauda, que facilmente se prende e se solta dos galhos de árvores e arbustos. Possuem atitude meiga, quase sempre com ar de um sorriso, quase não esboçado, nos lábios, mostrando, de vez em quando, os dentes esbranquiçados. Vivem â procura de comida, para alimentarem-se e tratar dos filhotes mais novos, que ainda não têm a agilidade da mãe ou do pai.

Gostam muito de frutas tropicais, folhas, brotos e cascas de algumas árvores. Na sua constante luta para sobreviver e conservar a espécie, os bugios tomaram-se, com o tempo, autênticos malabaristas, superando longe, qualquer artista de circo, no trapézio ou na corda bamba. Suas brigas, para defender o território, acontecem através de gritos, que são os mais altos de todos os sons produzidos por animais da Terra e podem atingir um raio de dezesseis quilômetros.

Um dia "Dona Bugia", habitante das margens do Rio Pinhão, que recebe o Jordão e, juntos desembocam no Iguaçu, (região de grandes florestas naturais de pinheiros e madeiras de lei, até que os destruidores da natureza chegassem para devastar tudo, sem critérios e sem consciência e nada replantassem), perdeu-se de seu bando e andava de copa em copa, tanto dos pinheiros como das frondosas árvores milenares de imbuia, peroba e outras. Quando, de repente, viu-se atacada por cachorros ferozes e dois caçadores, armados com espingardas de boa mira, revólveres e facões afiados. Saltando sobre as árvores, para fugir, ela carregava os seus três filhotes, presos ao próprio corpo, agarrados às costas e ao peito da mãe, entrelaçando seu pescoço, como é o costume entre os babuínos.

Em um dos saltos teve a infelicidade de agarrar-se em um galho seco e lá se foram ao chão. Para salvar sua pele e, também a pele dos filhos, a mãe Bugia corria e pulava transformando-se em um verdadeiro serelepe. Num salto, quase voando, conseguiu alcançar um tronco enorme de pinheiro que se elevava e se sobressaía entre os mais altos do Paraná. Continuou subindo até sua copa.

Ufa! Estava salva. Mas isso foi só em pensamento, pois o pinheiro era solitário no campo, fora da mata. No desespero ela nem havia percebido que correra para o campo, saindo da mata. Não havia possibilidade para saltar para outras copas. Estava encurralada. Para completar sua "sorte", o pinheiro era muito velho e já não possuía uma galhada frondosa, como os novos. As pontas de seus galhos tinham pouco sapé e sua copa era rarefeita e isso não permitia que dona Bugia se escondesse com os filhos.

Os cachorros rodeavam o pinheiro avançando e latindo sem parar, até seus donos chegarem. Os dois caçadores logo avistaram a Bugia e um deles, imediatamente apontou a espingarda, fazendo mira. A mãe Bugia permaneceu estática, segurando firmemente os filhotes, abraçando-os na tentativa desesperada de protegê-los. Procurava segurar a respiração para manter-se em silêncio, mas o cansaço e o medo não lhe permitiam. Depois de alguns segundos, enquanto o caçador se arrumava para atirar ela teve um ideia, (é por isso que alguém acha que os bichos pensam), agarrou dois de seus filhos, segurando-os através da pele das costas, um em cada mão, segurou-se bem, com as patas e o rabo cm um dos galhos do pinheiro e, num gesto de extrema coragem, estendeu as mãos, com os dois filhotes, em direção ao caçador e, com muita tristeza no olhar parecia dizer: por amor a estas criaturinhas, por favor não atire.

O caçador, ao perceber aquele gesto, ficou tomado de grande compaixão. Olhou para o companheiro e os dois, com lágrimas nos olhos, e contemplaram comovidos, aquela cena emocionante da mãe. O sentimento paterno envolveu seus corações. O que estava com a espingarda apontada para os animais, foi baixando a arma, até apontá-la para o chão e atirou, como para dizer: "vá embora e seja feliz com seus filhotes".

Sentaram-se ao chão, completamente sem fala, enquanto que os cachorros estavam deitados a uns dois metros de distância e respiravam de boca aberta, com a língua de fora, para retomar as forças. Também eles, pareciam estar pensando e arrependidos pelo que fizeram. Depois de algum tempo pensativos e envergonhados, olharam novamente para o alto pensando que a Bugia tivesse fugido e, para sua surpresa, ela estava lá, procurando piolhos na cabeça dos filhotes e os olhava, com um olhar que parecia de profunda gratidão. Agora, contra sua própria natureza, parecia esboçar um tímido sorriso de alívio e gratidão.

Os caçadores, juraram juntos que, a partir daquele momento, jamais matariam qualquer bichinho que fosse. Partiram de volta para suas casas e ainda olharam umas duas ou três vezes em direção ao pinheiro que abrigara "Dona Bugia" e seus três filhotes amedrontados.

Ao descer, para retomar sua caminhada nas copas de outras árvores e pinheiros, a mamãe Bugia parecia dizer aos seus três filhotes, "puxa filhos, foi por pouco! Escapamos por um triz!" E, ainda trêmula pelo susto, continuou a descida, enquanto os filhotes permaneciam alheios ao que havia acontecido, brincando com raminhos e folhas sem compreender bem e, por isso nem perceberam o perigo que estavam correndo a alguns minutos atrás.

E os dois caçadores contam, até hoje, aquela passagem, não como vantagem de caçada, mas como lição de vida sobre preservação da natureza. As espingardas foram vendidas para o ferro-velho, e os cachorros morreram de velhos, sem nunca mais terem corridos atrás de caça. Aquele pinheiro não existe mais, embora não tivesse ainda idade para morrer quando foi cortado.

Fonte:
Rubens Luiz Sartori (org.). Compêndio da Academia Mourãoense de Letras.  Campo Mourão/PR: UNESPAR/FECILCAM, 2004.

Carlos Cavaco (Baú de Trovas)

Santana do Livramento/RS (1878-1961) Petrópolis/RJ

A própria espuma negreja
na boca do cão que late.
O covarde — é o que apedreja;
o valente — é o que combate.
- - - - - –

Embora estejas distante,
beijo-te a cada momento:
são mais velozes que os outros,
os beijos do pensamento...
- - - - - -

É preferível o insulto
que a um nome puro retalha,
a ter que ouvir e dar vulto
a elogios de um canalha!
- - - - - –

Não te detenhas: avança!
Segue de rastro ou de pé,
levando na tua lança
uma bandeira de fé!
- - - - - –

Quando avisto uma criança,
não sei porque, nela eu vejo
o sorrir de uma esperança,
o desabrochar de um beijo.
- - - - - –

Somente é grande quem luta
face a face com a sorte.
Feliz quem bebe a cicuta
sorrindo diante da morte!
- - - - - –

Tantas coisas já disseram
de teus olhos para os meus,
que meus olhos se fizeram
escravos dos olhos teus.
- - - - - –

Tu queres saber, querida,
o maior dos meus desejos?
— Forrar-te as mãos pequeninas
com duas luvas de beijos...
- - - - - –

Vivo feliz, satisfeito,
sem vaidades e sem luxo,
sentindo bater no peito
meu coração de gaúcho.

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva.
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Obs. do Blog
Antigamente as trovas, apesar de obrigatório a rima entre o segundo e quarto versos, não havia esta obrigação entre os primeiros e terceiros versos. Somente com a criação da União Brasileira dos Trovadores, em 1966, foi regulamentada a obrigatoriedade da rima do primeiro com o terceiro (sistema ABAB) em competições oficiais desta entidade. 

Contos e Lendas do Mundo (Suécia: O Homem que Teve de se Fazer de Dona de Casa)


Era uma vez um homem tão malicioso e irritável, que lhe parecia sempre que a esposa não fazia o suficiente e, como trabalhava no campo, ela tinha de lhe levar a comida. Mas, como estava muito atarefada, um dia não conseguiu chegar à hora habitual, o que enfureceu o homem.

- Não te insurjas tanto, meu querido amigo - retorquiu a mulher. - Amanhã, inverteremos as posições. Ficarás em casa entretido com a faina doméstica e eu virei trabalhar no campo.

Ele concordou que era uma boa ideia. Na manhã seguinte, ela partiu para o campo e o marido iniciou as tarefas do lar. Primeiro, tinha de fazer manteiga. No entanto, havia algum tempo que batia o leite, quando teve sede e desceu ao porão para se servir de uma cerveja da pipa. Enquanto o fazia, ouviu que o porco entrara na cozinha, onde se encontrava a vasilha da manteiga, pelo que subiu a escada apressadamente, ainda com o espicho da pipa na mão. Quando chegou à cozinha, viu que o animal derrubara o recipiente e entornara toda a nata. Ato contínuo, perseguiu-o e, esquecendo-se do objeto pontiagudo que empunhava, atingiu-o na cabeça com tal violência que o matou. Naquele momento, tornou a lembrar-se da barrica e regressou apressadamente ao porão, mas já se entornara toda a cerveja.

Dirigiu-se a uma leitaria próxima, onde comprou tanta nata, que pôde começar de novo a fazer manteiga. Pouco depois, lembrou-se de que a vaca ainda se encontrava no estábulo e, apesar de o sol já ir alto no céu, ainda não comera nem bebera nada. Todavia, como tinha muita pressa para fazer a manteiga, não dispunha de tempo para levar a rês ao prado. Mas sabia que crescia erva no telhado do estábulo, pelo que lhe ocorreu a ideia de a fazer subir para lá. Para tal, colocou uma tábua larga inclinada, convencido de que bastaria para o que pretendia. Antes, porém, tinha de lhe dar água. Não se atrevia a abandonar a vasilha da manteiga, pois o filho de tenra idade encontrava-se nas cercanias, e ele temia que o entornasse. Assim, pegou no recipiente, colocou-o às costas e foi ao poço buscar água para a vaca. Mas quando se inclinou a nata escorregou-lhe pelas costas e tombou no poço.

Faltava pouco para o meio-dia, e a manteiga continuava por fazer. Levou a vaca para o telhado e foi à cozinha fazer sêmola. No entanto, enquanto se dedicava a essa tarefa, lembrou-se de que o animal podia precipitar-se no chão e sofrer fraturas irreparáveis. Por conseguinte, muniu-se de uma corda, atou uma ponta à vaca, enfiou a outra na chaminé e depois prendeu-a em uma das suas pernas, convencido assim de que, se o animal caísse, o poderia içar de novo. E, com efeito, a vaca caiu do telhado. Ele puxou-a através da chaminé até que a corda se prendeu, e ela ficou a oscilar entre o céu e a terra.

Entretanto, havia sete longas horas que a mulher aguardava que ele a fosse chamar para almoçar. Por fim, impacientou-se e resolveu regressar a casa. Quando chegou, viu a vaca suspensa de uma corda e tratou de cortar esta última. Ato contínuo, o marido caiu pela chaminé e mergulhou na panela da sêmola.

Fonte:
Ulf Diederichs, Palácio dos Contos. Lisboa/Portugal: Círculo de Leitores, 1999.

quinta-feira, 12 de março de 2020

Varal de Trovas n. 206


Dorothy Jansson Moretti (Daltônicos)


Deve ser bem engraçado o mundo que eles enxergam. Palavra que eu gostaria de ser daltônica apenas por um dia, só para satisfazer minha curiosidade,

Na família de meu marido os homens são todos daltônicos. Dizem que isso se herda pelo lado da mãe. Deve ser, pois minha sogra contava que seu pai, certa vez, andando pelo jardim da casa, fez-lhe esta observação:

"Veja, minha filha, que linda esta rosa bem cor-do-céu".

Das duas, uma: ou a rosa para ele era azul, ou então o céu era cor-de-rosa...

Um domingo, meu cunhado Rubens veio almoçar conosco. Enquanto eu e meu marido preparávamos a "bóia", ele pegou um jornal e acomodou-se na sala, tirando os sapatos e cruzando os pés sobre a mesinha, muito à vontade.

Estava calçando uma meia verde claro e outra avermelhada.

"Ué, Rubinho, está com meias trocadas?!"

Ele observou atentamente os pés e respondeu:

"É mesmo... o desenho é diferente."

Quando Paulo ainda era meu noivo, um dia estava com Gustavo na câmara escura, vendo-o revelar umas fotos. Gustavo precisou de um lápis azul e pediu ao Paulo que fosse buscá-lo. Veio um lápis rosa.

"Não é esse, é o azul."

Veio um verde dessa vez. Só então o Gustavo percebeu que ele era daltônico, e aí revelou-se um segredo muito bem escondido. E o Paulo ficou muito encabulado. Ele tem muita vergonha desse defeito visual. A perna mais curta devido ao acidente na infância não o chateia absolutamente. Mas ser daltônico é motivo para um terrível complexo!

Quando ele fez o primeiro exame de vista, pediu-me que o acompanhasse para escolher a armação dos óculos. Eu estava muito ocupada e não queria ir, mas ele insistiu. Nem me lembrei do daltonismo dele, e foi uma sorte que o tivesse acompanhado, porque sozinho ele teria voltado para casa com óculos de palhaço. A armação que ele mais apreciou colocou sobre os olhos:

"Veja, Dotty, este marronzinho parece que ficou tão bom, não é?"

"Ficou mesmo maravilha, Paulo!"

Os aros "marronzinhos" eram da mais berrante cor-de-maravilha...

Sempre que se lhe pergunta de que cor é um objeto qualquer, ele sai com evasivas;

"É cor-de-buraco-de-cerca", ou coisas assim. Jamais responde a uma pergunta sobre cores.

Logo que nos casamos eu quis saber como era que ele me via. Perguntei-lhe: "De que cor são os meus olhos?”

Esquivando-se sempre, ele, como de costume, não quis responder. Afinal, como eu insistisse, acabou dizendo:

"Bom, eu sei que você tem olho azul, porque já ouvi um milhão de pessoas dizerem que você tem olho azul... Mas para mim não é."

"Então que cor que é?"

"É roxo..."

(Tribuna de Itararé— 09/08/1989)

PS. Passados dezesseis anos desde que escrevi esta crônica, não posso deixar de relembrar o fato mais pitoresco que aconteceu pouco antes de meu marido falecer. Estávamos assistindo a um jogo de Futebol da Seleção e o estádio era só bandeirinhas brasileiras em profusão. Comentei com meus cunhados: "Se o verde-amarelo das bandeiras significa alguma coisa, hoje o Brasil só pode ganhar."

Ao que meu marido retrucou: "Verde e amarelo... desde quando tem verde e amarelo na bandeira do Brasil?"

Aos setenta e poucos anos... de que cor seria para ele a bandeira do Brasil?!


Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.

Olivaldo Júnior (Trovas sobre o Fazer Poético)


Feito a chuva nos telhados,
cai meu verso em seus ouvidos;
logo escuto, desmanchados,
mais que os seus cinco sentidos...

Ao fazer minha poesia,
faço um pouco minha história;
cada verso, a alvenaria
com que eu ergo a vã memória.

Cada estrofe que recorto
com a tesoura da paixão
vira o cais no qual aporto
quando a Terra é solidão.

Quem me dera ser poeta
para honrar meu grande amor!...
Mas o amor só me deleta
quando o exalto em seu andor...

Meu amor nem sabe o quanto
me custou fazer poesia
com os pedaços desse encanto
que ele pôs em agonia!...

Nem a métrica, nem nada
que me faça ser exato,
pode ser como a cantada
da pessoa que retrato...

Acham feio este poeta
para ter amor também;
para um alvo, sua seta,
só a minha nunca vem...

Fonte:
Colaboração do trovador.

Teresinka Pereira (Poemas Recolhidos) IV


ABSURDO

Os maiores pecados
sob o poder da igualdade.
A natureza mutilando
as criaturas
e exigindo seu amor!

Na água, no céu,
no meio da rua
um incêndio de dores:
mas a alma bendiz
a noite, os lábios incontidos
selando a ignorância poderosa.

Coragem!
Atacar o absurdo deserto
seria evidência
de frustração.
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A PAZ É AÇÃO

A PAZ é um labirinto
de difícil acesso
pelo ser humano
cuja mente busca
agressivamente
pela sobrevivência
neste mundo transformado.
Mas, a razão pode prevalecer
sobre o desentendimento,
sobre as raivas, brigas, guerras
quando descobrimos que
a ação pela PAZ
é a única que vale a pena seguir
com o reconhecimento
de que somos todos iguais.
****************************************

DEFINIÇÕES

ESCREVER
Do nada
tiramos uma anarquia
de emoções

ESCRITOR
Dono da palavra
a energia do seu verbo
faz o mundo pensar.

LER
No silêncio anônimo da noite
ler é a aventura
mergulhada em esperança.

LITERATURA
A raiz do nosso destino
de poetas e escritores
é a história
da imaginação.

LIVRO
Pedaço de papel mágico
que serve de paisagem
na nossa solidão.

POESIA
Flor da escritura.
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FALSA PROMESSA

Será que sou a única
a não cumprir
uma promessa de amor?
Quanta vingança
puseste no meu dia
falsificando
meu infinito questionar
sobre a pobreza mental
dos animais humanos!
Minha fome de tempo
alimenta-se do absoluto.
Aumenta seu desejo
para ver como estou certa!
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INÉDITO

A poesia é
sempre nova.
Difícil é embelezá-la
de acordo com a ocasião.
Uma só aventura,
uma escovada no tempo
e aqui ela está:
arco do triunfo sonhado!
Mas vem a noite
e a tormenta,
as paisagens douradas,
o fruto longínquo,
o amor perdido,
e o fogo no sangue.
Vem a noite e um
implacável golpe terrível
nos mostra que continuamos
tão desertos e tão virgens
como a ausência.
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POESIA

Pouco é a poesia.
Para alguns
não é nada.

Mas se é o único
em que podemos crer,
que podemos compartilhar,
que podemos viver,
e no qual podemos pedir
que me acaricies
com as suas palavras
de paixão
porque jamais a inteligência
chegará a tanto.
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TRÊS VEZES

Três vezes escrevi o poema
em tua pele, e outra vez
o tatuei em tua língua
para que o sentisses
dentro de teu ser.
Mas ao despertar continuavas
perguntando pelo amor.
Então tomei teu pulso
e vi que respiravas com dor,
neste espaço entre a minha boca
e a alvorada, e que se
te perdesse, eu deixaria de existir.
Acariciei-te perdida na luz
e surpreendida de mim mesma
repeti mentindo: eu te amo!

Fonte:
Colaboração da poetisa.

Paulo Mendes Campos (Automóvel: Sociedade Anônima)


Se você quiser, compre um carro; é um conforto admirável. Mas não o faça sem  conhecimento  de  causa,  a  fim  de  evitar  desilusões futuras. Saiba que está praticando um  gesto  essencialmente  econômico; não para a sua economia, mas para a economia coletiva. Isso quer dizer que, do ponto de vista comunitário, o automóvel que você adquire não é um ponto de  chegada, uma conquista final em sua vida, mas, pelo contrário, um ponto de partida para os outros.

Desde que o compre, o carro passa a interessar aos outros, muito mais que a você mesmo.

Com o carro, você está ampliando seriamente a economia de milhares de pessoas. É uma espécie de indústria às avessas, na qual você monta um engenho não para obter lucros,  mas para distribuir seu dinheiro para toda a classe de pessoas:  industriais europeus, biliardários do Texas, empresários  brasileiros, comerciantes, operários especializados, proletários, vagabundos, etc.

Já na compra do carro, você contribui para uma infinidade de setores produtivos, que podemos encolher ao máximo nos seguintes itens: a indústria automobilística propriamente dita, localizada no Brasil, mas sem qualquer inibição no que toca à remessa  de  lucros  para  o exterior; os vendedores de automóveis; a siderurgia; a petroquímica;  as fábricas de pneus e as de artefatos de borracha; as fábricas de plásticos, couros, tintas, etc.; as fábricas de rolamentos e outras autopeças; as fábricas de relógios, rádios, etc.; as  indústrias de petróleo e muitos de seus derivados; as refinarias; os distribuidores de  gasolina, as oficinas mecânicas; as lojas distribuidoras de autopeças; o Estado (através do tributo).

Você já pode ir vendo a gravidade do seu gesto: ao comprar um carro, você entrou na órbita de toda essa gente; até ontem, você estava fora do alcance deles; hoje, seu transporte passou a ser, do ponto de vista econômico, simplesmente transcendental. Você é um  homem economicamente importante para  os  outros. Seu automóvel é de fato  uma sociedade anônima, da qual todos lucram, menos você.

Mas não fica nisso; você estará ainda girando numa constelação menor, miúda mas nada desprezível: a dos recauchutadores, eletricistas, garagistas, lavadores, olheiros, guardas de trânsito, mecânicos de esquina. Você pode ainda querer um  motorista ou participar de  alguma das várias modalidades de seguros para automóveis. Em outros termos, você continua entrando pelo cano. No fim deste, há ainda uma outra classe: a dos ladrões, seja  organizada em sindicatos, seja a espécie de franco-puxadores.

As perspectivas de suas relações com os diversos setores supracitados são as seguintes:  você pode ter sorte com o carro adquirido, mas pode também ter azar; as oficinas mecânicas boas ou más, sempre lhe arrancarão um máximo de tutu com um mínimo de  esforço; as fábricas de autopeças exploram os vendedores, os vendedores apelam para você; nos postos de gasolina, a lubrificação de seu carro pode ser malfeita, o óleo pode não ser trocado, e na própria gasolina você pode ser lesado; uma oficina pode também  causar a seu motor um dano irremediável ou trocar uma peça boa por uma peça ruim;  o  recauchutador pode dizer-lhe que seus pneus não prestam mais, a fim de vender-lhe pneus novos, e recauchutar os velhos para vendê-los a terceiros; o garagista e o mecânico poderão de vez em quando dar uma voltinha no seu carro, estando você de sorte se a batida que ele der for de pouca monta; o mecânico de esquina, muitas vezes indispensável, é prejuízo  certo; o lavador jamais cumpre o trato de fazer o trabalho todos os dias; o guardador, se não for muito bem gorjeteado, reserva para você as  piores vagas e manobra com o seu carro como se fosse um tanque de  guerra;  se você tem motorista, considere-se não o proprietário, mas o sócio dum automóvel: são os motoristas os melhores filhos, sobrinhos, netos, pais, tios e primos do Brasil, estando a todo momento  precisando de visitar esses parentes enfermos; o guarda de trânsito, se é honesto  capricha na multa; caso contrário, capricha na facada; as companhias de seguros são ficções: no momento em que você bateu, ou foi batido por um motorista que tenha seguro  contra  terceiros,  há  de aprender dolorosamente que o valor dos contratos dessa natureza é  muito relativo. Uma choldra, para dizer tudo.

Restam ainda os ladrões ou os outros ladrões: arrombam-lhe o carro, carregam pneus sobressalentes, espelhos, ferramentas, calotas, aros, rádio, antena, objetos deixados no porta-luvas e, pior que tudo, os documentos. Às vezes levam o carro todo; a polícia lhe dirá  que não dispõe de meios para prender o ladrão.

Como proprietário de automóvel, você ainda terá relações  com outras pessoas; com o Serviço de Trânsito, que poderá, entre outras picardias, esvaziar seus pneus; com os colegas motoristas, que  preferem bater no seu para-lama a  dar  uma  marcha  à  ré  de  meio  metro;  com pedestres e ciclistas imprudentes; com as crianças diabólicas que riscam a sua pintura, sobretudo quando o carro está novinho em folha; com os sujeitos que só dirigem de farol alto; com os barbeiros de qualidades diversas, alguns mortais; com a juventude transviada; com parentes e amigos, que o consideram um sujeito excelente ou ordinário, conforme sua subserviência à necessidade deles.

Poderia escrever páginas e páginas sobre o  automóvel  que  você comprou ou vai comprar, mas fico por aqui: tenho de tomar um táxi e ir à oficina para ouvir do mecânico que o meu carro ainda não está pronto. De qualquer forma, não desanime com minha crônica: paga a pena ter carro, pois ser pedestre, embora mais tranquilo e mais  barato,  é  ainda  mais chato. A não ser que você tenha chegado, com Pascal, à suprema descoberta: a de que todos os males do homem se devem ao fato de ele não ficar quietinho no quarto.

Fonte:
Paulo Mendes Campos. Supermercado. RJ: Tecnoprint, 1976.

quarta-feira, 11 de março de 2020

Varal de Trovas n. 205


Rachel de Queiroz (O Rádio)


Sei que o homem desembarcar na Lua foi o fato mais importante do século — e quem sabe até da história do mundo. Mas a divulgação do rádio transistor teve um  alcance muito maior, em sentido imediato.

Não conheço outra criação do progresso que possuísse tal capacidade de penetração nem fosse tão rapidamente aceita pelas populações mais atrasadas. Máquina  de costura, luz elétrica, agulha de injeção, tudo isso espalhou-se depressa e profundamente — mas não chega aos pés do rádio de pilha. Até do motor a explosão o rádio ganha, por causa da sua acessibilidade. Todo o mundo pode sonhar com um carro, até índio, — mas adquiri-lo já é outra coisa. Enquanto o rádio está praticamente ao alcance de todos até do índio, também.

No sertão mais escondido, em barrancas secretas de rio por Amazonas e Goiás, em serranias perdidas, em campinas longe do mundo, se a gente avista uma casa de  caboclo, de colono, de pioneiro emigrante, nove casos em cada dez, verá, por cima do telhado rústico, de cumeeira a cumeeira, o fio de cobre da antena do rádio.

Dentro da casa haverá um tamborete, um pote, um fogão de barro, nada mais. Porém em cima de um caixote improvisado em mesa, trepado num caritó na parede da sala, quase infalivelmente você verá um rádio. Tocando o dia inteiro as suas musiquinhas de dois vinténs (e por isso matando a velha e preciosa música folclórica), espalhando notícias e — essa, sim, é a sua contribuição mais importante — servindo de elo de ligação entre  populações distantes que não têm entre si outro veículo de comunicação, dando recados, pedindo notícias, acusando cartas, servindo de correio gracioso aos que não  têm outro correio ou, tendo-o, não sabem como usá-lo.

Rara é a estação de interior — rara não, acho que não há mesmo nenhuma que deixe de ter a sua “hora sertaneja” ou ‘‘alô, sertão”, ou ‘‘mande o seu recado’’  ou outro programa equivalente. E comove a gente ouvir o trançado das informações e avisos — “Dona Maria de Tal, fazenda Carnaúba, sua filha manda dizer que o menino operou-se e vai se salvar”. “Seu Raimundinho Nonato, do sítio Pacavira, avisa à família que perdeu o trem ontem e agora só pode ir na semana que vem.” “Rosélia do Putiú, Baturité, avisa aos irmãos Ribamar e Vicente, na Barra do Ceará, que a mãe faleceu repentinamente, o enterro é hoje mesmo.”

A princípio se estranha como é que chegam a destino aquelas comunicações perdidas, sem horário certo. Depois se entende — os rádios estão sempre ligados, sempre  tem em casa uma pessoa que escuta as mensagens. Ao ouvir um nome conhecido, arrebita a orelha, presta atenção e passa adiante o recado a quem interessa. É raríssimo perder-se um comunicado ou chegar ele com atraso. Sempre alguém por perto escutou.

E pode faltar na casa o dinheiro para o fumo ou o café, para a rede nova, para o corte de pano da mulher, mas não faltará para o carrego do rádio — ou seja,  carga de pilhas do aparelho. E também, sendo o rádio objeto de tão indispensável presença em todos os lares, e sendo quase sempre escasso o dinheiro em moeda corrente, os rádios são negociados nas barganhas mais singulares: um rádio novo por dois bacorinhos, um saco de milho e meia arroba de algodão; um rádio velho, já passado por muitas mãos, por um amarrado de frangos e um relógio de pulso com corda quebrada; um rádio ainda mais ou menos por tantos dias de serviço, uma lanterna de pilha sem carrego e uma ninhada de ovos de galinha indiana... Qualquer negócio vale, contanto que o rádio venha; pois é da nossa natureza, mesmo entre os mais esquecidos e abandonados dos seres, esse desejo e esse orgulho de pertencer — (nem que seja através de uma voz distante dentro de uma caixa de plástico) —, de fazer parte, de se integrar na comunhão dos homens.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Calazans Alves D’Araújo (Baú de Trovas)


Ao ver-te colhendo flores,
tive esse desejo vão:
transformar-me numa flor,
para estar em tua mão.
- - - - - –

É meu peito uma gaiola
vazia, sem passarinho.
Ah! Se eu pudesse, menina,
guardar nele o teu carinho!
- - - - - –

Este nosso velho mundo
já não está prestando mais:
rapaz querendo ser moça…
moça a querer ser rapaz...
- - - - - –

Eu sou como aquele ramo
da roseira, que ficou
muito triste, sem a rosa
que mão perversa arrancou.
- - - - - –

Eu sou seu, você é minha,
somos os dois – galho e flor
juntinhos, amando e rindo,
felizes no nosso amor.
- - - - - –

Invejei aquele feio
e miserável mendigo
que te pediu uma esmola…
(e eu nunca falei contigo!)
- - - - - –

Nasci no Brasil: me orgulho
de ser daqui do Nordeste,
onde as mulheres são lindas
e os homens cabras-da-peste.
- - - - - –

O beijo da nossa linda
morena pernambucana,
é gostoso como o mel
feito da cana-caiana.
- - - - - –

O vento desfolha as flores,
jogando-as no pó do chão.
Fez assim com os meus amores
a cruel ingratidão.
- - - - - –

Quando Ziza por mim passa,
eu me ponho a suplicar:
- Nossa Senhora da Graça
não deixe Ziza casar…
- - - - - –

Quanto mais galopa o tempo,
corre veloz, vai-se embora,
mais meu coração te ama,
busca e quer, muito te adora.
- - - - - –

Que desejo extravagante
este do meu coração:
querer ser o travesseiro
onde dorme Conceição!
- - - - - –

Quem fez o céu tão bonito,
a floresta, o campo, o mar,
não devia ter-me feito
para sofrer e chorar.
- - - - - –

Que tenho sido na vida?
No mundo, que tenho sido?
— Um velho barco perdido
numa enseada esquecida...
- - - - - –

São meus olhos dois mendigos,
dois miseráveis plebeus,
pedindo, ao bater-te à porta,
uma esmola aos olhos teus.
- - - - - –

— Tão longe! — disseste olhando
o céu. Eu disse: Tão perto!...
Falei do céu de teus olhos,
alegrando meu deserto...
- - - - - -

Tu gostas de minhas trovas,
eu gosto do teu olhar.
Foi por causa dos teu olhos
que eu aprendi a trovar.
 - - - - - –

Vendo da mulher o riso
Diz a feroz onça preta:
- Não torço esse meu sorriso
por essa horrível careta.
****************************************
Calazans Alves D'Araújo nasceu em 1902 e faleceu em 1976. Residia em Catende/PE. Poeta e trovador. Professor em diversas cidades do Pernambuco. Publicou em 1961 um livro intitulado "Ao Doce Embalo da Rede", trovas e em 1973, “Flauteio do Sabiá”.

Fontes:
– Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva.
– Calazans Alves D’Araújo. Ao doce embalo da rede.

Monteiro Lobato (Anta que berra)


História propriamente não é o que vou contar, mas simples episódio — coisa de um aparte inocente que atrapalhou a façanha narrada pelo meu saudoso amigo major Pedro Falaverdade, de Itaquaquecetuba.

Apesar de grande caçador o meu amigo não mentia: atrapalhava-se às vezes, confundia uma caçada com outra: mas mentir deliberadamente, como a maioria dos devotos de são Huberto, isso nunca! Para narrar feitos venatórios não havia outro; imitava ao vivo os cães na acuação, os anseios da espera, a corrida, o tiro, levando o naturalismo a ponto de reproduzir até o estrebuchamento final da caça ferida, para o que se atirava ao chão e tremelicava de pernas entre roncos e arquejos de animal agonizante.

É impossível reproduzir as suas histórias com o encanto que lhes emprestava a mímica pitoresca e o seu maravilhoso estilo técnico de caçador encanecido nas lides cinegéticas. Além disso, confesso aqui à puridade, não sou literato; não fiz versos aos vinte anos e nem sequer coloco decentemente os pronomes. Mas vamos ao caso.

Por uma tarde modorrenta de agosto o major narrava-me em sua fazenda a mais bela proeza da sua vida:

— Caçada de que me orgulho — dizia ele —, como Napoleão se orgulhava de Marengo. Passou-se o feito nos sertões do Peripipeva, Serra do Mar, às margens do Itaguaçu. Para encurtar caminho e não amolar os leitores, começo do meio.

Fale o major:

— ... E aí soltei a cachorrada. O Vinagre, como sempre, rompeu na dianteira. Cachorro fantasista, amigo de contemplações, pegou logo de namoro com os tangarás, e moita — não correu. Olho Verde, Molho Pardo e Tatuíra, esses afundaram firmes por uns carreiros velhos.

“Mozart partiu por último, depois de um consciencioso farejo pela beira do rio.

“Mozart! Que cachorrão! Era o mestre da matilha e único que fazia fé. Os outros às vezes negavam fogo, mentiam, perdiam a caça ou mudavam de rastro. Mozart, nunca!

“Sóbrio, comedido, de poucas vozes, mas certo como um relógio. Quando ele acuava, eu me punha a postos, que era caça, na certeza matemática; e conforme o número de acuos, já de antemão eu sabia que animal levantara. Um sinal, paca; dois, veado; três, porco; quatro, anta.

“Aos bichos vagabundos, irara, cutia, coati, ouriço, ele magoava com o silêncio de um desprezo olímpico.

“Nesse dia, a primeira voz que me chegou aos ouvidos foi a acuação do Olho Verde. Não fiz caso. Olho mentia como um cachorro.

“Depois latiu a Tatuíra. Era mais sério. Tatuíra, por Mozart e Minerva, herdara do pai as sólidas qualidades de mestre, prejudicadas, porém, por umas excentricidades histéricas da mãe, que, coitada, morreu hidrófoba. E assim, como chienne souvent varie, eu que estava deitado de papo acima sob a copa de um ingazeiro marginal ergui-me, mas só nos cotovelos.

“Nisto acuou Mozart — au, au, au, au: — anta! De um pulo pus-me na espera, atento. Logo depois os latidos amiudaram e percebi que todos os cães, exceto aquele tranca do Vinagre, corriam no calcanhar da anta.

“Como você sabe, corrida de anta no mato é um castigo. Não há barulho igual. Anta acuada mete-se num trote rompente por meio dos tramados, e vara caminho em linha reta, amassando o reino vegetal como um tanque de carne.

“E por isso enche a floresta de uma barulhada infernal, de fazer pequeno o coração do caçador novato.

“Vinha para meu lado a bicha, margeando o rio. O estrépito das taquaras rachadas, e da galhaça feita em lascas, crescia de vulto rapidamente. Eu postei-me em posição de fogo, no eixo de um valado, onde forçosamente ela havia de entreparar, e engatilhei a Lafourché, bem encaroçada de paula-sousa.

“Au! au! au! Estava a bicha a coisa de cem metros; mais minuto e rompia na clareira onde a esperava o meu tiro. O barulho fez-se atroador! Parecia um furacão do inferno em trabalhos de arrasar a floresta! Os taquaruçus rebentavam com estampidos de bomba; e embaúvas de foice gemiam estaladas nas sapopembas. Vinte metros! O fragor já ensurdecia os meus ouvidos. Dez passos! Só tinha o monstro de vencer um moitão de taquaruçus para cair no limpo da espera. Bá, bá, tá, tá — a moita estremeceu, rasgou-se, estrondeante, e uma anta cascuda, que mais parecia um rinoceronte, rompeu da tranqueira verde e estacou apalermada à beira do valo. — Eu — pum! pum! — tiro de barragem no pé do ouvido. Ela moleou o corpo e sumiu o corpanzil para dentro do buraco, estrebuchando, e lá desferiu um berro que parecia fim do mundo!”

Neste ponto eu interrompi o major com um aparte inocente:

— Será que anta berra, major?

O homem vacilou um segundo, mas tomando pé incontinenti disse:

— Ora, que diabo! Estou confundido. Não era “propriamente” anta o que eu caçava nesse dia, era um veado! É isso mesmo, um lindo veado-catingueiro…

Mas, como ia dizendo, o veado berrou e eu…

O veado berrou e o major continuou a história da maior façanha da sua vida com uma impavidez que é privilégio dos heróis. E eu tive lado de verificar quanta razão assistia ao povo em tê-lo na conta do caçador mais verídico da zona. O major positivamente não mentia, confundia apenas uma caçada com outra, por defeito de memória, coisa aliás desculpável em quem já trazia sobre si o peso de sessenta janeiros. Agora que o meu pobre amigo jaz a dormir o derradeiro sono, presto aqui a homenagem desta confissão às altas qualidades do seu espírito superiormente fidedigno.

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

Silmar Böhrer (Gamela de Versos n. 8)


Agatha Christie (Resenha de Livros) 2


O Segredo de Chimneys
The Secret of Chimneys


No magnífico palácio de Chimneys morre assassinado o monarca de um país dos Bálcãs. Somam-se ao crime o desaparecimento de um manuscrito revelador de importantes segredos de Estado, o roubo de uma coleção de cartas comprometedoras e a existência de um valioso diamante escondido no palácio. Ao redor destes fatos misteriosos movimentam-se os principais personagens do romance: o simpático e corajoso aventureiro, cuja identidade é enigmática, Anthony Cade, que traz o manuscrito da África; a atraente Lady Virginia Revel, que, com a ajuda de Anthony oculta o cadáver de um chantagista; um célebre ladrão, o “Rei Vítor”, que procura apoderar-se do valiosíssimo diamante; o alto e pomposo funcionário do Foreign Office, George Lomax; o colecionador de livros raros H. Fish, que de livros sabe muito pouco; o magnata Isaac Stein, que quer explorar o petróleo balcânico; o inteligente e imperturbável superintendente Battle, da Scotland Yard, que sempre sabe mais do que aparenta; e por fim, o velho proprietário de Chimneys, Lord Caterham, que só pretende, inutilmente, que o deixem em paz, e no qual a romancista concentrou seu característico sentido de humor.

O valente Anthony Cade voltou à Inglaterra depois de mais de 20 anos com a missão de entregar as memórias do Conde Stylpitch à uma determinada editora e cartas de um falecido chantagista a Virginia Revel. Todos querem se apoderar do manuscrito que revela segredos que o governo inglês por anos abafou além do esconderijo de um valioso diamante roubado pelo Rei Victor. Logo o manuscrito e as cartas são roubadas e Anthony ajuda Virginia a esconder da polícia o cadáver encontrado na casa dela. Na mesma noite, o príncipe da Herzoslováquia é assassinado em Chimneys. Nesse ambiente de mistério, o Coronel Battle contará com a ajuda de Cade para desvendar esses assassinatos, recuperar o manuscrito, encontrar os Camaradas da Mão Vermelha que queriam a morte do príncipe e descobrir qual hóspede do palácio de Chimneys é o famoso Rei Victor.

O Assassinato de Roger Ackroyd
The Murder of Roger Ackroyd


O assassinato do rico Roger Ackroyd, morto a punhaladas com uma adaga tunisiana, é a terceira de uma série de estranhas mortes, que despertam a atenção da solteirona e sagaz Caroline Sheppard, irmã do médico da cidade e narrador deste romance. Intrigada, Caroline resolve investigar o caso e descobrir se as três mortes têm alguma ligação. Para isso, ela conta com a ajuda de seu novo e excêntrico vizinho: o detetive belga Hercule Poirot. Escrita em 1926, O Assassinato de Roger Ackroyd é uma das mais famosas histórias da rainha do mistério.

Provavelmente o melhor de todos os livros da célebre escritora, onde Hercule Poirot elucida inacreditavelmente o assassinato de Mr. Ackroid, que estava prestes a descobrir a identidade do chantagista de sua falecida amante, achando onde menos se podia esperar o autor desta morte terrível.

Os Quatro Grandes
The Big Four


O número 1 é Li Chang Yen, o cérebro, a força controladora. O número 2 é o dinheiro, o poder da riqueza. O número 3, uma mulher francesa, é o conhecimento. O número 4, “O Destruidor”. Unidos para dominar o mundo, eles fundam uma organização secreta - os Quatro Grandes - que passa a cometer vários assassinatos e violentos atentados terroristas. A audácia ilimitada do grupo assusta até mesmo Hercule Poirot. O detetive belga, ajudado pelo fiel amigo Capitão Hastings, vai ter que usar todas as suas pequenas células cinzentas para desvendar um dos mais misteriosos casos criados pela dama do suspense.

O Mistério do Trem Azul
The Mystery of the Blue Train


Uma jovem encantadora, filha de um milionário, é estrangulada com um pedaço de cordão preto em sua cabina no luxuoso trem azul. A princípio o assassinato parece ter sido obra de um ladrão comum. Mas o detetive belga Hercule Poirot não acredita nesta hipótese e descobre que, entre os amigos da vítima, está um criminoso conhecido como “O marquês”. Seguindo esta única pista, Poirot tem que desvendar a identidade do assassino antes que o trem chegue na última estação.

O Mistério dos Sete Relógios
The Seven Dials Mystery


Sete esferas referentes a sete relógios constituem o cerne desta misteriosa aventura, que envolve uma extravagante organização secreta e põe em cena três deliciosos personagens de Agatha Christie: o esperto superintendente Battle da Scotland Yard, o simpático Lorde Caterham, dono do célebre palácio de Chimneys, e sua encantadora e corajosa filha Eileen. Juntos, eles vão ter que enfrentar um dos mais hábeis e cruéis assassinos de que já se teve notícia, criado pela imaginação inesgotável da “velha dama” britânica.

Sócios no Crime
Partners in Crime


Em Sócios no Crime, Tommy e Tuppence, dois jovens aventureiros, donos da Agência Internacional de Detetives, veem-se envolvidos na mais fantástica série de aventuras. Para cada caso a ser solucionado, usam o estilo de um famoso e grande detetive: as artimanhas do padre Brown, a irônica e bem-humorada inteligência de Sherlock Holmes, a inigualável sutileza do genial Hercule Poirot. São 23 histórias de tirar o fôlego de qualquer leitor, conduzidas pela inconfundível habilidade de Agatha Christie em criar, a partir do banal e corriqueiro, as situações mais extraordinárias.

Assassinato na Casa do Pastor
Murder at the Vicarage


“Qualquer pessoa que matasse o coronel Protheroe estaria prestando um grande serviço ao mundo”. Pronunciadas incidentalmente pelo pastor Clement, estas palavras, para surpresa de todos, logo viriam a se tornar realidade: o coronel é encontrado assassinado… na casa do próprio pastor. Mas para a sorte de Clement e azar do verdadeiro culpado, entra em cena a simpática velhinha Miss Jane Marple. Com apenas duas armas - um conhecimento profundo da natureza humana e um formidável poder de observação - ela descobre a verdadeira identidade do assassino, surpreendendo os moradores da pequena St. Mary Mead.

Fonte:
http://users.hotlink.com.br/pmgi/agatha/index.html

terça-feira, 10 de março de 2020

Varal de Trovas n. 204


Manuel Antonio de Almeida (As Flores e os Perfumes)


Lenda Oriental

Numa hora de ciúme o sultão Abdul foi encontrar-se no quiosque do lago com a sultana Djali, causa de seus tormentos.

Achou-a brincando tristemente com um pendão de flores. Sentou-se junto dela, tomou a guzla que ela há pouco tinha deixado, e ao som de sua toada melancólica cantou-lhe o seguinte:

“A princípio as flores eram todas brancas e não tinham perfume.

“O sol enamorou-se delas, e, nos raios com que as beijava, mandou-lhes as cores de que cada uma se vestiu.

 “As que se abriam ao amanhecer para receber do horizonte seu primeiro olhar ficaram com as cores da aurora;

 “As que lhe mostravam os seios quando ele estava no ponto mais elevado do céu ficaram rubras pelo fogo de seus beijos nesses momentos de triunfo;

“As que lhe esperavam na hora do ocaso para sorrir-lhe um adeus de saudade ficaram com as cores desmaiadas e melancólicas do crepúsculo.

 “Os perfumes eram silfos que vagavam no espaço, transparentes e invisíveis; brincavam com as brisas, adormeciam no seio das nuvens brancas, corriam pela superfície dos lagos, dos mares e dos rios.

 “Ora, os perfumes, depois que viram as flores tão garridas com as novas cores, enamoraram-se também delas, e, ocultos nas gotas do orvalho da noite, vinham beijá-las ao desdobrar dos botões, antes que o sol aparecesse no horizonte, e apenas ele se escondia no ocaso.

 “As flores não desprezaram a luz pelos perfumes, nem também os perfumes pela luz; aceitaram tudo, as cores e o aroma.

 “Eram flores! Daí veio que as mulheres gostam tanto delas, e que todas as chamam irmãs.

 “Os últimos amantes são sempre os mais felizes, porque para eles se guarda o requinte das carícias.

“Assim sucedeu com os silfos.

“O sol nunca passara de beijos na corola; os perfumes penetraram o seio de suas amadas, encarnaram-se nelas, nenhum mistério lhes foi vedado.

“Mas Deus permitiu que a luz castigasse as flores, e é por isso que, dardejando os raios sobre elas, o sol faz acordar no seu seio os rivais felizes que as abandonam medrosos: ao seu calor evapora-se o perfume.

“É por isso que algumas flores, bem raras, que se conservaram fiéis a seus primeiros amores, que não receberam perfumes em seu seio, têm mais longa vida: as flores sem perfume são de ordinário as que mais duram.

“Ao contrário, quanto mais perfumada é a flor, mais é tênue e menos vive.

“É por isso que as flores ficaram sendo o símbolo das glórias neste mundo, que são vãs, das esperanças que são fugazes, dos sonhos que se não realizam.

“É por isso que, como emblema da duplicidade, elas servem para coroar a fronte dos heróis e enfeitam as vítimas do sacrifício, adornam os altares e as sepulturas, o tálamo e o ataúde.

“Deus podia castigá-las ainda mais, tirando-lhes as cores que lhes dera o sol. Mas, como o seu crime era um crime de amor, quis que elas ficassem sempre belas, e que fosse mais uma prova de que a beleza é vária e ingrata”.

Quando ele acabou de cantar, a sultana passou-lhe os braços em roda do pescoço, e entreabriu nos lábios um sorriso de amorosa censura.

O amante olhou-a um instante, e disse:

— Sabes o que me lembra esse teu sorriso? Lembra-me as flores da cantiga que acabaste de ouvir...

A sultana aproximou mais seu rosto do dele, e entreabrindo novo sorriso, deixou ao mesmo tempo escapar um vagaroso suspiro.

O amante, vencido, foi colhê-lo com um beijo na passagem, dizendo, à meia voz:

—... Mas ah! o perfume de algumas flores dá a felicidade na embriaguez que produz…

Fonte:
Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 27.08.1854.

Cândido Canela (Jardim de Versos)


TROVAS

Dizem que a pinga nos mata
pouco a pouco, lentamente.
Por isso não largo dela
pra não morrer de repente...
- - - - - -

Duas caveiras na mesa,
A de um mendigo e a de um nobre.
Dize agora: tens certeza
qual a do rico e a do pobre?
- - - - - –

Esquecer-te, meu amor?...
Impossível! Não consigo.
– Durante o dia te vejo,
a noite sonho contigo...
- - - - - –

Eu não sou tão pobre assim
como pensa todo mundo.
Tenho um pedaço de terra
de sete palmos de fundo.

Matar é crime na terra,
tu sabes, bem como sei.
Por isto inventou-se a guerra,
que mata dentro da lei...
- - - - - –

Não lamentes tua origem,
teu leito humilde, pequeno,
lembra que o Filho da Virgem
nasceu num berço de feno.
- - - - - –

Não tenho medo da fera
que vive na mata imensa.   
Temo, entretanto, a pantera
que fala, tem alma e pensa.
- - - - - –

Nasci chorando num rancho,
na mata escura e bravia.
Mas hei de morrer cantando
entre os braços de Maria.
- - - - - -

Quantos heróis esquecidos
deste mundo, sem medalhas,
E quantos brasões no peito
de refinados canalhas!…
- - - - - –

Quantos lábios sorridentes
a nos traírem de perto.
E quanto rosto fechado
de coração sempre aberto!
- - - - - -

LÍRICA E HUMOR DO SERTÃO (1952)

Morena, bela, iscuta estes meus versos,
ouve, Cabocla, esta triste canção,
qu'eu iscrivi com a pena da sodade
e com a tinta roxa da paixão.

Inda se alembro da premera vez
qu'eu te incontrei na Igreja da Maiada,
inté pensei qui fosse a Virge Santa
quitava cá imbaxo ajueiada.

E foi ali, Caboca feiticera,
eu ti oiei, vancê tomém me oiou.
E nest'ora ganhei seu coração,
meu coração vancê tomem ganhou.

Nós dois se amemo quatro ano afio,
nesta fazenda, aqui neste Sertão,
inté que um dia de infilicidade
trouxe pra nós triste disilusão.

E como a Pomba Juriti sodosa,
qui o caçadô matou s cumpanhera
varei o mundo a fora sem distino,
quage trint'ano quage a vida intera.

Sufri na Terra grandes disventura,
ai sempre percurando sempre tiisquecê,
mais cada dia e noite qui passava
mais eu quiria vortá pra vancê.

Aqui cheguei, Morena, nesta Terra,
Já tô de vorta, aqui neste Sertão,
véio acabado, fraco e sem dinhêro,
mais tenho novo ainda o coração.

Mais se vancê, Morena, inda quisé,
este caboco véio e sem valia,
abre esta porta e vem me abraçá,
pois eu ti quero mais do quiria.

E ela uviu estes meus versos triste
Esta viola, esta triste canção.
Abriu a porta e veio me abraçá,
e junto ao meu botou seu coração.

Fontes:
– Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Minerva.
Memórias da Poesia Popular

Cândido Canela (1910 - 1993)

Cândido Simões Canela nasceu na cidade de Montes Claros/MG, no dia 22 de agosto de 1910 e faleceu em 07 de março de 1993. Filho de Antônio Canela e de D. Luiza Canela. Ele concluiu o curso primário na Escola Normal no ano de 1929. Atuante na vida política da cidade, foi vereador em diversos mandatos. Cândido tinha uma veia artística forte e era considerado pelo compositor e produtor Téo Azevedo como um dos maiores poetas brasileiros. 

Casado com Laurinda Prates de Souza Canela, com quem teve o filho, também poeta, Reivaldo Simões Canela. Na década de 40, editou o jornal humorístico O Gangorra. Nos anos 50, dirigia e apresentava o programa Alma Cabocla, na ZYD-7, onde também se apresentou com Antônio Rodrigues, com quem formou a dupla caipira Chico Pitomba e Mané Juca. Foi jornalista colaborando por muitos anos na Gazeta do Norte e no Jornal Montes Claros.
 
Em 1978 foi vencedor do 1º Festival Brasileiro da Música Caipira, promovido pela Rádio Record São Paulo, com a música “Temos pinga da saudade”, parceria com Téo Azevedo. Sua música “Saracurinha Três Pontes” foi gravada por Tonico e Tinoco e Pena Branca e Xavantinho. Cândido Canela também foi membro da Academia Montes-clarense de Letras. Ocasionalmente usou também o pseudônimo Chico Pitomba. 

Poeta, jornalista, compositor, radialista e trovador, tabelião em sua cidade natal do do Cartório do 1º Ofício por quase 50 anos. Integrou o teatro amador e era um apaixonado pelo palco. Teve suas obras “Lírica e humor no sertão” e “Rebenta boi” consagradas pelo público.

Fontes:
– Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Minerva.
Prefeitura de Montes Claros. 

Nilto Maciel (Santo Yan)


Zadik Perez odiava Sancho Peretz, desde muitos anos. Ódio mudo, fermentado entre quatro paredes, espumoso, envelhecido à rolha.

Num dia de sol quente, ouviram-se os primeiros resmungos, rangeres de dentes, curtos insultos. E as faíscas dos quatro olhos queimaram alguns curiosos. Nem anoiteceu e toda redondeza dos odientos sabia do pretérito e do presente deles, e até o futuro contava.

Daí por diante, a lenda virou odisseia e mil e uma histórias se enlearam. Os pais de Perez e Peretz se haviam estraçalhado em briga de foice, seus avós comandaram exércitos que se destruíram, seus bisavós arregimentaram bandos, seus mais antigos ancestrais se envolveram em saques, tocaias, covardias, brutos moradores de cavernas, mandíbulas de ferro, garras de gavião, patas cabeludas, grunhidos ferozes, parentes de macacos.

A fama de Zadik e Sancho alcançou longínquas regiões, terras de pastores de feras, caçadores de ovelhas, nunca sequer faladas naquele tão perdido mundo.

Até um tal Yan, de distantes plagas, ouviu a qual novela. Dono de uma cadeia internacional de campos-santos e, nas horas de filantropia, mediador de guerras e intrigas, desceu dos céus, com seu pássaro de prata, na fronteira dos países de Perez e Peretz.

Cuidou antes de instituir no novo mundo o hábito de se enterrarem os mortos em cemitério, em vez de no próprio lugar on­de as almas largavam os corpos. Fez a todos renegarem a antiga lei, chamando-os de bárbaros, em sua língua. Os mortos não podiam viver com os vivos; as águas se contaminavam; a vida cheirava a podre. Predicou e insultou, feito um missionário em danação. E o aplaudiram, reverenciaram, idolatraram. Chamaram-no de Santo Yan, beijaram-lhe os pés, sacrificaram-lhe animais.

A discórdia entre Zadik Perez e Sancho Peretz não devia prosperar. Chamou à sua tenda primeiro Perez e se nomeou juiz de um duelo. Aqui, seu visitante, ali, o rival dele. Discursou sobre a arte de duelar, historiou o duelo, exaltou o romantismo da disputa.

Apesar disso, Zadik não se fez áspero, nem inchou o pei­to nem fechou a mão. E pela primeira vez disse não ao reformador. Preferia não arriscar. Muito mais seguro seria dar morte certa a Sancho. Por trinta sacos de ouro.

Santo Yan negou-se assassino e não recusou nem aceitou a proposta de seu discípulo. Na saída, benzeu-o ternamente. E mandou chamar Sancho.

Renomeou-se juiz de um duelo, fez discurso, contou história, entusiasmou-se. E nem assim o outro largou a brandura e a covardia. Em troca da morte segura de Zadik, ofereceu trinta hectares de terra fértil.

De pronto, o reformador disse sim. Não pelas terras, que terras não lhe faltavam, mas por ver em Peretz o justo, o bom, o pacato, e em Perez o brigão, o mau, o injusto.

Abraçaram-se, e Yan saiu em busca de Zadik Perez.

Os trinta sacos de ouro reluziram aos pés do Santo, que sorriu e deu por cumprida sua parte no pacto firmado com Sancho Peretz.

Fonte:
Nilto Maciel. Punhalzinho Cravado de Ódio, contos. Secretaria da Cultura do Ceará, 1986.