quinta-feira, 8 de agosto de 2019

José do Patrocínio Filho (O homem que fora rei)


O filho do homem em guerra parte
Por um diadema de ouro fino;
Longe transmuta seu estandarte:
Quem é que o segue em seu destino?
(Canção Marcial)

Assim cantarolava Saggar-Shand, por graça de Knef-Marajá de Bikanír, no coração da Índia, e cuja estirpe já ocupava um trono, bem antes de Jesus Cristo vir ao mundo, redimir os pecados dos homens...

Assim cantarolava Saggar-Shand, na sombra da prisão de Reading, limpando com uma vassourinha de piaçaba o W,C, do segundo andar!

Com o instintivo e crudelíssimo humorismo britânico, os guardas sempre escolhiam aquele príncipe para os serviços vis e nauseabundos. De sorte que o antigo e opulento monarca passava os dias desentupindo canos gordurosos, desencardindo fossas sanitárias, ou carregando estrume para adubar a horta, em que fora transformado um grande pátio da cadeia.

Já havia cinco anos que Sua Alteza estava presa. Estivera em Wandswordt, em Brixton e viera enfim - como dizíamos - criar mofo em Reading. Era um homem de trinta e tantos anos, meão de altura, seco de carnes, os ombros largos, de uma elegância natural que denotava um longo apuro de raça. A cor baça da pele acentuava a energia dos traços fisionômicos, e a altura da sua fronte, oculta em parte nas dobras do turbante de seda enxovalhada, parecia, de fato, predestinada ao aro de uma coroa.

Bikanir - não obstante a absorção britânica no império hindu - era uma cidade maravilhosa, que, defendida pelos áridos areais de um deserto, conseguira conservar uma efetiva autonomia. Embora relativamente próxima dos territórios avassalados pela rainha dos mares, seus soberanos gozavam de uma independência quase idêntica a do emir de Cabul, que a mantém em guerras incessantes, nas fronteiras longínquas e selvagens do Afeganistão. Nenhum residente inglês fazia sombra á autoridade real do marajá de Bikanir, porque sempre fora impossível aos canhões de Armstrong transpor a alva região misteriosa, onde o caminho, às vezes, se transvia entre as areias movediças, que tragam homens e animais como os pântanos e os mares. De sorte que Saggar-Shand reinava mesmo, sob a divina proteção de Brahma, no seu palácio, incrustado de nácar, de faianças, de ouro e de marfim.

Lá se asilavam os patriotas ou os mercadores hindus enriquecidos, que as autoridades britânicas perseguiam, no afã contínuo de anular aquelas multidões milenares, para melhor escravizá-las, E assim, ai se concentravam a fortuna e a força intelectual da velha Índia, genuína e insondável.

Em vão, pela violência ou a corrupção, tinha o dominador tentado submeter Bikanir à vassalagem dos outros principados. A velha dinastia resistira e resistia, entrincheirada no areal quase intransponível. Tudo quanto o império britânico obtivera, fora um tratado de aliança em que o seu orgulho se exasperava com o tratamento de igual para igual. Mas foi nesse tratado justamente, que a pérfida Albion encontrou meio de se apossar, por fim, de Bikanir...

Saggar-Shand era um príncipe amoroso. Seu excelente coração lembrava, no recuo dos séculos, o de outro príncipe sobrenatural, filho de Maya e Souddohana, que as turbas hoje chamam Buddha. Como nos tempos do divino antepassado, via os homens transviados nos desvarios mais frenéticos, debatendo-se sem uma finalidade redentora, nem um ideal que os aperfeiçoasse, E apesar de nascido entre guerreiros, no esplendor de uma corte oriental, em que fora habituado desde a infância a se sentir acima da humanidade, seu espírito se voltara para as pesquisas metafísicas das relações do ser com o Criador.

Foi estudiosa e austera a sua vida. Debruçado sobre o texto dos vedas, sobre os livros dos persas e dos chins, sobre as páginas do Antigo Testamento, dos Evangelhos e do Alcorão, buscava sem cessar a centelha divina da Verdade. Mas sentia-se só, desamparado, coagido mesmo pela elevada esfera em que nascera, e os preconceitos que o aprisionavam no isolamento hierárquico da sua função de príncipe.

Não lhe bastava mais o convívio restrito dos mestres estrangeiros, que onerosamente fazia vir à sua corte, Queria sentir o choque vivo das ideias, ouvir a enunciação das controvérsias, no ambiente em que desabrocha a cultura moderna. E quando, enfim, subiu ao trono, senhor da sua vontade, chefe absoluto do seu reino, resolveu firmemente ver a Europa, privar com os sábios e com os pensadores, que tanto tempo admirara de longe. Reuniu a durbar (Assembleia deliberativa dos principados hindus) tomando as providências relativas ao governo do Estado em sua ausência, fez negociar a sua permanência incógnita na Inglaterra - e partiu, tão somente acompanhado por Gunga Dass, seu ajudante de ordens, e por seu velho criado Hazar Mir Kan.

No dia em que partiu, todo o seu reino veio trazê-lo à fronteira do areal. Foi uma despedida soleníssima. Defronte ao templo de Hanuman, em cujos pórticos os macacos sagrados cabriolavam e os litúrgicos pavões abriam o leque multicor das caudas - enquanto a velha Maharanéa estava em prece - desfilaram os cavaleiros da sua guarda, homens de velha raça aristocrática, envoltos na alvura imaculada dos mantos de puríssima lã. Vinham os dromedários carregados das bagagens do príncipe, em seguida. Pernaltos, a passes náuticos, passavam como sombras fantasmagóricas. Rolavam os canhões de grande gala, de ouro e prata maciça, tirados por avestruzes. Brancos touros religiosos com os cornos engrinaldados e elefantes cujas presas douradas reluziam ao sol do dia claro e memorável. Um pelotão de címbalos e fifes precedia-o, enfim. E entre estandartes, lábaros e flâmulas, rodeado dos dignatários da corte, vestidos de tela de ouro e cobertos de joias, sobre um enorme elefante da tribo dos Kumeria de Doon, ajaezado de uma rede de fios de ouro, semeada de rubis, safiras e esmeraldas, e com a cabeça ornada de um volumoso ramo de plumas, Saggar-Shand, assentado num vasto coxim de púrpura, passou como um deus, aos olhos maravilhados e pávidos dos sudras e dos párias, prosternados na poeira do caminho.

De longe, o cortejo faiscava ao sol, como uma apoteose - afastando-se num roldão de pompa majestosa. E até o pôr do sol, os regimentos, os batalhões, as baterias do exército aborígene, seguiram-no em continência pela estrada.

Só no dia seguinte regressaram, fatigados, poeirentos, cabisbaixos, como se tivessem acompanhado um funeral...

E Saggar-Shand - já agora fora do seu reino - prosseguia através do areal, onde nem um arbusto se elevava e surgiam ao luar imponderáveis, vagas e brancas formas da miragem...

Viajou. Viu as cidades-entreposto, agora sem um vestígio da índia de outras eras. atulhadas de fardos e barricas, bloqueadas de transatlânticos fumarentos. Viu a infinita vastidão do oceano encontrar-se com o céu, lá no horizonte. E viu o mundo aos poucos transformar-se, em cada porto em que o vapor parava.

A sua alma de apóstolo exultava. Parecia-lhe que nessas terras do ocidente, surgia uma outra humanidade redimida, em que todos os homens nivelados avançavam consciente e livremente para a unitária perfeição do destino!

Desembarcou com júbilo na Inglaterra. Deslumbravam-no as aparências do regime democrático. Sentia-se fraternal e feliz.

De certo, o luxo ocidental de Windsor, nem do castelo em que o hospedavam, podiam impressioná-lo pelo fausto. Mas ele admirou neles a discreta, cômoda sobriedade, tão diversa da pompa dos palácios orientais.

Tudo assim o encantava. Sobretudo as leis que garantiam a liberdade, que a todos os homens asseguravam iguais direitos, sem a intransponível barreira das castas do seu país...

Findava o mês de julho de 1914...

Em agosto, a guerra, súbito, estalou. Uma rajada trágica fustigava as nações delirantes. Ribombava, nas fronteiras da Bélgica, o canhão. A Grã-Bretanha erguia-se indignada contra a felonia cínica da Alemanha: Bethman Holweg dissera que um tratado era um farrapo de papel!

Saggar-Shand foi chamado ao ministério. Lembraram-lhe o tratado de aliança de Bikanir com a Inglaterra, Albion ia entrar em guerra e apelava para todos os seus súditos e para todos os seus aliados E, se podia contar com Bikanir, era mister que o marajá mandasse ordens para que recebessem no seu território instrutores militares ingleses e contingentes do exército britânico, que enquadrariam as tropas indianas para que elas se fossem afazendo e fraternizando com os soldados europeus.

Saggar-Shand assinou a ordem solicitada. Quis voltar - mas convenceram-no de que era inútil, posto que assumiria o supremo comando das suas forças, quando chegassem aos campos de batalha da Europa.

Alguns dias depois, porém, vieram busca-lo, a ele, a Gunga Dass e a Hazar Mir Kan. Meteram-os num automóvel fechado que rolou longa e celeremente. Por fim, parou.

- Que é?

- Estamos à porta do castelo onde esperam Vossa Alteza.

Passada a porta, o automóvel parou de novo.

- Vossa Alteza quer dar-se ao incômodo de saltar?

Saggar-Shand reconheceu então, que estava no pórtico abobadado de uma prisão - a prisão de Wandswordt.

Levaram-no sem explicações ao seu cubículo, ladeado pelos de Gunga Dass e Hazar Mir Kan...

Olhou; diante de si, os varões de ferro da janela alinhavam-se sobre o fundo azul do céu. Sentia que na penumbra da masmorra, outras criaturas choravam e gemiam, a olhar grades idênticas à sua_ E via muito longe, no fundo da Índia, o leopardo do escudo de Britannia, estrangulando a independência do seu reino,..

Os tratados?

Farrapos de papel…

A sua liberdade?

Mas que pesa a liberdade de um homem, se no outro prato da balança está a ambição e a força de um Império?

Já havia cinco anos que Sua Alteza estava presa, Tudo quanto salvara do naufrágio, fora um colar de pérolas, que sempre conseguira ocultar com a cumplicidade dos guardas. Mas, uma a uma, as pérolas passavam do fio de platina que as prendia para o bolso dos carcereiros... Porque Saggar-Shand lia até tarde e com as pérolas adquiria as velas com que alumiava, clandestinamente, o seu cubículo, depois da hora de apagar a luz.

Nunca desfalecera, nunca teve uma palavra de desânimo ou de raiva. Aceitava com uma altiva resignação os serviços cruéis e humilhantes que lhe ordenavam que fizesse.

Assim me foi contada a sua história.

Era de fato um rei?

São Luiz também esteve prisioneiro, carregado de ferros, no tempo das cruzadas. Foi, porém, entre bárbaros, há mil anos...

Contudo, pela manhã, ao abrir das portas, logo que ele avultava do cubículo, Gunga Dass e Hazar Mir Kan se prosternavam, a maneira oriental, para saudá-lo. Comovidos, no idioma pátrio, lhe chamavam coisas sublimes e monumentais:

- Estrela do Oriente! Guarda excelso da liberdade do teu povo! Filho de Brahma! Forte, entre os reis que são fortes! Salve!

Nisto, um guarda se aproximava, displicente, e batendo com o pé de leve neles, comandava de modo peremptório:

- Pronto! Vão trabalhar... Basta de asneiras!

E Saggar-Shand tomava o balde e a escova, indiferente, e ia lavar de joelhos o ladrilho - pensando em Deus...

Fonte:
José do Patrocínio Filho. A sinistra aventura: reminiscências das prisões inglesas. São Paulo: Labortexto, 2003.

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