sábado, 10 de agosto de 2019

Francisca Júlia (A Inveja)


Havia um homem, extremamente invejoso, que não tinha conseguido ainda arranjar fortuna, apesar dos esforços que fazia, do trabalho diário e das economias.

Este homem, desde que ficou só no mundo, sem o amparo de seus pais, que tinham morrido, entregou-se ao trabalho; mas como nunca foi honesto e empreendia tudo com má fé e malícia, não pode prosperar, de modo que todos, que deviam auxiliá-lo, evitavam-no e negavam-lhe apoio.

Seu principal defeito era a inveja.

Invejava a felicidade de todos, e a todos desejava mal. Se o seu amigo prosperava, cercava-o de pequenas intrigas, maculava-lhe a reputação até vê-lo empobrecer.

Um dia, cansado dos sofrimentos e humilhações por que tinha passado até então, revoltado contra a sorte que lhe era tão adversa, mudou de terra para recomeçar a vida. Empregou-se na casa de um rico moleiro.

Sua ocupação era pastorear as ovelhas, tomar conta do celeiro à noite, evitando a voracidade dos ratos que tudo destruíam. Trabalho suave esse, que lhe rendia algum dinheiro e um tratamento relativamente bom, porque o seu patrão era generoso. Assim viveu ele por muitos dias, feliz, alimentando-se bem e fazendo as economias a que estava habituado.

A inveja, porém, começou a dominai-o de novo, a envenenar-lhe a alma, obrigando-o a revoltar-se contra a crescente prosperidade do seu amo. À noite, fechado em seu quarto, retorcia-se no leito, espumava de raiva, fantasiava altercações com o moleiro, dirigia-lhe impropérios e a inveja ia-o tornando mau cada vez mais.

Daí em diante, já se não importava com o trato das ovelhas, deixando que se desgarrassem do rebanho ou que morressem de peste por falta de cuidados. Agitava a água da azenha, tornando-a suja. Abria a porta do celeiro para dar estrada aos ratos.

Tudo isso ele fazia no intuito de empobrecer o moleiro, fazendo-lhe esses males, causando-lhe prejuízos diários. Mas o proprietário, que já tinha percebido os maus sentimentos do seu empregado, e observado a sua inveja, chamou-o à sua presença e falou-lhe duramente:

— Tu és um mau homem; a princípio conseguiste iludir-me com tua falsa solicitude, com teu fingido amor ao trabalho; agora te conheço melhor, porque de uns tempos a esta parte tenho observado a baixeza de tua alma e a inveja de que está penetrada. De hoje em diante ficas dispensado do serviço da minha casa. Vai com Deus.

E despediu-o, depois de lhe haver pago o que lhe devia, dado alguma roupa e conselhos úteis de moral.

O nosso homem saiu, de cabeça baixa, coberto de vergonha e humilhação.

E jurou vingar-se.

A noite tinha caído de todo. Não havia uma estrela no céu. Tudo era propicio para a realização dos seus desígnios criminosos.

Armou-se de um punhal e encaminhou-se para a casa do moleiro.

Tudo, porém, estava fechado, e ele receava acordar os cães, que eram bravos.

Então, mudando de estratégia, resolveu vingar-se de outro modo: quebrar a roda do moinho.

E partiu, pé ante pé, de cócoras, para confundir-se com o mato e aproximou-se do moinho para quebrar-lhe a roda. Como era dotado de muita força, agarrou num dos raios, suspendeu-se, e, com o auxilio dos pés, pensou quebrar um por um todos os raios; estava nesta posição quando um grosso jato d'água se desprende de cima, apanha a roda, fá-la virar impetuosamente, e mata o desgraçado sem lhe dar tempo de gritar por socorro.

No outro dia, quando o moleiro soube do ocorrido, ergueu as mãos ao céu e rogou a Deus repouso para a alma daquele infeliz.

Fonte:
Francisca Júlia. Livro da Infância. Revisão ortográfica: Iba Mendes.

Luiz Damo (Trovas do Sul) I


A amizade pode ser
uma brilhante virtude,
pois ela nos faz crescer
num mar de solicitude.

As pedras da caminhada
fazem lutar todo o dia,
se soltas, nos valem nada,
juntas, têm grande valia.

Às vezes, nós perdoamos.
E a natureza? Jamais!
Deus perdoa quando erramos
até nos passos finais.

A vida chama a atenção
com perguntas e respostas,
sempre tem a solução,
basta não darmos as costas.

Cada momento vivido
se traduz numa vitória,
que sempre será relido
dentre as páginas da história.

Desde o primeiro momento
até os instantes finais,
seja a vida um testamento
só de amor, morte jamais.

É de um gesto pequenino
que a mudança resultou,
maior, somente o divino,
quando este mundo criou.

Enquanto puder andar
pelas estradas sem fim,
possa Deus se apoderar
do vazio dentro de mim.

Fazer tudo não consigo
para o mundo melhorar,
ó Senhor, conte comigo,
pois contigo vou contar.

Nem sempre a dor tem ferida,
às vezes, vem da saudade,
quem nunca a sentiu na vida
jamais amou de verdade.

Nenhuma planta pereça
sem perfumar os caminhos,
nem antes que amadureça
o menor dos seus frutinhos!

Nenhum tempo poderá
ser melhor do que o presente,
o que foi, não voltará,
e o vindouro está pendente.

Ninguém se sinta traído
por qualquer adversidade,
nem veja diminuído
o leque da dignidade.

O pranto rola no rosto
deixando transparecer,
duras marcas do desgosto
qual sequioso entardecer.

O sol fica entusiasmado
vendo a terra transbordar,
de luz, embora nublado
o dia se apresentar.

Perde-se tempo chorando
na esperança de ganhar,
no entanto, se cresce quando
no pranto se aprende a amar.

Se as escarpas ou espinhos
todos forem superados,
iremos pelos caminhos
com passos acelerados.

Sem temer dicotomias
que repelem nosso ser,
lutamos todos os dias
para a batalha vencer.

Tantas flores perfumadas
servem para embelezar,
ornamentam as estradas
por onde vamos passar.

Todo aquele que trabalha
pode ser um vencedor,
vencendo qualquer batalha
é mais que trabalhador.

Fonte:
Livro enviado pelo autor.
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Carolina Ramos (A História de Amélinha)


Não! Esta não é, absolutamente, um história autobiográfica. Convenhamos, logo de início, que o simples fato de ter sido escrita por uma mulher, não dá direito, a qualquer, de encostá-la na vida da autora. Uns esbarrõezinhos, vá lá, até que são permitidos. Que no âmago de toda mulher, há sempre uma Amélia em potencial, pronta a assumir o seu lugar. E se não a estrangulam, se não abafam os seus impulsos, a própria vida acaba por facilitar-lhe a ascensão. E depois que ela assume o posto, ninguém mais a tira de lá!

Mas, vamos à história de Amélinha, sem mais preâmbulos, nem delongas. Começa com um desejo:

Maria Amélia, Amélinha, para os íntimos, queria ficar doente! Isso mesmo. Queria ficar doente! Só! Desde pequenina, quando contrariada, acudia-lhe sempre esse mesmo desejo. Queria adoecer, ficar bem doente! Morrer, até! Para que o pai, a mãe, a professora ou quem fosse, tivessem pena dela e se roessem de remorsos, por não lhe terem dado atenção ou satisfeito seus insignificantes caprichos de menina.

Agora, mulher madura, o desejo continuava o mesmo. As razões, claro, eram bem outras. Assoberbada de trabalho, em suas lutas domésticas, sem férias nem feriados, ainda queria ficar doente, mas, para poder descansar. Para ter o direito, sagrado, de relaxar o corpo, sempre tenso, um pouquinho que fosse!

Trezentos e sessenta e cinco dias, ano após ano, de faina ininterrupta, criando filhos, cuidando do esposo, da casa, etc. etc, faziam-na, para todos, mãe e esposa exemplar! Mulher nota 10!

Ajudantes, nem pensar! No meteórico passar por sua vida, só lhe haviam trazido dores de cabeça. A última até lhe roubara as joias modestas, de pouco valor, mas, de um preço estimativo sem tamanho! As correntinhas partidas, as medalhinhas mastigadas pelos dentes afiados da primeira dentição, até os reloginhos que haviam tiquetaqueado no seu pulso, em diferentes etapas, marcando a pulsação das horas mais emotivas, tudo fora levado, sem volta! Desgosto dos maiores!

Amélinha era pródiga em dar. Mas, não admitia que lhe tirassem um só alfinete! Indignada, decidira-se: — Ninguém mais entraria pela sua porta, sob pretexto algum, com
intenção de enganá-la!

Reunira forças, enchera os pulmões, lançara-se à batalha, de vida ou morte, para sustentar como mulher, a nota dez! Difícil! Cada vez mais difícil, mas, seguia no posto.

Findava dezembro e dizia com satisfação: — Sobrevivi!

Entrava janeiro, e puxava novamente o fôlego, arregaçando as mangas, quando as tinha, dispondo-se a enfrentar a sobrecarga de mais doze novos meses. Sentia o fôlego cada vez mais curto e o peso do trabalho crescer, alarmantemente, para braços que se enfraqueciam.

Valiam-lhe as máquinas. Bendita tecnologia que fazia de cada uma delas autêntico Cyrineu, a aliviar ombros frágeis, domesticados! Na verdade, elas mesmas, as máquinas, eram facas de dois gumes. Dispensavam ajuda de outras mãos, somando tarefas a serem desempenhadas, até a estafa total, por legiões de donas de casa sobrecarregadas, que ainda se orgulhavam de as possuir! Certo, que sem elas, seria bem pior!

Amélinha olhava o tanque cheio de roupa, com desânimo infinito! A máquina de lavar, comprada com tanto sacrifício e já com boa folha de serviços prestados, resolvera não cooperar. O velho e escravizante lesco-lesco a esperava, desgastante e execrado por tantas e tantas Amélias, em todo os tempos! Mais essa!

Maria Amélia, Amélinha, para os mais chegados, demorou-se na auto-análise: — Por que trabalhava tanto?! Talvez, influência do nome, estigmatizado pelo cancioneiro popular. Arrancou do peito um suspiro profundo, O nome era bonito, mas, por via das dúvidas, não o passara a nenhuma das filhas.

Queria ficar doente! Isto, sim, é o que queria!

Nada de grave, não. Uma doençazinha de nada, passageira, que levasse o caçula a receber o pai à hora do almoço, dizendo;

— A mãe tá dodói... tá deitada, tadinha!

Doce ilusão! Em troca, esperava pelo beijo convencional do marido e a frase de todos os dias:

— A boia tá pronta? Tô com uma pressa danada!

Era o mesmo que pisar no acelerador, Amélinha esquecia tudo o mais, para abastecer a mesa, cercada de estômagos vazios e olhos ávidos.

Uma gripezinha à-toa seria o bastante. Logo ao primeiro espirro, contudo, contaminava toda a família. Todo o mundo ía para a cama e a sina de Amélinha, implacável, a induzia a continuar de pé, tratando de todo o mundo!

Uma apendicitezinha, sem maiores consequências, também não viria mal. Nem isso conseguia! Até as amígdalas estavam firmes no posto, sem alarmes maiores que simples rouquidões passageiras.

A memória guardava apenas os surtos infantis de catapora, sarampo, coqueluche, etc. Depois disso, nada mais lembrava que pudesse contrabalançar com a pedreira do marido, sempre ativa, e que, periodicamente lhe rendia alguns dias de repouso, espécie de gestação, até que o rim, aos berros, decidisse dar à luz a mais um precioso cálculo; guardado em vidrinho, numa gaveta, e de lá só saído para ser exibido aos amigos, com a satisfação de pai, que apresenta o filho à sociedade.

Vez ou outra, uma enxaqueca brava ameaçava derrubar Amélinha. O tempo breve que a prendia ao leito, no entanto, era tão cruciante, que nem dava gosto! A enxaqueca maltratava demais! Não valia a pena! Depois... as obrigações acumuladas exigiam o dobro do trabalho!

Não havia jeito. Amélinha morreria de pé! Seu único mal era, na verdade este: — estava doente de vontade de ficar doente!

Tinha pronta até a maleta, arrumada com carinho, com duas camisolas sem uso, com rendas nas mangas e no decote. Neste, a agulha pudica acrescentara alguns pontos, para quebrar a ousadia. Que, ao marido, apenas, cabiam maiores abrangências. Um "pegnoir" rosa, os chinelinhos da mesma cor, acetinados, escova de dentes, pasta sabonete e talco, trocados, de tempo em tempo, por perderem o perfume, compunham a pequena bagagem.

Queria ir bem bonita para o hospital, para ser atendida por um médico de roupa toda branca, de boas maneiras e voz mansa. Em suma, causar boa impressão! Não esqueceu, por isso, a bolsinha plástica, fechada a zíper, portadora de "rouge", batom e outros acessórios indispensáveis à maquiagem. Não admitia ser uma doente feia e amarela!

Por ocasião do nascimento do primeiro filho, pensara chegada a hora da glória! Dera um "chega pra lá" ao conteúdo da maleta, para acomodar o enxovalzinho do neném. E, deliciada, aguardara com ansiedade a corrida para o hospital, o que, ainda daquela vez, acabou por não acontecer!

Dona Marta, "aparadeira" da vizinhança, e cujos zelos Amélinha desdenhava, no firme propósito de que jamais os solicitaria, teve de ser chamada às pressas, madrugada adentro, que o menino tinha pressa, ainda maior, em chegar!

Assim, a pausa repousante e tão desejada, foi adiada indefinidamente!... Na tarde daquele mesmo dia, a moça lavava fraldas do pequenino chorão que, em clarinadas sonoras, valentemente conquistava espaço nas vinte quatro horas, laboriosas, da mãe!

Os outros filhos, invariavelmente, seguiram os mesmos cômodos moldes. Dona Marta, instalada no bairro, era sempre a solução mais fácil e, por que não dizer?, mais econômica. Seus favores não podiam ser preteridos a troco de nada.

E foi assim que Amélinha acumulou cansaços numa faixa etária que se estendia dos dezoito aos sessenta e dois anos.

A dorzinha boba, que de quando em vez lhe cutucava o peito, nem chegava a impressionar.

Amélinha morreria de pé! Não sabia como, nem onde e nem quando. Apenas, sabia que seria assim!

Quando a encontraram, naquela tarde fatídica, estava na cozinha, já fria, cor de cera, tendo à frente a costumeira pilha de panelas e pratos, devidamente ensaboados.

O corpo rijo, tombado para a frente; a cabeça mergulhada na pia, lembrando um triste L invertido.

Tombara em pleno campo de batalha! Em combate! Soldado anônimo, sem qualquer condecoração!

Morrera de pé!

... E, Amélinha, que trabalhara tanto para tanta gente, acabou por dar enorme trabalho para todos, porque... nem morta, conseguiram deitá-la!!!

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

Christa Wolf (Associações em azul)


Quem gritou de alegria quando a cor azul nasceu?
Pablo Neruda


Pablo, o senhor faz perguntas estranhas. O azul? Nasceu? Mas ele não estava aqui desde sempre? Como o azul do céu sobre a paisagem da infância? Como o azul mais imortal que existe? Lá fora, se estende o mais belo céu azul e você aqui dentro debruçada sobre seu livro. Ainda vai tornar-se uma sabichona reprimida e etérea e não conseguirá depois homem nenhum.

O azul escreve histórias.

O amigo de Annemarie quer ir buscar para ela o azul do céu, ele disse. Vou trazer para você o azul do céu. Ah, deuzinho querido. Isto alguém diz apenas assim, à toa. Mas lhe é fiel, ela diz. Quem acredita. Ela é loura, por isso usamos azul, diz seu namorado. Azul, azul, azul, azuis são todas as minhas roupas. Azul é a cor da fidelidade. Mas sapatos vermelhos, até deu-lhe de presente, recentemente. Vermelho e azul anil decoram o pernil da leitoa. E Kasper, sua patroa. Bem que ele gosta de gazetear, seu namorado, papo pro ar azul. Hoje azul e amanhã e depois de amanhã outra vez. Segunda-feira azul. Ora, você vê. Segunda azul, terça fome, isto a gente conhece. E agora, mentavelmente, ele cambaleia lá fora na praça e a isso canta: azul da centáurea é o céu sobre o Reno deslumbrante. Totalmente azul, o ser humano. Também nenhum adepto da Cruz Azul o socorre mais. Azul da centáurea são os olhos das mulheres quando bebem vinho. Isto você pode dizer bem alto. Outro dia ele a espancou até que ficasse verde e azul. Bem, você vê. Daí seu irmão disse, agora porém ele pode levar a sua e experimentar suas próprias estrelinhas azuis, e, com uma bela surra, azulou-o devidamente. Ele mais uma vez escapou de uma pior com um olho azul. Bonito e bom. Mas agora, tomara. Annemarie não vai mais se deixar enganar por ele e cair nessa do perfume azul. Tão ingênua, só vendo imaculado azul, decerto ela não pode ser.

Viemos da montanha azul, tesouro, ah, tesouro, estás tão distante daqui. Nosso professor é tão burro quanto nós, cantávamos. O dia está lindo, o céu é azul, senhor professor, queremos sair para passear. Querem mesmo ganhar uma carta azul? Ou o quê!? Melhor que observem bem as cores do arco-íris: vermelho laranja amarelo verde azul índigo violeta. VLAVAIV. Ou preferem novamente escutar apenas alguma coisa sobre a guerra, quando as balas azuis voaram à volta das orelhas dos nossos? Em marcha de passos uniformes. Uma canção. Os dragões azuis. Cavalgando num brinquedo tilintante, eles atravessam o portão.

Não podem ao menos uma vez cantar algo bonito? Danúbio azul, tão azul, tão azul. Esta foi a primeira valsa que dancei com Hans. Sim, sim. Sempre o mesmo. Terminou mal com seu marinheiro azul. Grete não se conforma. Um marinheiro azul, que navega ao redor do mundo. Ele amava uma garota e não tinha nenhum dinheiro ou fundos. A garota enrubesceu e quem era o culpado? O marinheiro azul na loucura do amor desvairado. É o tipo de coisa que pode acabar em fiasco. Precisamente, a mulher X teve de ser removida na ambulância com luz azul. Ácido cianídrico azul, digo apenas. Já tinha os lábios completamente azuis. Neste caso qualquer socorro chega tarde demais.

O tipo elegante que ela abandonou ali sentado deve ter tido sangue azul, em todo caso ele disse isso a ela. Rei Barba Azul, a gente conhece bem. "O cavaleiro estrangeiro tinha uma barba inteiramente azul e, diante dele, ela sentia um pavor que, tantas vezes quantas o mirasse, era-lhe sobremodo aterrorizante." Tivesse atentado para seu sentimento. Mas ele a presenteou com uma raposa azul, ela pensou, alguém assim não pode mentir, e com os joelhos trêmulos, assombrada, intimidou-se.

Isto aqui custa ao senhor no entanto um par de lóbulos azuis que, antes de tudo, querem ser merecidos. Se tanto. Para a escrita clara, usamos sempre tinta azul. Mas primeiro fabriquem-me por favor uma pausa azul. Num tal projeto, não se deseja qualquer tiro lançado em vão para o ar azul. Não obstante, alguns atiram no azul e acertam o preto.

Antigamente, tínhamos as canecas de leite cheias de cerejas azuis em duas horas. E, à tarde, o bolo já estava pronto. Carpa azul para o Ano-Novo? Jamais. Carpa ao molho de cerveja, assim é que se faz. E truta azul é algo para gente fina. Azul não é simplesmente uma cor para produtos alimentícios. Mais para flores. Violetas, por exemplo. No prado, curvada sobre si mesma e anônima, havia uma violeta, era uma graciosa violeta. Repolho azul, no sul, como quiser, E licor azul, este sim bem que existe! Curaçao, ou como ele se chame. E queijo que se denomina Blue Master, com mofo dentro, nada para mim. Mas como cultivam batatas e depois podem chamá-las "camundongo azul", isto restará para mim eternamente incompreensível. Algo assim antinatural...

Azul, Pablo, é a cor da saudade. Isto o que o senhor quis dizer. A primavera deixa sua fita azul outra vez tremular através dos ares. As colinas azuis na distância azul. Sobre tão azuis horizontes. Bandeiras azuis a caminho de Berlim. Azul-da-prússia, azul-berlim, importante pigmento azul, extraído do sulfato de ferro e do ferrocianeto de potássio amarelo. Como fino traço sobre porcelana. O azul cobalto profundo dos vasos de vidro, tigelas e cinzeiros, cor predileta. Toalhas de mesa com estampa impressa em azul, antiga padronagem. Técnica que se extingue.

Uma vez na vida estar no Adriático azul. Ó céu, radiante azul. A borboleta azul, que esvoaça à nossa frente. O pássaro azul da artista Liessner-BIomberg sobre a cortina de boca, para o cabaré dos emigrados russos, na Berlim dos anos 20. O cavaleiro azul de Kandinsky. A torre dos cavalos azuis de Franz Marcs. A fase azul de Picasso.

A hora azul entre dia e sonho. Azul noite. Azul dos pombos. A luz azul da fonte do conto de fadas dos irmãos Grimm, a qual não apenas proporciona satisfação ao bravo soldado tratado com injustiça, quando ele acende seu cachimbo, mas traz para ele o reino completo com a filha do rei. De outra forma não pode ser.

A divisão azul do general Franco na Guerra Civil Espanhola. A bandeira da Europa em azul. E os pacotinhos de produtos alimentícios que os americanos lançam no Afeganistão, ultimamente em azul, não mais em amarelo, para que eles os distingam das bombas de aspersão amarelas, que eles também atiram.

A flor azul, ao contrário, Pablo, um símbolo do romantismo alemão, uma invenção de Friedrich, conde de Hardenberg, chamado Novalis. Cujo herói de romance, Heinrich von Ofterdingen, a encontra em sonho, "uma grande flor de azul luminoso, que logo de início achava-se ali na fonte e o tocou com suas folhas largas e brilhantes... Ele observou-a longamente com indizível ternura e nada mais via além da flor azul". E ele segue sua imagem encantadora e ideal e vê nela "uma proteção contra a mesmice e a vulgaridade da vida", um feitiço contra a monotonia do mundo terreno.

Mas quem gritou de alegria quando o azul nasceu? Em quem o senhor pensava, Pablo? Agora eu sei; foram os extraterrestres que gritaram de alegria ao ver como a Terra, o planeta azul, nascia,

(Traduzido do alemão por Laura Barreto)

Fonte:
Nadine Gordimer (org.). Contando histórias. SP: Companhia das Letras, 2007.

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

José do Patrocínio Filho (O homem que fora rei)


O filho do homem em guerra parte
Por um diadema de ouro fino;
Longe transmuta seu estandarte:
Quem é que o segue em seu destino?
(Canção Marcial)

Assim cantarolava Saggar-Shand, por graça de Knef-Marajá de Bikanír, no coração da Índia, e cuja estirpe já ocupava um trono, bem antes de Jesus Cristo vir ao mundo, redimir os pecados dos homens...

Assim cantarolava Saggar-Shand, na sombra da prisão de Reading, limpando com uma vassourinha de piaçaba o W,C, do segundo andar!

Com o instintivo e crudelíssimo humorismo britânico, os guardas sempre escolhiam aquele príncipe para os serviços vis e nauseabundos. De sorte que o antigo e opulento monarca passava os dias desentupindo canos gordurosos, desencardindo fossas sanitárias, ou carregando estrume para adubar a horta, em que fora transformado um grande pátio da cadeia.

Já havia cinco anos que Sua Alteza estava presa. Estivera em Wandswordt, em Brixton e viera enfim - como dizíamos - criar mofo em Reading. Era um homem de trinta e tantos anos, meão de altura, seco de carnes, os ombros largos, de uma elegância natural que denotava um longo apuro de raça. A cor baça da pele acentuava a energia dos traços fisionômicos, e a altura da sua fronte, oculta em parte nas dobras do turbante de seda enxovalhada, parecia, de fato, predestinada ao aro de uma coroa.

Bikanir - não obstante a absorção britânica no império hindu - era uma cidade maravilhosa, que, defendida pelos áridos areais de um deserto, conseguira conservar uma efetiva autonomia. Embora relativamente próxima dos territórios avassalados pela rainha dos mares, seus soberanos gozavam de uma independência quase idêntica a do emir de Cabul, que a mantém em guerras incessantes, nas fronteiras longínquas e selvagens do Afeganistão. Nenhum residente inglês fazia sombra á autoridade real do marajá de Bikanir, porque sempre fora impossível aos canhões de Armstrong transpor a alva região misteriosa, onde o caminho, às vezes, se transvia entre as areias movediças, que tragam homens e animais como os pântanos e os mares. De sorte que Saggar-Shand reinava mesmo, sob a divina proteção de Brahma, no seu palácio, incrustado de nácar, de faianças, de ouro e de marfim.

Lá se asilavam os patriotas ou os mercadores hindus enriquecidos, que as autoridades britânicas perseguiam, no afã contínuo de anular aquelas multidões milenares, para melhor escravizá-las, E assim, ai se concentravam a fortuna e a força intelectual da velha Índia, genuína e insondável.

Em vão, pela violência ou a corrupção, tinha o dominador tentado submeter Bikanir à vassalagem dos outros principados. A velha dinastia resistira e resistia, entrincheirada no areal quase intransponível. Tudo quanto o império britânico obtivera, fora um tratado de aliança em que o seu orgulho se exasperava com o tratamento de igual para igual. Mas foi nesse tratado justamente, que a pérfida Albion encontrou meio de se apossar, por fim, de Bikanir...

Saggar-Shand era um príncipe amoroso. Seu excelente coração lembrava, no recuo dos séculos, o de outro príncipe sobrenatural, filho de Maya e Souddohana, que as turbas hoje chamam Buddha. Como nos tempos do divino antepassado, via os homens transviados nos desvarios mais frenéticos, debatendo-se sem uma finalidade redentora, nem um ideal que os aperfeiçoasse, E apesar de nascido entre guerreiros, no esplendor de uma corte oriental, em que fora habituado desde a infância a se sentir acima da humanidade, seu espírito se voltara para as pesquisas metafísicas das relações do ser com o Criador.

Foi estudiosa e austera a sua vida. Debruçado sobre o texto dos vedas, sobre os livros dos persas e dos chins, sobre as páginas do Antigo Testamento, dos Evangelhos e do Alcorão, buscava sem cessar a centelha divina da Verdade. Mas sentia-se só, desamparado, coagido mesmo pela elevada esfera em que nascera, e os preconceitos que o aprisionavam no isolamento hierárquico da sua função de príncipe.

Não lhe bastava mais o convívio restrito dos mestres estrangeiros, que onerosamente fazia vir à sua corte, Queria sentir o choque vivo das ideias, ouvir a enunciação das controvérsias, no ambiente em que desabrocha a cultura moderna. E quando, enfim, subiu ao trono, senhor da sua vontade, chefe absoluto do seu reino, resolveu firmemente ver a Europa, privar com os sábios e com os pensadores, que tanto tempo admirara de longe. Reuniu a durbar (Assembleia deliberativa dos principados hindus) tomando as providências relativas ao governo do Estado em sua ausência, fez negociar a sua permanência incógnita na Inglaterra - e partiu, tão somente acompanhado por Gunga Dass, seu ajudante de ordens, e por seu velho criado Hazar Mir Kan.

No dia em que partiu, todo o seu reino veio trazê-lo à fronteira do areal. Foi uma despedida soleníssima. Defronte ao templo de Hanuman, em cujos pórticos os macacos sagrados cabriolavam e os litúrgicos pavões abriam o leque multicor das caudas - enquanto a velha Maharanéa estava em prece - desfilaram os cavaleiros da sua guarda, homens de velha raça aristocrática, envoltos na alvura imaculada dos mantos de puríssima lã. Vinham os dromedários carregados das bagagens do príncipe, em seguida. Pernaltos, a passes náuticos, passavam como sombras fantasmagóricas. Rolavam os canhões de grande gala, de ouro e prata maciça, tirados por avestruzes. Brancos touros religiosos com os cornos engrinaldados e elefantes cujas presas douradas reluziam ao sol do dia claro e memorável. Um pelotão de címbalos e fifes precedia-o, enfim. E entre estandartes, lábaros e flâmulas, rodeado dos dignatários da corte, vestidos de tela de ouro e cobertos de joias, sobre um enorme elefante da tribo dos Kumeria de Doon, ajaezado de uma rede de fios de ouro, semeada de rubis, safiras e esmeraldas, e com a cabeça ornada de um volumoso ramo de plumas, Saggar-Shand, assentado num vasto coxim de púrpura, passou como um deus, aos olhos maravilhados e pávidos dos sudras e dos párias, prosternados na poeira do caminho.

De longe, o cortejo faiscava ao sol, como uma apoteose - afastando-se num roldão de pompa majestosa. E até o pôr do sol, os regimentos, os batalhões, as baterias do exército aborígene, seguiram-no em continência pela estrada.

Só no dia seguinte regressaram, fatigados, poeirentos, cabisbaixos, como se tivessem acompanhado um funeral...

E Saggar-Shand - já agora fora do seu reino - prosseguia através do areal, onde nem um arbusto se elevava e surgiam ao luar imponderáveis, vagas e brancas formas da miragem...

Viajou. Viu as cidades-entreposto, agora sem um vestígio da índia de outras eras. atulhadas de fardos e barricas, bloqueadas de transatlânticos fumarentos. Viu a infinita vastidão do oceano encontrar-se com o céu, lá no horizonte. E viu o mundo aos poucos transformar-se, em cada porto em que o vapor parava.

A sua alma de apóstolo exultava. Parecia-lhe que nessas terras do ocidente, surgia uma outra humanidade redimida, em que todos os homens nivelados avançavam consciente e livremente para a unitária perfeição do destino!

Desembarcou com júbilo na Inglaterra. Deslumbravam-no as aparências do regime democrático. Sentia-se fraternal e feliz.

De certo, o luxo ocidental de Windsor, nem do castelo em que o hospedavam, podiam impressioná-lo pelo fausto. Mas ele admirou neles a discreta, cômoda sobriedade, tão diversa da pompa dos palácios orientais.

Tudo assim o encantava. Sobretudo as leis que garantiam a liberdade, que a todos os homens asseguravam iguais direitos, sem a intransponível barreira das castas do seu país...

Findava o mês de julho de 1914...

Em agosto, a guerra, súbito, estalou. Uma rajada trágica fustigava as nações delirantes. Ribombava, nas fronteiras da Bélgica, o canhão. A Grã-Bretanha erguia-se indignada contra a felonia cínica da Alemanha: Bethman Holweg dissera que um tratado era um farrapo de papel!

Saggar-Shand foi chamado ao ministério. Lembraram-lhe o tratado de aliança de Bikanir com a Inglaterra, Albion ia entrar em guerra e apelava para todos os seus súditos e para todos os seus aliados E, se podia contar com Bikanir, era mister que o marajá mandasse ordens para que recebessem no seu território instrutores militares ingleses e contingentes do exército britânico, que enquadrariam as tropas indianas para que elas se fossem afazendo e fraternizando com os soldados europeus.

Saggar-Shand assinou a ordem solicitada. Quis voltar - mas convenceram-no de que era inútil, posto que assumiria o supremo comando das suas forças, quando chegassem aos campos de batalha da Europa.

Alguns dias depois, porém, vieram busca-lo, a ele, a Gunga Dass e a Hazar Mir Kan. Meteram-os num automóvel fechado que rolou longa e celeremente. Por fim, parou.

- Que é?

- Estamos à porta do castelo onde esperam Vossa Alteza.

Passada a porta, o automóvel parou de novo.

- Vossa Alteza quer dar-se ao incômodo de saltar?

Saggar-Shand reconheceu então, que estava no pórtico abobadado de uma prisão - a prisão de Wandswordt.

Levaram-no sem explicações ao seu cubículo, ladeado pelos de Gunga Dass e Hazar Mir Kan...

Olhou; diante de si, os varões de ferro da janela alinhavam-se sobre o fundo azul do céu. Sentia que na penumbra da masmorra, outras criaturas choravam e gemiam, a olhar grades idênticas à sua_ E via muito longe, no fundo da Índia, o leopardo do escudo de Britannia, estrangulando a independência do seu reino,..

Os tratados?

Farrapos de papel…

A sua liberdade?

Mas que pesa a liberdade de um homem, se no outro prato da balança está a ambição e a força de um Império?

Já havia cinco anos que Sua Alteza estava presa, Tudo quanto salvara do naufrágio, fora um colar de pérolas, que sempre conseguira ocultar com a cumplicidade dos guardas. Mas, uma a uma, as pérolas passavam do fio de platina que as prendia para o bolso dos carcereiros... Porque Saggar-Shand lia até tarde e com as pérolas adquiria as velas com que alumiava, clandestinamente, o seu cubículo, depois da hora de apagar a luz.

Nunca desfalecera, nunca teve uma palavra de desânimo ou de raiva. Aceitava com uma altiva resignação os serviços cruéis e humilhantes que lhe ordenavam que fizesse.

Assim me foi contada a sua história.

Era de fato um rei?

São Luiz também esteve prisioneiro, carregado de ferros, no tempo das cruzadas. Foi, porém, entre bárbaros, há mil anos...

Contudo, pela manhã, ao abrir das portas, logo que ele avultava do cubículo, Gunga Dass e Hazar Mir Kan se prosternavam, a maneira oriental, para saudá-lo. Comovidos, no idioma pátrio, lhe chamavam coisas sublimes e monumentais:

- Estrela do Oriente! Guarda excelso da liberdade do teu povo! Filho de Brahma! Forte, entre os reis que são fortes! Salve!

Nisto, um guarda se aproximava, displicente, e batendo com o pé de leve neles, comandava de modo peremptório:

- Pronto! Vão trabalhar... Basta de asneiras!

E Saggar-Shand tomava o balde e a escova, indiferente, e ia lavar de joelhos o ladrilho - pensando em Deus...

Fonte:
José do Patrocínio Filho. A sinistra aventura: reminiscências das prisões inglesas. São Paulo: Labortexto, 2003.

Lima Barreto (Milagre do Natal)


O Bairro do Andaraí é muito triste e muito úmido. As montanhas que enfeitam a nossa cidade, aí tomam maior altura e ainda conservam a densa vegetação que as devia adornar com mais força em tempos idos. O tom plúmbeo das árvores como que enegrece o horizonte e torna triste o arrabalde.

Nas vertentes dessas mesmas montanhas, quando dão para o mar, este quebra a monotonia dó quadro e o sol se espadana mais livremente, obtendo as coisas humanas, minúsculas e mesquinhas, uma garridice e uma alegria que não estão nelas, mas que sê percebem nelas. As tacanhas casas de Botafogo se nos afigura assim; as bombásticas “vilas” de Copacabana, também; mas, no Andaraí, tudo fica esmagado pela alta montanha e sua sombria vegetação.

Era numa rua desse bairro que morava Feliciano Campossolo Nunes, chefe de secção do Tesouro Nacional, ou antes e melhor: subdiretor. A casa era própria e tinha na cimalha este dístico pretensioso: “Vila Sebastiana”. O gosto da fachada, as proporções da casa não precisam ser descritas: todos conhecem um e as outras. Na frente, havia um jardinzinho que se estendia para a esquerda, oitenta centímetros a um metro, além da fachada. Era o vão que correspondia à varanda lateral, quase a correr todo o prédio. Campossolo era um homem grave, ventrudo, calvo, de mãos polpudas e dedos curtos. Não largava a pasta de marroquim em que trazia para a casa os papéis da repartição com o fito de não lê-los; e também o guarda-chuva de castão de ouro e forro de seda. Pesado e de pernas curtas, era com grande dificuldade que ele vencia os dois degraus dos “Minas Gerais” da Light, atrapalhado com semelhantes cangalhas: a pasta e o guarda chuva de ” ouro”. Usava chapéu de coco e cavanhaque.

Morava ali com sua mulher mais a filha solteira e única, a Mariazinha.

A mulher, Dona Sebastiana, que batizara a vila e com cujo dinheiro a fizeram, era mais alta do que ele e não tinha nenhum relevo de fisionomia, senão um artificial, um aposto. Consistia num pequeno pince-nez de aros de ouro, preso, por detrás da orelha, com trancelim de seda. Não nascera com ele, mas era como se tivesse nascido, pois jamais alguém havia visto Dona Sebastiana sem aquele adendo, acavalado no nariz. fosse de dia, fosse de noite. Ela, quando queria olhar alguém ou alguma coisa com jeito e perfeição, erguia bem a cabeça e toda Dona Sebastiana tomava um entono de magistrado severo.

Era baiana, como o marido, e a Única queixa que tinha do Rio cifrava-se em não haver aqui bons temperos para as moquecas, carurus e outras comidas da Bahia, que ela sabia preparar com perfeição, auxiliada pela preta Inácia, que, com eles. viera do Salvador, quando o marido foi transferido para São Sebastião. Se se oferecia portador, mandava-os buscar; e. quando, aqui chegavam e ela preparava uma boa moqueca, esquecia-se de tudo, até que estará muito longe da sua querida cidade de Tomé de Sousa.

Sua filha, a Mariazinha, não era assim e até se esquecera que por lá nascera: cariocara-se inteiramente. Era uma moça de vinte anos, fina de talhe, poucas carnes, mais alta que o pai, entestando com a mãe, bonita e vulgar. O seu traço de beleza eram os seus olhos de topázio com estilhas negras. Nela, não havia nem invento, nem novidade como – as outras.

Eram estes os habitantes da “Vila Sebastiana” , além de um molecote que nunca era o mesmo. De dois em dois meses, por isso ou por aquilo, era substituído por outro, mais claro ou mais escuro, conforme a sorte calhava.

Em certos domingos, o Senhor Campossolo convidava alguns dos seus subordinados a irem almoçar ou jantar com eles. Não era um qualquer. Ele os escolhia com acerto e sabedoria. Tinha uma filha solteira e não podia pôr dentro de casa um qualquer, mesmo que fosse empregado de fazenda.

Aos que mais constantemente convidava, eram os terceiros escriturários Fortunato Guaicuru e Simplício Fontes, os seus braços direitos na secção. Aquele era bacharel em Direito e espécie de seu secretário e consultor em assuntos difíceis; e o último chefe do protocolo da sua seção, cargo de extrema responsabilidade, para que não houvesse extravio de processos e se acoimasse a sua subdiretoria de relaxada e desidiosa. Eram eles dois os seus mais constantes comensais, nos seus bons domingos de efusões familiares. Demais, ele tinha uma filha a casar e era bom que…

Os senhores devem ter verificado que os pais sempre procuram casar as filhas na classe que pertencem: os negociantes com negociantes ou caixeiros; os militares com outros militares; os médicos com outros médicos e assim por diante. Não é de estranhar, portanto, que o chefe Campossolo quisesse casar sua filha com um funcionário público que fosse da sua repartição e até da sua própria seção.

Guaicuru era de Mato Grosso. Tinha um tipo acentuadamente índio. Malares salientes, face curta, rosto largo e duro, bigodes de cerdas de javali, testa fugidia e as pernas um tanto arqueadas. Nomeado para a alfândega de Corumbá, transferira-se para a delegacia fiscal de Goiás. Aí, passou três ou quatro anos, formando-se, na respectiva faculdade de Direito, porque não há cidade do Brasil, capital ou não, em que não haja uma. Obtido o título, passou-se para a Casa da Moeda e, desta repartição, para o Tesouro. Nunca se esquecia de trazer o anel de rubi, à mostra. Era um rapaz forte, de ombros largos e direitos; ao contrário de Simplício que era franzino, peito pouco saliente, pálido, com uns doces e grandes olhos negros e de uma timidez de donzela.

Era carioca e obtivera o seu lugar direitinho, quase sem pistolão e sem nenhuma intromissão de políticos na sua nomeação.

Mais ilustrado, não direi; mas muito mais instruído que Guaicuru, a audácia deste o superava, não no coração de Mariazinha, mas no interesse que tinha a mãe desta no casamento da filha. Na mesa, todas as atenções tinha Dona Sebastiana pelo hipotético bacharel:

– Porque não advoga? perguntou Dona Sebastiana, rindo, com seu quádruplo olhar altaneiro, da filha ao caboclo que, na sua frente e a seu mando, se sentavam juntos.

– Minha senhora, não tenho tempo…

– Como não tem tempo? O Felicianinho consentiria – não é Felicianinho?

Campossolo fazia solenemente :

– Como não, estou sempre disposto a auxiliar a progressividade dos colegas.

Simplício, à esquerda de Dona Sebastiana, olhava distraído para a fruteira e nada dizia. Guaicuru, que não queria dizer que a verdadeira . razão estava em não ser a tal faculdade “reconhecida”, negaceava:

– Os colegas podiam reclamar.

Dona Sebastiana acudia com vivacidade :

– Qual o que . O senhor reclamava, Senhor Simplício?

Ao ouvir o seu nome, o pobre rapaz tirava os olhos da fruteira e perguntava com espanto:

– O que, Dona Sebastiana ?

– O senhor reclamaria se Felicianinho consentisse que o Guaicuru saísse, para ir advogar?

– Não.

E voltava a olhar a fruteira, encontrando-se rapidamente com os olhos de topázio de Mariazinha. Campossolo continuava a comer e Dona Sebastiana insistia:

– Eu, se fosse o senhor ia advogar.

– Não posso. Não é só a repartição que me toma o tempo. Trabalho em um livro de grandes proporções.

Todos se espantaram. Mariazinha olhou Guaicuru; Dona Sebastiana levantou mais a cabeça com pince-nez e tudo; Simplício que, agora, contemplava esse quadro célebre nas salas burguesas, representando uma ave, dependurada pelas pernas e faz pendante com a ceia do Senhor – Simplício, dizia, cravou resolutamente o olhar sobre o colega, e Campossolo perguntou:

– Sobre o que trata?

– Direito administrativo brasileiro.

Campossolo observou:

– Deve ser uma obra de peso.

– Espero.

Simplício continuava espantado, quase estúpido a olhar Guaicuru. Percebendo isto, o mato-grossense apressou-se:

– Você vai ver o plano. Quer ouvi-lo ?

Todos, menos Mariazinha, responderam, quase a um tempo só:

– Quero.

O bacharel de Goiás endireitou o busto curto na cadeira e começou:

– Vou entroncar o nosso Direito administrativo no antigo Direito administrativo português. Há muita gente que pensa que no antigo regime não havia um Direito administrativo. Havia. Vou estudar o mecanismo do Estado nessa época, no que toca a Portugal. V ou ver as funções dos ministros e dos seus subordinados, por intermédio de letra-morta dos alvarás, portarias, cartas régias e mostrarei então como a engrenagem do Estado funcionava; depois, verei como esse curioso Direito público se transformou, ao influxo de concepções liberais; e, como ele transportado para aqui com Dom João VI, se adaptou ao nosso meio, modificando-se aqui ainda, sob o influxo das ideias da Revolução.

Simplício, ouvindo-o falar assim dizia com os seus botões: “Quem teria ensinado isto a ele?”

Guaicuru, porém, continuava:

– Não será uma seca enumeração de datas e de transcrição de alvarás, portarias, etc. Será uma coisa inédita. Será coisa viva.

Por aí, parou e Campossolo com toda a gravidade disse:

– V ai ser uma obra de peso.

– Já tenho editor!

– Quem é? perguntou o Simplício.

– É o Jacinto. Você sabe que vou lá todo o dia, procurar livros a respeito.

– Sei; é a livraria dos advogados, disse Simplício sem querer sorrir.

– Quando pretende publicar a sua obra, doutor? perguntou Dona Sebastiana.

– Queria publicar antes do Natal. porque as promoções serão feitas antes do Natal, mas…

– Então há mesmo promoções antes do Natal, Felicianinho ?

O marido respondeu:

– Creio que sim. O gabinete já pediu as propostas e eu já dei as minhas ao diretor.

– Devias ter-me dito, ralhou-lhe a mulher.

– Essas coisas não se dizem às nossas mulheres; são segredos de Estado, sentenciou Campossolo.

O jantar foi. acabando triste, com essa história de promoções para o Natal.

Dona Sebastiana quis ainda animar a conversa, dirigindo-se ao marido:

– Não queria que me dissesses os nomes, mas pode acontecer que seja o promovido o doutor Fortunato ou… O “Seu” Simplício, e eu estaria prevenida para a uma “festinha”.

Foi pior. A tristeza tornou-se mais densa e quase calados tomaram café.

Levantaram-se todos com o semblante anuviado, exceto a boa Mariazinha, que procurava dar corda à conversa. Na sala de visitas, Simplício ainda pôde olhar mais duas vezes furtivamente os olhos topazinos de Mariazinha, que tinha um sossegado sorriso a banhar-lhe a face toda; e se foi. O colega Fortunato ficou, mas tudo estava tão morno e triste que, em breve, se foi também Guaicuru.

No bonde, Simplício pensava unicamente em duas coisas: no Natal próximo e no “Direito” de Guaicuru. Quando pensava nesta .’ perguntava de si para si: “Quem lhe ensinou aquilo tudo? Guaicuru é absolutamente ignorante” Quando pensava naquilo, implorava: “Ah! Se Nosso Senhor Jesus Cristo quisesse…”

Vieram afinal as promoções. Simplício foi promovido porque era muito mais antigo na classe que Guaicuru. O Ministro não atendera a pistolões nem a títulos de Goiás.

Ninguém foi preterido; mas Guaicuru que tinha em gestação a obra de um outro, ficou furioso sem nada dizer.

Dona Sebastiana deu uma consoada à moda do Norte. Na hora da ceia, Guaicuru, como de hábito, ia sentar-se ao lado de Mariazinha, quando Dona Sebastiana, com pince-nez e cabeça, tudo muito bem erguido, chamou-o:

– Sente-se aqui a meu lado, doutor, aí vai sentar-se o “Seu” Simplício.

Casaram-se dentro de um ano; e, até hoje, depois de um lustro de casados ainda teimam.

Ele diz:

– Foi Nosso Senhor Jesus Cristo que nos casou.

Ela obtempera:

– Foi a promoção.

Fosse uma coisa ou outra, ou ambas, o certo é que se casaram. É um fato. A obra de Guaicuru, porém, é que até hoje não saiu…

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Odenir Follador (Centro Urbano)


          Por vezes arguto, procuro trocar o meio de locomoção habitual, fazendo uso do transporte viário de nossa cidade. E são incontáveis as situações que encontro no dia a dia dos bairros e, até mesmo no centro urbano.

          Certo dia, após desembaraçar-me da condução e da multidão que contumaz toma conta do terminal, e segui pela rua principal, quando me deparei com uma cena pitoresca, daquelas que nos deixam chocados e ao mesmo tempo embevecidos. Eis que estava à minha frente, encostada junto à parede de uma casa comercial, uma “gaiota” – dessas que são usadas pelos catadores de papéis, papelão e afins. Um artefato construído sobre rodas de motocicletas ou similares, cujas grades laterais de arame se elevam, formando um grande caixote, com grandes cabeçalhos para ser conduzida; na qual são acomodados seus pertences e os produtos do trabalho.

          O que me chamou mais a atenção, não foi o artefato em si, e sim, a família que dela se ocupavam: um casal e seus dois filhos; o pai; a mãe e a filha de uns dez anos talvez, portavam vestes rudimentares, e calçavam simples sandálias, apesar do frio cortante daquela manhã de outono.  

          Dentro da gaiota acomodado num espaço improvisado, estava o filho pequenino. Formariam um quadro comum, dentre tantas outras famílias humildes e desvalidas, sequer outro meio de sustentação, não fosse uma questão que passei a arguir: Vi estampado em seus rostos, os traços de cansaço por noites mal dormidas ou muitos outros problemas a serem resolvidos... Doenças, talvez... Mas o que eu via não era tristeza em seus rostos, e sim, uma família que apesar de nada terem de importante, tinham um sorriso especial estampado em seus semblantes! Estavam alegres, brincavam e sorriam o tempo todo.

          Continuando em meu trajeto, não consegui esquecer aquela cena pitoresca, e fiquei a imaginar: quantas famílias tem tudo ao seu alcance: boa educação; escolas particulares; bons empregos; etc. Mas a felicidade irradiante que ali eu vi estampada naquela cena descontraída e maravilhosa, eu tenho certeza, que faz falta em muitas famílias por mais abastadas que sejam.

Fonte:
Crônica enviada pelo autor

Arthur de Azevedo (Cavação)


Naquela manhã o Saldanha estava desesperado: não havia quinze dias que lhe entrara na algibeira, inesperadamente, uma bela nota de quinhentos mil réis, e já não lhe restava um níquel desse dinheiro!

É verdade que ele passou uma semana de patuscadas, uma semana cheia! A inesperada fortuna coincidira com o aniversário natalício de um dos pequenos, o Nhô-nhô, e tinha havido peru de forno e até champanhe à mesa! Que diabo, um dia não são dias!

O semi-conto de réis voou, sem que o imprevidente Saldanha empregasse dez tostões em qualquer coisa útil. A conta da venda – uma conta de cabelos brancos – ficou por pagar, não se comprou um trapinho para as crianças, tão precisadas de roupa!

O dinheiro viera das mãos de certo negociante da rua da Alfândega, que encomendara ao Saldanha uma série de artigos metendo à bulha uma companhia em liquidação, isto é, os respectivos liquidantes. O nosso homem, que tinha dedo para essa espécie de literatura, fez obra asseada: as descomposturas produziram o desejado efeito. O prosador contava com cem mil réis. recebeu quinhentos.

Foi um delírio! O Saldanha subiu radiante a rua do Ouvidor, com cócegas de comprar tudo quanto via exposto nos mostradores das lojas. Parou durante cinco minutos diante de um gramofone. – Que surpresa seria para a pequenada! – Mas resistiu e passou. Foi esse o único movimento bom que teve depois de endinheirado.

E assim vivia o pobre-diabo, desde que, por negligente e ocioso, perdera sucessivamente dezenove empregos e desesperara de obter o vigésimo. Era um boêmio incorrigível, um desgraçado, que chegara aos trinta e oito anos sem uma onça de juízo.

Um dia em que lhe pareceu, e pareceu a todos, que estava definitiva e solidamente arrumado num cartório de tabelião, o Saldanha casou-se com uma pobre moça a quem fazia versos, e não de pé quebrado, porque para esse outro gênero de literatura também não lhe faltavam aptidões.

Tanto assim que, durante muito tempo, viveu quase exclusivamente dos seus Gemidos sonoros, coleção de poesias, cujos dois mil exemplares passou um a um pelos parentes, amigos, conhecidos e desconhecidos, dizendo sempre que fazia aquilo apenas para pagar as despesas de impressão, pois não mercadejava a sua musa.

Depois de esgotada completamente a edição, o Saldanha, frequentador assíduo de todas as lojas de alfarrábios, comprava por baixo preço quantos exemplares, e não eram poucos, apareciam, e vendia-os no bairro comercial, aos negociantes dinheirosos.

O expediente dava o melhor resultado, porque o poeta, frenólogo intuitivo, conhecia pela cara, ou, segundo a sua própria expressão, “pela pinta”, esses mecenas fortuitos, e, além disso, aprendera de cor uma infinidade de lábias para impingir o volume. Ou por esses motivos, ou porque as pessoas a quem se dirigia quisessem se ver livres de um importuno, a colheita era certa.

Note-se que ninguém duvidava da identidade do poeta, porque o seu retrato lá estava, litografado pelo A. de Pinho, e parecidíssimo, na primeira página dos Gemidos sonoros.

Entretanto, esse ardiloso manejo era como o enlevo d’alma da linda Ignês: não podia durar muito. Os volumes, à força de viajar dos primitivos donos para os alfarrabistas, dos alfarrabistas para o Saldanha, do Saldanha para os protetores das letras nacionais, e destes outra vez para os alfarrabistas, ficaram tão ensebados (“fatigados”, como se diz em linguagem bibliográfica), que já não havia meio de lhes dar saída.

Por isso, a mais séria, a mais firme preocupação do industrioso Saldanha era que uma nova edição dos Gemidos fizesse gemer os prelos. Por conta dele, já se sabe, porque não havia editor que se arrojasse à empresa. E essa preocupação de tal modo absorvia, que ele absolutamente não pensava noutra coisa e vivia de expedientes.

Como já ficou dito, naquela manhã o Saldanha estava desesperado. Durante os três últimos dias, ele, a mulher e os quatro filhos tinham-se alimentado com as derradeiras cinco patacas, melancólicos vestígios dos quinhentos mil réis. O homem da venda já lhe não fiava mais nada. A cozinheira abandonara-os.

O autor dos Gemidos sonoros saiu de casa sem um vintém, dizendo: – Vou cavar! – e baixou à cidade a pé. Morava lá para os lados de Estácio de Sá.

Parecia uma fatalidade! Todas as bolsas a que recorreu encontrou implacavelmente fechadas. Já tantas vezes tinham servido.

Não teve coragem de pedir cinco mil réis ao negociante que dias antes remunerara com tanta liberalidade a sua prosa agressiva. Chegou a penetrar no escritório do capitalista, mas limitou-se a comer-lhe o almoço – e comeu-o com remorsos, porque tinha deixado em casa a prole a fazer cruzes na boca.

Sem ser bom pai, pois ninguém pode ser bom pai sem ter juízo, o Saldanha era meigo e carinhoso para os filhos. Pudesse ele e comeriam todos em pratos de ouro. Em se apanhando com dinheiro, corria logo para casa, embora pelo caminho fosse esbanjando algum em companhia dos gaudérios que topava.

Depois do almoço, abundantemente regado por um magnífico virgem “vindo diretamente”, o Saldanha atirou-se de novo ao terrível trabalho de “cavação”. Passaram-se duas, passaram-se três horas, e nada, nada, nada! E os pequenos sem comer!

Ás três e meia, com o cérebro ainda escaldado pelo vinho do almoço, derreado por um calor sufocante, suando por todos os poros, o boêmio sentou-se extenuado nos degraus do chafariz do Largo do Paço, e aí, pela primeira vez na sua vida errante, atravessou-lhe o espírito a ideia nítida da dolorosa situação em que se achava. A miséria apresentou-se diante dos seus olhos com um aspecto até aquele momento estranho à sua percepção moral, e a lembrança do seu inútil passado o oprimiu tanto que as lágrimas lhe saltaram aos olhos.

Passavam, na direção das barcas de Niterói, muitos homens apressados, e o Saldanha notando que raro era aquele que não levava um embrulho enfiado no dedo.

– É para os filhos, pensava; são homens que trabalham, que têm como eu poderia ter, o ordenado certo no fim do mês… Não são ociosos nem boêmios, como eu…

Ideias negras acudiram-lhe em tropel ao cérebro avinhado, produzindo febre. As horas correram sem que ele desse fé, subjugado como estava pelo sofrimento. Numa espécie de delírio, ouvia apenas rumor – o choro dos filhos.

Quando saiu desse torpor, caia a tarde. O lusco-fusco envolvia o mar e os lados da Tijuca estavam coloridos por um crepúsculo de fogo.

As pernas trôpegas, a cabeça pesada, a língua seca, o Saldanha levantou-se com a firme resolução de tomar uma barca e, chegando ao meio da baia, atirar-se ao mar.

– É o melhor que tenho a fazer; a minha gente achará quem a ampare melhor do que eu. Os órfãos mais infelizes são os que têm pai…

Depois dessa reflexão filosófica, ele encaminhou-se para a estação das barcas, e só então se lembrou de que não tinha dinheiro para a passagem; avistou, porém, um sujeito que levava á mesma direção, e dizendo consigo: ‘vou cavar pela última vez”, dirigiu-se ao transeunte com toda a resolução:

– O cavalheiro dispõe de trezentos réis? Não tenho dinheiro comigo, estou doente, e seria para mim um grande transtorno perder esta barca.

O outro mediu-o de alto a baixo, fez uma careta, introduziu dois dedos no bolso do colete, hesitou, arrependeu-se, enfiou a mão na algibeira do casaco, tirou um caderninho de cupons de passagens, destacou um deles, e deu-o ao Saldanha, com uma expressão no rosto em que se lia perfeitamente o seguinte:

“A mim não me enganas tu; com este pedacinho de papel não irás beber.”

O boêmio agradeceu, sorrindo tristemente à ideia de que o tal pedacinho de papel era o seu passaporte para a eternidade.

O sujeito seguiu o seu caminho, e ele ia seguir também quando viu no chão outro pedaço de papel, de maiores dimensões, dobrado em quatro, que lhe pareceu – oh, fortuna – uma nota de banco.

Apanhou-o. Era, efetivamente, uma nota de cem mil réis.

Trêmulo, nervoso, abriu a nota, percorreu-a no verso e no reverso, e, desconfiado de uma alucinação dos sentidos, examinou-a à luz de um lampião aceso naquele instante.

Depois, meteu-a no bolso, e “tocou á toda” para a rua do Ouvidor, lépido,
contente, como se momentos antes não se houvesse representado um drama dentro
de sua alma.

Entrou no Café do Rio, onde ofereceu cerveja a alguns amigos depois, na Confeitaria Pascoal, arranjou um opulento farnel de comes e bebes: frangos assados, empadinhas, doces, vinho do Porto, etc.

Tomou um tílburi no 1argo de são Francisco, e ao chegar perto de casa, ainda na rua, gritou como um possesso:

– Terezinha! Cota! Chiquinha! Nhô-nhô! Eduardinho! aqui estou eu, aqui está papai com um banquete opíparo! Toca a música!

Foi um alvoroço em casa. Era de ver toda aquela criançada a com os olhos ainda vermelhos de tanto chorar.

O Saldanha abriu o embrulho na sala de jantar e, com um ar vitorioso, espalhou a comilança sobre a mesa.

– Mas dize-me: como foi que tu… – ia perguntar a esposa.

– Come! come!, interrompeu o marido; come, depois te contarei. Dá cá dali o saca-rolhas!

E desarrolhando com um estouro alegre a garrafa de vinho do Porto:

– Ah, Terezinha! decididamente sou a criatura mais feliz que o céu cobre!

E durante três dias o Saldanha não “cavou”.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Carolina Ramos (Ao Embalo da Vida)


— Problemas!... Sim, só problemas!...

Enxugou o rosto com o lenço já úmido. O sol do meio dia vinha buscar água no fundo do seu ser.

Sentia-se sugado por força estranha que lhe roubava a calma. Não conseguia concentrar-se. Buscava soluções e elas se embaralhavam, a zombar da sua incapacidade. Tudo começara a passos miúdos, devagarinho. Ao embalo da vida.

De uma hora para outra, complicação geral!

Os negócios iam mal. O salário colocando coisas em prateleiras inacessíveis. Jogara na Bolsa... a Bolsa baixara como represa em tempo de seca! Por que não vendera as ações no tempo certo?! Sabe-se lá porque! Claro que, no fundo, apostara na sorte. Queria melhores cotações. Iam subir, sim... e aguardara. Quando começaram a desabar, confiara na recuperação. Agora, naufrágio à vista! Restava esperar. Esperava. Até quando? Essa a questão! Diabo! Diabo era o cerco das promissórias, cada vez mais apertado! Sempre honrara compromissos. No presente, sentia-se amarrado… - de pés, mãos e mente!

Andava nervoso, implicante... Aí a mola mestra do desentendimento com a mulher. Causa principal. Não justificativa.

Apressou o passo. O comércio fechava as portas. Sábado. Dia de descanso. Sábado azul, prometendo praia domingueira. Nem essa perspectiva o animava. Não fora almoçar em casa. A família deveria sentir-lhe a falta. Melhor! Talvez a ausência o valorizasse um pouco mais, jogando cinzas sobre a ranzinzice. Reconhecia exceder-se, de vez em quando. Mesmo assim, não dava o braço a torcer.

Andara demasiado. Sem destino, perdera-se no labirinto dos próprios conflitos. Começou a sentir cansaço. A sede. A fome. Os primeiros instrumentos de tortura inventados pela natureza e usados em qualquer época, sem serem ultrapassados.

A tarde morria. A brisa arrancou-lhe arrepios. Frio... um frio que vinha de dentro, Maior, bem maior que o de fora. O sol bocejava, perdera a agressividade, estendendo sobre a relva um manto de luz outonal, dourado e morno. Convidativo.

Recortou mentalmente um retalho de sol e embrulhou nele o coração carente e friorento. Sentiu-se melhor. A amostra tentou-o.

Sem ninguém por perto, entendeu-se na relva, deixando que o corpo rolasse sobre si mesmo, como se macio cobertor lhe envolvesse os braços enregelados. Parou, quando finda a inclinação. O azul parecia ainda rodopiar sobre ele. As pálpebras, pesadas, fecharam-se, pouco a pouco. A noite calma do sono antecipou-se àquela outra noite dona dos astros.

Quanto dormiu, nem soube. Não o despertou o cricrilar dos grilos, e, sim, a ponta da bota de um guarda em serviço.

— Ei, cara... vai curtir esse pileque noutro lugar... aqui a barra é pesada!

— Tudo bem, seu guarda. Não bebi, não... estava só descansando um pouco.

Vendo-o sóbrio, o guarda, afastou-se, desinteressado.

Testemunhas discretas da cena, as estrelas piscavam, marotas. A lua, por sua vez, escondeu o sorriso num cachecol de nuvens.

O homem ergueu-se, sacudindo as palhas e os gravetos presos às roupas, Descontraído, tomou o rumo de casa, chutando as pedras do caminho, e, com elas, os problemas que o atormentavam.

Pouco adiante, comprou uma rosa... salvo conduto para a paz.

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XXI


CLASSICISMO
   
Longínquo  descendente dos helenos
pelo espírito claro, a alma panteísta,
- amo a beleza esplêndida de Vênus
com uma alegria singular de artista !

Amo a aventura e o belo, amo a conquista !
Nem receio os traidores e os venenos...
- Trago na alma engastada uma ametista,
- meus olhos de esmeraldas são serenos !

Com os pés na terra tenho o olhar no céu;
a alma, pura e irrequieta como as linfas
soltas no chão; nos lábios, tenho mel...

Meu culto é a liberdade e a vida sã.
E ainda hoje sigo e persigo as ninfas
com a minha flauta mágica de Pã !

CONSELHOS DE AMOR...

Incoerência talvez, mas verdades da Vida,
é um mal, um grande mal, amar-se em demasia,
a mulher que se sente adorada e querida
e é pelo teu amor cercada e protegida
é aquela que terás em teus braços mais fria.

Faz-lhe, mil carícias, sim, mas vez em quando
deixa uma frase vaga e indiferente no ar...
Assim, - ela terá com que ficar pensando,
e enquanto desconfia ou fica te esperando
por tanto te querer, talvez chegue a chorar.

O pranto é a chuvarada que prepara a terra
onde lançaste um dia a semente do amor.
O ciúme é o sol que a flor em pétalas descerra,
e o teu carinho, a aragem que nos ramos erra
e conforta as raízes apagando a dor.

E' a mulher que o exige ... Ela te adora e te ama
se souberes ser bom sendo às vezes cruel.
Não te iludas porém, te arrastará na lama
se a rodeares de luxo e a envolveres na chama
de um extremoso amor constantemente fiel!

Sabe sempre pesar sobre ela o teu domínio
não cedas teu lugar nem por mal nem por bem,
se um dia descobrir que tem força e fascínio
datará deste dia o teu fatal declínio
e verás como o amor se transformou também.

Sé perdulário sempre em teu amor, procura
no entanto não perder de vista os teus carinhos.
O amor que se oferece é amor que pouco dura,
- e que a rosa macia da tua ternura
tenha pétalas... sim... mas também tenha espinhos...

Marca na vida dela o rumo dos teus passos
deixando sempre um traço de altivez, viril.
A mulher quer que o homem caia nos seus braços
quer vê-lo - o coração pulsando, os olhos baços,
tendo a vaga impressão de que ele não caiu!

CONTO PERDULÁRIO

Hei de gastar minha alma – a alma dos poetas
é como a luz do Sol ou como o luar,
deve espalhar-se, para embelezar
e iluminar as sombras mais discretas...

Como as águas que cantam, irrequietas,
deve o silêncio, um pouco, musicar,
ou como a onda que se ergue, - a alma dos poetas
deve de espumas enfeitar o mar!

Cumpro assim o meu destino, e neste bando
de versos, perdulário a vou gastando,
e quanto tenho de alma já nem sei...

E hei de esbanjá-la mais, de instante a instante,
e morto – hão de encontrá-la ainda estuante
nos versos onde a vida a desperdicei !

CORAÇÃO SOLITÁRIO

A noite está fechada na janela aberta.
Uma rua perdeu-se na sombra lá embaixo.
Não existe esta rua - é um beco surrealista
que fugiu de algum quadro louco que não vi.

Ouço meu coração ardente e solitário
com sua música estranha de piano bêbado.
No espelho, meu olhar: duas chamas de estrelas.
Não  sei  se é o vento,  sei que  há  música  na   noite.

Há música no quarto, nas cortinas, música
nos meus cabelos despenteados, nos meus dedos,
no meu rosto, entra e sai pela janela.

Música indefinida a encher a solidão:
- estou no ventre da noite a mexer com os meus sonhos,
ouço o meu coração ardente e solitário.

DESÂNIMO

Apoio as minhas mãos sobre os meus próprios ombros
olho para os meus olhos entulhados de escombros
que a luz em vão escancara,
e grito para mim mesmo, para a minha boca,
com a voz cansada e rouca:

- Para!

Sensação de vazio, de morte, de paz...
Para que seguir mais? Para que seguir mais?

DESCULPA

Me desculpem, amigos, se não consigo sujar o sonho,
torná-lo indecifrável e apocalíptico,
se não consigo lambuzar o símbolo,
se não posso turvar a imaginação.

Me desculpem, amigos, meu jeito é este mesmo de ser poeta,
e a água da minha onda, por mais profundo que seja o mar,
é azul e transparente,
e os peixes tem suas formas, e as algas não tem suas formas,
e as estrelas do mar florescem cinco pontas,
como as palavras que luzem.

Me desculpem, amigos, se venho assim transparente como o  fundo de aquário
num parque para crianças e curiosos,
e se vos ofereço estes velhos símbolos de uma velha e  primitiva poesia
que chegou com os peixes à terra, talvez antes da presença  do homem.

DESEJO ORIENTAL

Quero que sejas assim, sempre nova,
sempre diferente,
lírica e sensual
pecadora e inocente,
- imagem pura do bem,
visão estranha do mal,
- nas "mil e uma noites" do meu desejo
oriental...

Terás então o meu amor
se isto conseguires...
- que o meu desejo é assim: volúvel, multicor,
como o arco-íris…

DESEJOS... NA MANHÃ DE SOL

Na manhã de sol
bela e serena,
depois de um dia de chuva
depois que à noite ventou,
- tive desejos de apanhar aquela mulher morena
que passou . . .

Devia ter na boca rubra
um gosto de uva
um gosto bom de vinho,
e quando ela me olhou,
- pensei na fruta madura que o vento da noite derrubou
à margem do caminho...

Ah! o garoto que fui!  Ah! o garoto que sou!
Na inquietação da minha vida,
nas voltas do meu caminho,
sempre a vontade incontida
de desejar as frutas do quintal vizinho!

Na manhã de sol
bela e serena,
- depois de um dia de chuva,
- ah! o garoto que sou!
tive desejos de apanhar aquela mulher morena
que passou!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 2. SP: Ed. Theor, 1965.

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Carlos Drummond de Andrade (Caso de Recenseamento)


O agente do recenseamento vai bater numa casa de subúrbio longínquo, aonde nunca chegam as notícias.

— Não quero comprar nada.

— Eu não vim vender, minha senhora. Estou fazendo o censo da população e lhe peço o favor de me ajudar.

— Ah, moço, não estou em condições de ajudar ninguém. Tomara eu que Deus me ajude. Com licença, sim?

E fecha-lhe a porta.

Ele bate de novo.

— O senhor, outra vez?! Não lhe disse que não adianta me pedir auxílio?

— A senhora não me entendeu bem, desculpe. Desejo que me auxilie mas é a encher este papel. Não vai pagar nada, não vou lhe tomar nada. Basta responder a umas perguntinhas.

— Não vou responder a perguntinha nenhuma, estou muito ocupada, até logo!

A porta é fechada de novo, de novo o agente obstinado tenta restabelecer o diálogo.

— Sabe de uma coisa? Dê o fora depressa antes que eu chame meu marido!

— Chame sim, minha senhora, eu me explico com ele.

(Só Deus sabe o que irá acontecer. Mas o rapaz tem uma ideia na cabeça: é preciso preencher o questionário, é preciso preencher o questionário, é preciso preencher o questionário.)

— Que é que há? — resmunga o marido, sonolento, descalço e sem camisa, puxado pela mulher.

— É esse camelô aí que não quer deixar a gente sossegada!

— Não sou camelô, meu amigo, sou agente do censo…

— Agente coisa nenhuma, eles inventam uma besteira qualquer, depois empurram a mercadoria! A gente não pode comprar mais nada este mês, Ediraldo!

O marido faz-lhe um gesto para calar-se, enquanto ele estuda o rapaz, suas intenções. O agente explica-lhe tudo com calma, convence-o de que não é nem camelô nem policial nem cobrador de impostos nem emissário de Tenório Cavalcanti. A ideia de recenseamento, pouco a pouco, vai-se instalando naquela casa, penetrando naquele espírito. Não custa atender ao rapaz, que é bonzinho e respeitoso. E como não há despesa nem ameaça de despesa ou incômodo de qualquer ordem, começa a informar, obscuramente orgulhoso de ser objeto — pela primeira vez na vida — da curiosidade do governo.

— O senhor tem filhos, seu Ediraldo?

— Tenho três, sim senhor.

— Pode me dizer a graça deles, por obséquio? Com a idade de cada um?

— Pois não. Tenho o Jorge Independente, de catorze anos; o Miguel Urubatã, de dez; e a Pipoca, de quatro.

— Muito bem, me deixe tomar nota. Jorge… Urubatã… E a Pipoca, como é mesmo o nome dela?

— Nós chamamos ela de Pipoca porque é doida por pipoca.

— Se pudesse me dizer como é que ela foi registrada…

— Isso eu não sei, não me lembro.

E voltando-se para a cozinha:

— Mulher, sabes o nome da Pipoca?

A mulher aparece, confusa.

— Assim de cabeça eu não guardei. Procura o papel na gaveta.

Reviram a gaveta, não acham a certidão de registro civil.

— Só perguntando à madrinha dela, que foi quem inventou o nome. Pra nós ela é Pipoca, tá bom?

— Pois então fica se chamando Pipoca — decide o agente. — Muito obrigado, seu Ediraldo, muito obrigado, minha senhora, disponham!

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Prêmio Literário Gonzaga de Carvalho (Resultado Final)

Realização da Academia de Letras de Teófilo Otoni/MG

Categoria: Poesia

Classificação geral


Primeiro Lugar:
“Chaves e fechadura”
Cláudio Rogério Trindade
Ijuí-RS;

Segundo lugar:
“Desencontro”
Evandro Ferreira
Caucaia-CE

Terceiro lugar:
“Ao Dom Juca-Desrenato...”
João Bosco de Castro
Bom Despacho -MG.

Menções Honrosas:

4º lugar:

“O banquete”
Antonia Aleixo Fernandes
São Paulo-SP;

5º lugar:
“Homofobia”,
Valter Bitencourt Júnior
Salvador-BA;

6º lugar:
“Após Maria da Penha”
Marina Barreiros Mota
Palmas-TO;

7º lugar:
”Aprendizado”
Isabel Cristina Silva Vargas
Pelotas-RS;

8º lugar:
“Divagações”
Cláudio de Almeida Hermínio
Belo Horizonte-MG;

9º lugar:
“Transmutação”
Érika Lourenço Jurandy
Rio de Janeiro-RJ;

10º lugar:
 “Aos lábios de uma rosa”
Fernando Catelan
Mogi das Cruzes-SP;

11º lugar:
“Juju, a Anta sabe sabe”,
Rosilene Alves
Padre Paraíso-MG;

12º lugar:
“Para que serve a saudade?”
José Feldman
Maringá-PR;


13º lugar:
“Caminho amarelo”
Fátima Sampaio
Belo Horizonte-MG;

14º lugar:
“Sou poeta” 
Teresa C.C. M. Azevedo
Campinas-SP; e

15º lugar:

“Chuvas do Sertão”
Walter Luiz Cid do Nascimento
João Dourado-BA.

Categoria: Crônica

Classificação geral


Primeiro Lugar:
“Tempos”
Amalri Nascimento
Rio de Janeiro-RJ;

Segundo lugar:
“Domingos de saudade”
Marina Barreiros Mota
Palmas-TO

Terceiro lugar:
“Renascendo das cinzas”
Paulo Roberto de Oliveira Caruso
Rio de Janeiro-RJ.

Menções Honrosas:

4º lugar:

“Cabo Maninho...”,
João Bosco de Castro
Bom Despacho-MG;

5º lugar:
“Um chafariz de refresco”
Celso Gonzaga Porto
Cachoeiriha-RS;

6º lugar:
Contemplas o mar...”
Juracy Nonato Ferreira
Santa Helena de Minas, MG;

7º lugar:
“Ma Petit Fille (Blonde)
Vânia Rodrigues Calmon
Vila Velha-ES;

8º lugar:
“A política do açougue”
Marcelo de Oliveira Souza
Salvador-BA;

9º lugar:
“O armário do meu quarto”
Caracy Teixeira Bessa
Salvador-BA;

10º lugar:
“Solidão”
Margareth das Dores Rafael Moreira Costa
Itambacuri-MG;

11º lugar:
“Ouse pensar... e contribua com uma sociedade melhor”
Lucivalter Almeida
Nazaré-BA;

12º lugar:
“Boneca de carne”
Carmelita Ribeiro Cunha Dantas
Aparecida de Goiás – GO;

13º lugar:
“Hoje”
Odyla Paiva
Rio de Janeiro-RJ;

14º lugar:
“A cidade vista sob o olhar altruísta”
Odenir Follador
Ponta Grossa-PR e

15º lugar:
“Quantum e a realidade da multiplicidade”
Sílvio Parise
East Providence – EUA

Fonte:
Academia de Letras de Teófilo Otoni

domingo, 4 de agosto de 2019

João do Rio (Emoções)

         
           A Henrique de Vasconcellos.

Ontem, às 6 horas da tarde, fui buscar ao clube da rua do Passeio o velho barão Belfort, que me prometera mostrar, três dias antes, a sua cara coleção de esmaltes árabes. O barão jogava e per­dia com um moço febril, que à lapela trazia um crisântemo amarelo, da cor da sua tez. Ao ver-me, disse amavelmente

— Estamos a jogar. O Osvaldo ganha como um inglês e com a alucinação de um brasileiro. Estou perdendo e apreciando este bom Osvaldo, que ainda tem emoções.

Os seus olhares seguiam, frios e argutos, o jogo do bom Osvaldo, e, a cada cartada, tamborilando os dedos na mesa, Belfort sorria um sorriso mau, entre desconfiado e satisfeito. De repente, porém, as pupilas acenderam-se-lhe. Pôs as duas mãos nervosas na mesa, e perguntou, enquanto mais pálido o moço estacava:

— E tu não jogas?

— Não.

— Fazes bem. Um escritor do tempo de Balzac dizia que o jogo era para a mocidade o veneno da perdição. O veneno! ora vê tu, o veneno!

Sorriu com delicadeza.

— O Osvaldo permite? Vou embora sem mais um real. Até amanhã. E não deixe de tomar água de flor de laranja...

Levantou-se, mirou as unhas brunidas, mirou a gravata, e saiu, deixando o jovem só naquele salão que o pleno verão tornara deserto. Acompanhei-o, não sem olhar para traz. O moço pendia a cabeça na sombra, e assim pálido, com um pálido crisântemo, os seus olhos tinham chispas de susto e de prazer.

Embaixo, no vestiário, o barão deixou que lhe enfiassem o paletó, mandou chamar o coupé[9], e partimos discretamente, sob a tarde luminosa e cor de pérola. Belfort aconchegou-se à almofada de cetim malva, acendeu uma cigarrilha do Egito com o seu monograma em ouro, e, enquanto o carro rodava, indagou:

— Que tal achaste o Osvaldo? É o meu estudo agora. Havia meia hora que me roubava escanda­losamente... Não lhe disse nada. Ainda é possível salva-lo...

— Quer perde-lo? indaguei habituado ás excen­tricidades desse álgido ser.

— Oh! não, quero gozá-lo. Tu sabes, o homem é um animal que gosta. O gosto é que varia. Eu gosto de ver as emoções alheias, não chego a ser o bisbi­lhoteiro das taras do próximo, mas sou o gozador das grandes emoções de em torno. Ver sentir, forçar as paixões, os delírios, os paroxismos sentimentais dos outros é a mais delicada das observações e a mais fina emoção.

— Oh! ser horrível e macabro!

— Seja; horrível, macabro, mas delicado. É por isso que eu não quero perder o Osvaldo, quero apenas gozá-lo. Preciso não limitar a minha ação humana aos passeios pelo Oriente, às coleções autênticas e a alguns deboches nos restaurantes de grão tom. Mas daí a perde-lo, c’est trop fort...

— Pois não imagina o mal que fez ao pobre Osvaldo. O rapaz estava horrivelmente pálido!

— Tal qual como o outro. Que exemplar, meu caro! que caso admirável! Esse pequeno há seis meses odiava o víspora. Hoje tem a voracidade de ganhar, e tamanha que já rouba. Amanhã arde, queima, rebenta numa banca de jogo. Ah! o jogo! É o único instinto de perdição que ainda desencadeia tempestades nos nervos da humanidade. O Osvaldinho é tal qual o outro, o Chinês, a minha última observação.

— O Chinês?

Belfort soprou o fumo da cigarrilha, sorrindo.

— Imagina que vai para um ano fui apresen­tado a um rapaz chamado Praxedes, filho de uma chinesa e de um negociante português em Macau. O homem falava inglês, estava no comércio, e vinha de Xangai, com um carregamento de pote­rias e bronzes por contrabando, para vender. Simpatizei com ele. Era imberbe, ativo, paciente, dizia a cada instante frases amáveis, e casara com uma interessante rapariga, a Clotilde — Clô para os íntimos. Conversou da China, dos boxers, confessou o contrabando e levou-me a vê-lo. Que vida feliz a daquele casal!

O Praxedes saía pela manhã, trabalhava, voltava para o jantar, e não se largava mais de junto da Clô. Não tinha um vício, nunca tivera um vício, era um chinês espantoso, sem dragões e sem vícios! Estudei-o, analisei-o. Nada. Legisla­tivamente moral.

Uma noite em que o convidara para jantar, jogamos. Adivinharia alguém que cratera esperava o momento de rebentar nessa alma tranquila? A senhora, a Clotilde, cantava no meu piano, com voz triste, a ária do suicídio da detestável Gioconda. Eu estava receoso que depois surgissem variações sobre o bailado das Horas. Disse-lhe despreocu­pado 

— “ Quer jogar?” 

— “ Não sei”. 

“É sempre agradável ensinar mesmo o vício”. 

— “ Então en­sine”. 

Pegou das cartas, olhou-as indiferente, mas as minhas palavras ouvia-as desvanecedoramente. Jogamos a primeira partida. Os seus olhos come­çaram a luzir. Jogamos outra. 

— “ Mas isso assim sem dinheiro? Ponhamos dois tostões ”. 

— “ Pois seja ”. 

Perdi. 

“ Redobra-se a parada?” 

— “Oito tostões?” 

— “ Sim”. 

— “ Pois seja” 

À meia noite jogávamos a dez mil réis, e Clotilde, muito cansada, já sem cantar, fazia inúteis esforços para o arrancar à mesa.

Deitei-me sem conclusões, e só no dia seguinte, quando o chinês enleado apareceu pedindo outra partida, é que compreendi o assombro. A paixão estalara, — a paixão voraz, que corrói, escorcha, rebenta... Invejei-o, e, como homem delicado, jo­guei e perdi No outro dia, Praxedes voltou. Levei-o ao clube, à roleta, donde saiu a ganhar pela madru­gada.

Ah! meu caro, que cena! que fina emoção! O jogo, quando empolga, domina e envolve o homem, é o mais belo vício da vida, é o enlouquecedor espetáculo de uma catástrofe sempre iminente, de um abismo em vertigem. O Chinês era patético. Com os dedos trêmulos, assoando-se de vez em quando, os olhos embaciados, quase vítreos, o Pra­xedes rouquejava num estertor silvante que parecia agarrar-se desesperadamente à bola: 27, 15, 2ª dúzia! 27, 15, 2ª dúzia! E a bola corria, e a alma do pobre esfacelava-se na corrida, esforçando-se, puxando-a para o numero desejado, num esforço que o tornava roxo...

Jantei no clube só para não perder algumas horas o interesse desse espetáculo. Também durante três dias e três noites Praxedes não deixou a roleta. Estava pálido, fraco. A gente do clube, vendo-o ganhar, ganhar mesmo uma fortuna, já o tratava de dom Praxedes. Ao cabo de uma semana, entre­tanto, a chance desandou. Praxedes começou a perder bruscamente com gestos de alucinado, espalhando as fichas como quem arranca pedaços da própria carne.

— “Calma, meu caro, dizia-lhe eu “. — “ Impossível! impossível!”, murmurava ele.

Pediu-me dinheiro, dei-o, pediu a outros, deram-­lho. Pediu mais — deixou de ser o dom Praxedes, recebeu recusas brutais. Acabou não voltando mais ao clube. Eu, porém, sentia-o em outros antros, definitivamente preso à sua cruz de horror, à cruz que cada homem tem de carregar na vida...

Certa noite, meses depois, encontrei-o numa batota da rua da Ajuda, com o fato enrugado e a gravata de lado. Correu para mim.

“Foi Deus que o trouxe. Estou farto de peruar. Isto de mirone[1] não me serve. Empreste-me cinquenta mil réis para arrumar tudo no 00. Ah ! está dando hoje escandalo­samente. Faremos uma vaca[16]? Vai dar pela certa.”

Agarrou a nota como um desesperado, precipi­tou-se na roda que cercava o tableau da direita: 

“Tenho aqui cinquentão; esperem!” 

E caiu por cima dos outros, com o braço esticado.

O duble-zero falhou. Ele voltou cínico: 

“ É preciso insistir; deixe ver mais algum. Não dá? Olhe, escute aqui, hipoteco-lhe uma mobília de quarto, serve? ”

Compreendi então a descabida vertigem da­quela queda. Tive pena. Arrastei-o quase à força para a rua, fi-lo contar-me a vida. Estava desem­pregado, abandonara o emprego, vendera o mobiliário, as jóias da Clô, os vestidos, as roupas, mu­dara-se para uma casa menor e alugara a sala da frente. A cábula [2], a má sorte, a guigne perseguiam-no, e, pendido ao meu braço o miserável soluçava: “

 — Havemos de melhorar, empreste-me algum. estou sem níquel !”

Deixei-o sem níquel, mas fui ao outro dia ver a Clotilde, uma flor de beleza, com os olhos verme­lhos de chorar e as roupas já estragadas. Ia sair, arranjar dinheiro... 

— “ E seu marido? ” 

— “ Meu marido está perdido. Anda por aí a jogar. Há dois dias não o vejo; hoje não comi...”

 — “ Aban­done-o! ” 

— “ Abandona-lo eu? E a sociedade, e ele? Que seria dele? ”

 — “ Ora, ele! ” 

— “Ele ama-me, ama-me como dantes. Mas que quer? Veio-lhe a desgraça. Às vezes brigo, mas ele diz­-me: Ai ! Clô, que hei de fazer? É uma força, uma força que me puxa os músculos. Parece que desen­rolaram uma bola de aço dentro de mim, tenho de jogar. E cai em prantos, por aí, tão triste, tão triste que até lhe vou arranjar dinheiro, que saio a pedir...”

É espantoso, pois não? O homem tinha uma bola de aço e a fidelidade da mulher! Só esses seres especiais conseguem coisas tão difíceis!

Um instante o barão calou-se. O coupé rolava pela praia, e a noite, caindo, desdobrava por sobre o mar a talagarça [3] fuliginosa das primeiras sombras.

Respeitei a Clotilde, por sistema, já assustado com as proporções emocionais do marido. Ao outro dia, porém, Praxedes. com sorrisinhos equívocos na face escaveirada: 

“ Esteve com a Clô, hein? Con­servada apesar da desgraça, a minha mulherzinha, pois não?...” 

Recuei assombrado. Aquele homem bom, digno no fundo, aquele homem que amava a mulher, para arranjar dinheiro .com que satisfazer as cartas e a roleta, mercadejava-a aberta, cínica, despejadamente. 

— “Que queres tu? inda­guei áspero, tem vergonha, vai, some-te! ”

— “Eu hipoteco uma mobília. Só quinhentos, só quinhentos!”

Era a alucinação. Corri-o, e esperei ansioso como quem espera o final de uma tragédia, porque tinha a certeza do paroxismo daquele vício. Afinal há de haver seis meses, antes do meu encontro com o Osvaldo, li, na cama, às 3 da manhã, este bilhete desesperado 
“Venha. Praxedes matou-se. Estou sem ninguém. Acuda-me. — Clô”.

Ai ! menino, não sei o que senti. A minha vontade era ver, era saber, era acabar logo. Precipitei-me. Quando cheguei, às voltas com a polícia que queria levar o corpo para o Necrotério, Clotilde, desgre­nhada, com os lábios em sangue, caiu nos meus braços. 

— “ Então, como foi isso? ” 

— “ Sei lá como foi! Tinha que ser! A desgraça! Estava doido. Hipotecou a mobília, os juros eram semanais. Não arranjei dinheiro e o judeu levou-a. Dormi no chão. Ontem não apareceu. Hoje estava eu a dormir quando o senti que caminhava. Risquei o fósforo. Era ele, lívido, embrulhando a casaca do casamento. Não sei o que me deu. 

— “ Onde vais?” 

— “Vou ver se arranjo uns cobres, respondeu. Pre­ciso jogar, sinto uma ânsia, não posso mais.” 

— “Estás doido!” 

— Não estou, Clô, não estou, fez ele arregalando os olhos. Eu fui cruel: olha que se ven­des a casaca ficas sem roupa para o enterro. Ele parou. “ Para o enterro? para o meu enterro? É melhor mesmo, é melhor mesmo, eu não posso mais !” 

E, de repente. desesperado, começou a ba­ter com a cabeça pelas paredes. Praxedes ! Praxe­des ! Não faças isso! Praxedes! Gritei, solucei. Qual! Cada vez arrumava o crânio com mais força de encontro às quinas das portas. O som, ah! esse som como me ensandece! Ainda o ouço ! E ele todo em sangue, todo em sangue... Agar­rei-o. Arrastou-me até à janela, voltou-se, deixou-se cair em cheio com a nuca na sacada, esticou o pescoço desesperadamente e rodou... Oh! o horror! salve-me! salve-me!”

Abri o grupo dos agentes, fui ver Praxedes. Estava cor de cera, com a cabeça fendida e os lábios coagulados de sangue roxo. E o olhar vítreo, a mão recurva, assim, sob a luz da madrugada, pareciam seguir ainda e acompanhar o mal a que o impelira a sua bola de aço.

Esse recorde de emoção desesperada prostrou-me. Nunca vi sentir tão vertiginosamente.

O carro parara. O barão saltou, subiu de vagar as escadas de mármore, enquanto no interior do palacete retiniam campainhas elétricas.

— Preciso sentir vendo os outros sentir, fez mirando-se no alto espelho do vestiário. Só assim tenho emoções. Garanto-te que o Osvaldo acaba como o chinês de Macau, mas por outro meio — com a morfina talvez. Só os chineses morrem às cabeçadas por sentir demais !

E fomos jantar tranquilamente na sua mesa florida de cravos e anêmonas brancas.
__________________________
Notas:
[1] Aquele que observa o jogo, sem dele fazer parte.

[2] Má sorte, caiporismo, azar.

[3] Tecido ralo, por sobre o qual se tece um bordado.
 

 Fonte;
João do Rio. Dentro da Noite.