A Henrique de Vasconcellos.
Ontem, às 6 horas da tarde,
fui buscar ao clube da rua do Passeio o velho barão Belfort, que me prometera
mostrar, três dias antes, a sua cara coleção de esmaltes árabes. O barão jogava
e perdia com um moço febril, que à lapela trazia um crisântemo amarelo, da cor
da sua tez. Ao ver-me, disse amavelmente
— Estamos a jogar. O Osvaldo
ganha como um inglês e com a alucinação de um brasileiro. Estou perdendo e
apreciando este bom Osvaldo, que ainda tem emoções.
Os seus olhares seguiam,
frios e argutos, o jogo do bom Osvaldo, e, a cada cartada, tamborilando os
dedos na mesa, Belfort sorria um sorriso mau, entre desconfiado e satisfeito.
De repente, porém, as pupilas acenderam-se-lhe. Pôs as duas mãos nervosas na
mesa, e perguntou, enquanto mais pálido o moço estacava:
— E tu não jogas?
— Não.
— Fazes bem. Um escritor do
tempo de Balzac dizia que o jogo era para a mocidade o veneno da perdição. O
veneno! ora vê tu, o veneno!
Sorriu com delicadeza.
— O Osvaldo permite? Vou
embora sem mais um real. Até amanhã. E não deixe de tomar água de flor de
laranja...
Levantou-se, mirou as unhas
brunidas, mirou a gravata, e saiu, deixando o jovem só naquele salão que o
pleno verão tornara deserto. Acompanhei-o, não sem olhar para traz. O moço
pendia a cabeça na sombra, e assim pálido, com um pálido crisântemo, os seus
olhos tinham chispas de susto e de prazer.
Embaixo, no vestiário, o
barão deixou que lhe enfiassem o paletó, mandou chamar o coupé[9], e partimos
discretamente, sob a tarde luminosa e cor de pérola. Belfort aconchegou-se à
almofada de cetim malva, acendeu uma cigarrilha do Egito com o seu monograma em
ouro, e, enquanto o carro rodava, indagou:
— Que tal achaste o Osvaldo?
É o meu estudo agora. Havia meia hora que me roubava escandalosamente... Não
lhe disse nada. Ainda é possível salva-lo...
— Quer perde-lo? indaguei
habituado ás excentricidades desse álgido ser.
— Oh! não, quero gozá-lo. Tu
sabes, o homem é um animal que gosta. O gosto é que varia. Eu gosto de ver as
emoções alheias, não chego a ser o bisbilhoteiro das taras do próximo, mas sou
o gozador das grandes emoções de em torno. Ver sentir, forçar as paixões, os
delírios, os paroxismos sentimentais dos outros é a mais delicada das
observações e a mais fina emoção.
— Oh! ser horrível e macabro!
— Seja; horrível, macabro,
mas delicado. É por isso que eu não quero perder o Osvaldo, quero apenas
gozá-lo. Preciso não limitar a minha ação humana aos passeios pelo Oriente, às
coleções autênticas e a alguns deboches nos restaurantes de grão tom. Mas daí a
perde-lo, c’est trop fort...
— Pois não imagina o mal que
fez ao pobre Osvaldo. O rapaz estava horrivelmente pálido!
— Tal qual como o outro. Que
exemplar, meu caro! que caso admirável! Esse pequeno há seis meses odiava o
víspora. Hoje tem a voracidade de ganhar, e tamanha que já rouba. Amanhã
arde, queima, rebenta numa banca de jogo. Ah! o jogo! É o único instinto de
perdição que ainda desencadeia tempestades nos nervos da humanidade. O
Osvaldinho é tal qual o outro, o Chinês, a minha última observação.
— O Chinês?
Belfort soprou o fumo da cigarrilha,
sorrindo.
— Imagina que vai para um ano
fui apresentado a um rapaz chamado Praxedes, filho de uma chinesa e de um
negociante português em Macau. O homem falava inglês, estava no comércio, e
vinha de Xangai, com um carregamento de poterias e bronzes por contrabando,
para vender. Simpatizei com ele. Era imberbe, ativo, paciente, dizia a cada
instante frases amáveis, e casara com uma interessante rapariga, a Clotilde —
Clô para os íntimos. Conversou da China, dos boxers, confessou o contrabando
e levou-me a vê-lo. Que vida feliz a daquele casal!
O Praxedes saía pela manhã,
trabalhava, voltava para o jantar, e não se largava mais de junto da Clô. Não
tinha um vício, nunca tivera um vício, era um chinês espantoso, sem dragões e
sem vícios! Estudei-o, analisei-o. Nada. Legislativamente moral.
Uma noite em que o convidara
para jantar, jogamos. Adivinharia alguém que cratera esperava o momento de
rebentar nessa alma tranquila? A senhora, a Clotilde, cantava no meu piano, com
voz triste, a ária do suicídio da detestável Gioconda. Eu estava receoso que depois
surgissem variações sobre o bailado das Horas. Disse-lhe despreocupado
— “
Quer jogar?”
— “ Não sei”.
“É sempre agradável ensinar mesmo o vício”.
— “
Então ensine”.
Pegou das cartas, olhou-as indiferente, mas as minhas palavras
ouvia-as desvanecedoramente. Jogamos a primeira partida. Os seus olhos
começaram a luzir. Jogamos outra.
— “ Mas isso assim sem dinheiro? Ponhamos
dois tostões ”.
— “ Pois seja ”.
Perdi.
— “ Redobra-se a parada?”
— “Oito
tostões?”
— “ Sim”.
— “ Pois seja”
À meia noite jogávamos a dez mil réis, e
Clotilde, muito cansada, já sem cantar, fazia inúteis esforços para o arrancar
à mesa.
Deitei-me sem conclusões, e
só no dia seguinte, quando o chinês enleado apareceu pedindo outra partida,
é que compreendi o assombro. A paixão estalara, — a paixão voraz, que corrói,
escorcha, rebenta... Invejei-o, e, como homem delicado, joguei e perdi No
outro dia, Praxedes voltou. Levei-o ao clube, à roleta, donde saiu a ganhar
pela madrugada.
Ah! meu caro, que cena! que
fina emoção! O jogo, quando empolga, domina e envolve o homem, é o mais belo
vício da vida, é o enlouquecedor espetáculo de uma catástrofe sempre iminente,
de um abismo em vertigem. O Chinês era patético. Com os dedos trêmulos,
assoando-se de vez em quando, os olhos embaciados, quase vítreos, o Praxedes
rouquejava num estertor silvante que parecia agarrar-se desesperadamente à
bola: 27, 15, 2ª dúzia! 27, 15, 2ª dúzia! E a bola corria, e a alma do pobre
esfacelava-se na corrida, esforçando-se, puxando-a para o numero desejado, num
esforço que o tornava roxo...
Jantei no clube só para não
perder algumas horas o interesse desse espetáculo. Também durante três dias e
três noites Praxedes não deixou a roleta. Estava pálido, fraco. A gente do
clube, vendo-o ganhar, ganhar mesmo uma fortuna, já o tratava de dom Praxedes.
Ao cabo de uma semana, entretanto, a chance desandou. Praxedes começou a
perder bruscamente com gestos de alucinado, espalhando as fichas como quem
arranca pedaços da própria carne.
— “Calma, meu caro, dizia-lhe
eu “. — “ Impossível! impossível!”, murmurava ele.
Pediu-me dinheiro, dei-o, pediu a
outros, deram-lho. Pediu mais — deixou de ser o dom Praxedes, recebeu recusas
brutais. Acabou não voltando mais ao clube. Eu, porém, sentia-o em outros
antros, definitivamente preso à sua cruz de horror, à cruz que cada homem tem
de carregar na vida...
Certa noite, meses depois,
encontrei-o numa batota da rua da Ajuda, com o fato enrugado e a gravata de
lado. Correu para mim.
— “Foi Deus que o trouxe. Estou farto de peruar. Isto
de mirone[1] não me serve. Empreste-me cinquenta mil réis para arrumar tudo no
00. Ah ! está dando hoje escandalosamente. Faremos uma vaca[16]? Vai dar pela
certa.”
Agarrou a nota como um
desesperado, precipitou-se na roda que cercava o tableau da direita:
— “Tenho
aqui cinquentão; esperem!”
E caiu por cima dos outros, com o braço esticado.
O duble-zero falhou. Ele
voltou cínico:
— “ É preciso insistir; deixe ver mais algum. Não dá? Olhe, escute
aqui, hipoteco-lhe uma mobília de quarto, serve? ”
Compreendi então a descabida
vertigem daquela queda. Tive pena. Arrastei-o quase à força para a rua, fi-lo
contar-me a vida. Estava desempregado, abandonara o emprego, vendera o
mobiliário, as jóias da Clô, os vestidos, as roupas, mudara-se para uma casa
menor e alugara a sala da frente. A cábula [2], a má sorte, a guigne
perseguiam-no, e, pendido ao meu braço o miserável soluçava: “
— Havemos de melhorar, empreste-me algum.
estou sem níquel !”
Deixei-o sem níquel, mas fui
ao outro dia ver a Clotilde, uma flor de beleza, com os olhos vermelhos de
chorar e as roupas já estragadas. Ia sair, arranjar dinheiro...
— “ E seu
marido? ”
— “ Meu marido está perdido. Anda por aí a jogar. Há dois dias não o
vejo; hoje não comi...”
— “ Abandone-o! ”
— “ Abandona-lo eu? E a sociedade, e
ele? Que seria dele? ”
— “ Ora, ele! ”
— “Ele ama-me, ama-me como dantes. Mas
que quer? Veio-lhe a desgraça. Às vezes brigo, mas ele diz-me: Ai ! Clô, que
hei de fazer? É uma força, uma força que me puxa os músculos. Parece que
desenrolaram uma bola de aço dentro de mim, tenho de jogar. E cai em prantos,
por aí, tão triste, tão triste que até lhe vou arranjar dinheiro, que saio a
pedir...”
É espantoso, pois não? O
homem tinha uma bola de aço e a fidelidade da mulher! Só esses seres especiais
conseguem coisas tão difíceis!
Um instante o barão calou-se.
O coupé rolava pela praia, e a noite, caindo, desdobrava por sobre o mar a
talagarça [3] fuliginosa das primeiras sombras.
Respeitei a Clotilde, por
sistema, já assustado com as proporções emocionais do marido. Ao outro dia,
porém, Praxedes. com sorrisinhos equívocos na face escaveirada:
— “ Esteve com a
Clô, hein? Conservada apesar da desgraça, a minha mulherzinha, pois não?...”
Recuei assombrado. Aquele homem bom, digno no fundo, aquele homem que amava a
mulher, para arranjar dinheiro .com que satisfazer as cartas e a roleta,
mercadejava-a aberta, cínica, despejadamente.
— “Que queres tu? indaguei
áspero, tem vergonha, vai, some-te! ”
— “Eu hipoteco uma mobília.
Só quinhentos, só quinhentos!”
Era a alucinação. Corri-o, e
esperei ansioso como quem espera o final de uma tragédia, porque tinha a
certeza do paroxismo daquele vício. Afinal há de haver seis meses, antes do meu
encontro com o Osvaldo, li, na cama, às 3 da manhã, este bilhete desesperado
“Venha. Praxedes matou-se. Estou sem ninguém. Acuda-me. — Clô”.
Ai ! menino, não sei o que
senti. A minha vontade era ver, era saber, era acabar logo. Precipitei-me.
Quando cheguei, às voltas com a polícia que queria levar o corpo para o
Necrotério, Clotilde, desgrenhada, com os lábios em sangue, caiu nos meus
braços.
— “ Então, como foi isso? ”
— “ Sei lá como foi! Tinha que ser! A
desgraça! Estava doido. Hipotecou a mobília, os juros eram semanais. Não
arranjei dinheiro e o judeu levou-a. Dormi no chão. Ontem não apareceu. Hoje
estava eu a dormir quando o senti que caminhava. Risquei o fósforo. Era ele,
lívido, embrulhando a casaca do casamento. Não sei o que me deu.
— “ Onde
vais?”
— “Vou ver se arranjo uns cobres, respondeu. Preciso jogar, sinto uma
ânsia, não posso mais.”
— “Estás doido!”
— Não estou, Clô, não estou, fez ele
arregalando os olhos. Eu fui cruel: olha que se vendes a casaca ficas sem
roupa para o enterro. Ele parou. “ Para o enterro? para o meu enterro? É melhor
mesmo, é melhor mesmo, eu não posso mais !”
E, de repente. desesperado, começou
a bater com a cabeça pelas paredes. Praxedes ! Praxedes ! Não faças isso!
Praxedes! Gritei, solucei. Qual! Cada vez arrumava o crânio com mais força de
encontro às quinas das portas. O som, ah! esse som como me ensandece! Ainda o
ouço ! E ele todo em sangue, todo em sangue... Agarrei-o. Arrastou-me até à
janela, voltou-se, deixou-se cair em cheio com a nuca na sacada, esticou o
pescoço desesperadamente e rodou... Oh! o horror! salve-me! salve-me!”
Abri o grupo dos agentes, fui
ver Praxedes. Estava cor de cera, com a cabeça fendida e os lábios coagulados
de sangue roxo. E o olhar vítreo, a mão recurva, assim, sob a luz da madrugada,
pareciam seguir ainda e acompanhar o mal a que o impelira a sua bola de aço.
Esse recorde de emoção
desesperada prostrou-me. Nunca vi sentir tão vertiginosamente.
O carro parara. O barão
saltou, subiu de vagar as escadas de mármore, enquanto no interior do palacete
retiniam campainhas elétricas.
— Preciso sentir vendo os
outros sentir, fez mirando-se no alto espelho do vestiário. Só assim tenho
emoções. Garanto-te que o Osvaldo acaba como o chinês de Macau, mas por outro
meio — com a morfina talvez. Só os chineses morrem às cabeçadas por sentir
demais !
E fomos jantar tranquilamente
na sua mesa florida de cravos e anêmonas brancas.
__________________________
Notas:
[1] Aquele que observa o jogo, sem dele fazer
parte.
[2] Má sorte, caiporismo, azar.
[3] Tecido ralo, por sobre o qual se tece um
bordado.
Fonte;
João do Rio. Dentro da Noite.
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