segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Vicência Jaguaribe (O Castelo do Nunca)


A cabecinha loura brilha ao sol das nove horas. A mãe levara-o à praia, seu programa preferido. Sob protesto, passa-lhe no corpo o protetor solar. “Mãe, isso é nojento! Melequento!” Fecha a cara e começa a cavar um buraco na areia, para construir o que chama de Castelo do Nunca. “- Porque Castelo do Nunca, filho?” “— Porque eu nunca termino ele. A maré sempre vem e derruba ele antes de ficar pronto.”

O menino tem cinco anos e está sentindo a separação dos pais. As vezes, nega-se a sair com o pai, que também não leva muito jeito com criança. Naquela manhã, ele irá pegá-lo na praia e levá-lo a almoçar. A mãe sabe que haverá atrito: o pai não aprova a dieta do filho. E quase sempre a criança volta com fome, porque não consegue comer o que o pai quer que ele coma.

A mãe vira-se e vê que o Castelo está bem adiantado. Olha para o mar e percebe que a maré começa a subir e em poucos minutos destruirá o que o filho fizera com tanto empenho. Ele tem jeito para a coisa. Talvez resolva ser escultor. Mas há também a possibilidade de fazer engenharia ou arquitetura.

Fica observando e sente orgulho quando percebe que aquele montinho de areia molhada vai ganhando, realmente, forma de castelo: a muralha, cercando-o; as torres projetando-se a intervalos regulares; a ponte levadiça delineando-se.

Quando o menino começa a modelar os portões, vem uma pequena onda e derruba uma parte da muralha. Ele deixa escapar um poxa e completa com um chute a obra de destruição que a maré começara, Por que tem de ser assim? Por que a maré não deixa o castelo crescer? Vai ser sempre o Castelo do Nunca? Nunca vai ser terminado? Nunca vai ser enfeitado? Nunca vai ficar pronto para que as pessoas que passam achem ele bonito?

A mãe percebe o desgosto do filho. “– Vamos tomar banho, antes que a maré fique cheia demais. Vamos!” Pega na mão do menino e, cuidadosamente, vai entrando na água. Vê que ele se descontrai e começa a movimentar os braços, fingindo nadar, como sempre faz. Uma onda mais forte derruba-o e leva-o até a areia. Ele levanta-se rindo e pergunta se ela o vira nadando.

Ela olha-o rapidamente e grita que não entre mais. A água está ficando cheia de sargaço. Mas ele ou não ouve a recomendação da mãe ou não lhe dá atenção. Rindo e espadanando a água, vai até o local onde ela luta para desvencilhar-se dos tentáculos que enlaçam suas pernas.

Quando consegue aproximar-se, o menino desequilibra-se e grita. Com muito custo, a mulher levanta-o e o põe nos braços, Dividida entre o filho e os sargaços, ela também acaba desequilibrando-se e deixa a criança cair. Agacha-se e consegue levantá-lo. Tenta sair da água com ele no colo, mas os malditos sargaços apertam cada vez mais seu abraço de sucuri. Uma onda mais forte arranca-lhe o menino dos braços. Num esforço sobre-humano, ela disputa o filho com aquele poder violento e traiçoeiro e vence-o mais uma vez. Está cansada! Exausta! Precisa sair imediatamente da água, que já subira o suficiente para destruir o Castelo do Nunca.

O menino, apavorado, agarra-se a seu pescoço, quase sufocando-a. Mas ela consegue, mesmo manietada pelos sargaços, dar alguns passos cm direção à praia. Outra onda forte, no entanto, arremessa-a no chão e arranca-lhe o filho dos braços, ela rola pela areia, engolindo o líquido salgado, que lhe penetra pela boca, pelo nariz e pelos ouvidos. Com muita dificuldade, consegue ajoelhar-se e procura o menino.

Mergulha... emerge... torna a mergulhar... emerge mais uma vez. A essa altura, alguns banhistas haviam percebido que algo estava errado. Aproximam-se dela, que aponta para o mar e só consegue gritar: “- Meu filho! Meu filho!"

Retiram-na à força de dentro da água. Mas ela luta para voltar. O filho ficou lá. Ela precisa resgatá-lo. Alguns homens mergulham e tentam encontrar o menino. Nada. O mar tragara-o e não se tinha certeza se o regurgitaria. A mãe rola na areia e grita pelo filho. O barulho das águas abafa-lhe a voz. Aquelas águas que atropelaram a vida do seu menino são as mesmas águas que lhe negaram, a ele, o direito e o prazer de terminar o seu castelo. O filho nunca mais poderá brincar de engenheiro ou de escultor. Nunca terá o prazer de concluir o Castelo do Nunca, que nunca mais será instrumento de sua fantasia.

Do outro lado do calçadão, um homem de estatura acima da mediana, de bermuda marrom e camiseta branca, estaciona o carro. Atravessa a rua, sobe o calçadão, desce-o e dirige-se ao ponto combinado com a ex-mulher. É quando percebe uma pequena multidão disposta em círculo. Aproxima-se e abre espaço. O que vê congela-lhe o sangue. Onde está o menino? É da boca de estranhos que recebe a notícia da tragédia. A mulher continua em estado de choque. Desesperado e sem a olhar, ele deixa-a só, com a sua dor, e foge, carregando a sua. Atravessa o calçadão, pega o carro e afasta-se dali.

Fonte:
Vicência Jaguaribe. Ancoragem em porto aberto. Rio de Janeiro: Câmara Brasileira de Jovens Escritores, 2010.

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