Afagado pela língua de um cão, Policarpo misturava nos olhos imagens antigas ao furor do patrão. – Por acaso estais duvidando da fama de Til Ananias, autor de autos e farsas, relações e epopeias, e mil outras maneiras de inventar a vida de sanchos como tu? Como ousas afirmar a negação? Incompetente, cego e maneta, como é possível não me encontrares neste cosmos gutenberguiano?
Policarpo recordava os primeiros passos em busca do afamado autor. Depois, a angústia maior. Na calçada, meninos brincavam, surdos às palmas tímidas e frias. Talvez não houvesse ninguém no casarão do velho Ananias. Batia e escutava o eco das palmas cantadas. E, quando ia bater novas palmas, uma bola de meia atingiu-lhe o rosto. Ao mesmo tempo, um rosto de bola abria meia porta, devagarzinho e assustado.
– Que deseja?
Atarantado, Policarpo não sabia se devia se voltar para os moleques ou fugir daquela voz de mofo e sono. Preferiu fechar os ouvidos às molecagens da rua. E pôs-se a gaguejar. Um escritor muito atarefado, acho que é este o endereço, a cabeça muito cheia de pesadelos, andava perdido no meio das letras de hebdomadários e resenhas, as mãos trôpegas, colunas sociais e linguísticas, necessita de um ledor, digo, de um secretário, ativo, inteligente, que saiba ler as cento e tantas, não sei, línguas faladas e escritas, para recortar o seu nome, deixe ver, Til Ananias, escritor famoso, autor de pasquins e outras inutilidades.
Os moleques ouviram, calados e tristes, a bola esquecida entre as patas de um cão sonolento, o tímido falar de Policarpo.
Quando o sono desembolou-se das patas do cão, os dois senhores entraram a tratar dos detalhes do ofício de recortar periódicos.
Uma hora depois, a mesma fatídica bola de meia molhada acertou a outra face de Policarpo. Mais uma vez nada reclamou. Já contratado, precisava ir logo à banca de jornais.
Ainda aturdido, Policarpo regressou ao casarão. Sobraçava alguns quilos de jornais e revistas. Na calçada, os garotos riam e gargalhavam. Um homenzinho amarelo batia palmas diante do portão de Til Ananias.
– Palmas para o campeão das palmas! – conclamava um dos moleques.
A rua inteira se encheu de sons de palmas. Mulheres de todos os gêneros acorreram às janelas, aflitas. E gritavam: parem com isso!
A porta se abriu e o velho meteu a língua no ouvido esquerdo do novo Policarpo. Não precisava mais do primeiro. Fosse atrás de outro emprego.
– Trouxe o anúncio?
O rapaz estendeu a senha amassada.
– Comece a pesquisa a partir de 31 de março de 1917.
O novo empregado não se assustou, mas teve a ousadia de fazer uma pergunta.
– Porque esta é a data de meu nascimento.
E meteram-se os dois entre os jornais.
– Já encontrou alguma coisa?
– Nada, senhor escritor.
E se enfurnaram tempo a fundo. Til Ananias pelas edições futuras, Policarpo pelas passadas – útero letrado.
– Em que data você está?
– 30 de janeiro de 1945.
De repente, um grito. Policarpo tremeu e parou. Ameaçavam-no garras homicidas de manchetes. Sufocavam-no mãos negras de notícias terríveis. Desmaiou e, inconsciente, se viu caminhando de encontro ao velho escritor.
– Senhor, achei uma mentira.
Til Ananias iniciava o século XXI, carregado de cãs e suores, pendurado num caibro podre.
– Diz que faleceu hoje, vítima de um choque elétrico, o fracassado escritor...
– Continue.
– Til Ananias.
Sufocado pela fumaça que vinha da sala onde estavam depositados os jornais da década de 20, o novo Policarpo acordou. Buscou fugir do passado. O fogo devorava, célere, os anos, reduzindo-os a cinza. Apavorado, o rapaz correu e, pisando as letras, alcançou a rua. Diante de si, o primeiro Policarpo ainda chorava o emprego perdido, alheio aos moleques que gritavam: vamos chamar os bombeiros para apagar a História. E mais gritaram quando viram o milagre acontecer – a fusão dos dois Policarpos.
Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.
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