sábado, 24 de agosto de 2019

Carlos Drummond de Andrade (Caso de Almoço)


A mulher prevenira: domingo não haveria almoço. Era dia de folga da copeira, a cozinheira pedira para sair cedo: queria passar o aniversário do filho em Niterói. O casal tinha de almoçar fora. E depois, você sabe, sem feijão, sem açúcar, sem nada, o melhor é mesmo deixar o fogão em paz.

— Está bem, almoçaremos fora. Ótimo.

Quando chegou domingo, chegou também a preguiça, em forma de pijama, jornalada para ler, disco novo para botar na vitrola, e esse frio… Ele tentou fugir ao compromisso.

— Faz aí uns sanduíches, qualquer coisa para enganar a fome.

— Que qualquer coisa, filhinho? Não tem nada na geladeira, e além disso você me prometeu.

Ela não disse “você concordou”, disse “você me prometeu”, e só então ele sentiu como aquele almoço fora de portas quebrava a rotina ajantarada, era uma novidade, não uma contingência.

Saíram à procura de restaurante. O hábito de não sair de casa para comer tornava-os indecisos na escolha. Nem havia mesmo como escolher. Tudo cheio, o bairro inteiro despencara-se para a rua, na fome incoercível, universal, dos domingos.

Afinal, no salão repleto, defenderam a mesa que uma senhora deixara. Ele, com complexo de velhice, avaliava satisfeito a média de idade dos clientes.

— Estou me sentindo à vontade. Gente de cinquenta para cima.

Ela protestou:

— Não viu aqueles brotos?

— Minoria. Repare na discrição do pessoal, na roupa, nas maneiras. Até gravatas.

O garçom era atencioso, você sabia que ainda há garçons atenciosos? E a toalha alva, a flor natural no vaso, tudo era bom, limpo, cortês. Sentiam-se mais moços por dentro, num Rio também mais moço — ou mais antigo? — de antes de outubro de 1930.

Ela observou:

— Aquela senhora ali deve ser desquitada. Com certeza o garoto saiu do colégio para passar o fim de semana com ela. Repara como trata o menino, alisa os cabelos dele. E ele quase não liga.

Ele, por sua vez:

— Estão bebendo champanha na mesa da direita.

Aniversário pessoal, ou de casamento? O certo é que muitas pessoas, em mesas diferentes, brandiam sua champanhota, faziam brindes em tom menor.

Ele assanhou-se:

— Vou pedir para nós também.

— Calma, rapaz. Espere as bodas de ouro.

Nisso a orquestra, a boa orquestra romântica dos restaurantes da velha guarda, atacou “Parabéns pra você” e, logo depois, “Cidade maravilhosa”.

Houve palmas.

À sobremesa, antes que ele pedisse, o garçom trouxe a garrafa e as taças.

— A casa pede licença para oferecer. Em comemoração ao aniversário da firma.

Os dois entreolharam-se, feito menino que ganhou bala, e desejaram felicidades à firma. Com uma reserva, do lado feminino:

— Vai ver que é nacional.

— Francês — concluiu o lado masculino, degustando; a casa tem tradição.

— Vai ver que a nota será aumentada, para pagar a cortesia…

— Ó mulher de pouca fé, que duvidas dos outros como de teu marido!

A nota não trazia qualquer majoração, era a honestidade mesma. Os dois saíram rindo, sob a impressão de que voltara o reino da boa vontade na terra. E decididos a, todo ano, almoçarem aquele dia naquele restaurante.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

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