domingo, 25 de agosto de 2019

Mark Mielke de Lima (A Sétima Badalada)

Pintura de Marcelo Miguel
Soa a primeira badalada do relógio da igreja por toda a cidadezinha do litoral brasileiro. Com o calor, grande parte dos habitantes estão deitados nas varandas das casas, em redes ou colchões, fazendo a digestão. Janelas abertas, rádios e televisões ligados, a brisa marítima irrompe pelas ruas e traz frescor a pescadores, comerciantes, trabalhadores braçais e donas de casa. As crianças, algumas recém-chegadas do turno matinal na escola, outras se preparando para ir daqui a pouco - são as únicas que enfrentam o sol forte na agitação das brincadeiras. Quando o carro de sorvete passa, os pais abrem as carteiras.

Às duas badaladas, os homens já estão no trabalho, enquanto grande parte das mulheres está em casa assistindo ao Videoshow. As crianças perambulam pelas casas, ruas e praças, a pé ou de bicicleta, todas acompanhadas de amigos da mesma idade. As que estudam à tarde se refrescam na aula com o ventilador sobre o quadro negro. Por toda a cidade, dentro dos escritórios, oficinas, consultórios e lojas, quando desprovidos de ar-condicionado, também fazem uso do ventilador.

Três badaladas e o movimento de crianças e banhistas na praia é grande. Pela cidade, velhos, adultos e jovens desocupados ocupara uma ou outra mesa nos diversos bares e botecos. As moças passeiam à moda da estação, com minisshorts e biquínis, recebendo assobios e olhares gulosos. Há batida de música em todas as ruas, entremeada por ruído de motocicletas. Passa um carro com alto-falante anunciando as promoções de uma loja de roupas. Pelos frigoríficos, forte cheiro de peixe.

Com a quarta badalada, a quantidade de pessoas nas ruas vai lentamente aumentando. O sol já está mais baixo e o calor um pouco mais ameno. Nas obras, pedreiros e serventes se animam ao ouvir esses quatro toques que anunciam a última hora de trabalho do dia. Aumentam o volume dos rádios e seguem o serviço cantando. Pelas ondas da praia, deslizam incansáveis surfistas. No cais, há trânsito de pessoas entre os barcos de pesca, alguns dos quais recém-chegados, outros se aprontando para partir na madrugada seguinte. Velhos pescadores observam o movimento fumando cigarros de palha. Na praça central, quiosques e sorveterias estão cheios de nativos e turistas. Aí também se veem os grupinhos das adolescentes, todas com risada fácil e um celular no bolso. Pelos botecos, a maior parte da freguesia vespertina dos respectivos estabelecimentos já está embriagada.

Cinco badaladas. O som é igual ao de um sino, mas emitido por uma gravação no alto-falante, Com o frescor dessa hora, as ruas e praças ficam apinhadas de gente, ao passo em que o movimento na praia começa a diminuir. Servidores públicos e trabalhadores braçais encerram a jornada, aumentando a clientela dos botecos. Com a saída dos alunos do período da tarde, a agitação no trânsito é mais intensa. É forte o volume da música que vem dos carros, alguns parados em frente aos bares repletos de gente tomando cerveja. Na pista de skate, os rapazes andam como engrenagens de um relógio.

Vem a sexta badalada. Esta é acompanhada da mesma musiquinha todos os dias. Restaurantes e lanchonetes atendem a um grande número de pessoas nesta hora. Breve, o sol irá se pôr e a fresca brisa do mar pouco a pouco trará um leve friozinho. Jovens se reúnem combinando a badalação da noite, enquanto crianças brincam as últimas brincadeiras antes de voltar para casa a tomar banho e jantar. No campinho de futebol, há um jogo em andamento e bastante gente assiste a ele, esperando sua vez de entrar em campo à saída do time perdedor. As donas de casa recolhem as roupas do varal. Espocam rojões por conta de alguma festa de aniversário.

Com a sétima badalada soando do alto da torre da igreja, mais uma noite de verão toma a cena e traz o crepúsculo que, por sua vez, abriga com a mesma escuridão ao sono e à farra. A essa hora, as estrelas que pontilham o céu à entrada da missa e à do prostíbulo são as mesmas. A penumbra que é cúmplice de casais, também o é de gatunos e viciados. As ondas do mar brilham à luz da lua. À diferença das grandes cidades, um dia mais terminou sem que ninguém fosse morto ou assaltado. Aqui também o que conta é a aparência e o que vale é o dinheiro, mas nem uma nem outra coisa estraga o prazer de pisar na morna areia da praia numa noite de verão. Longe do barulho e dos arranha-céus e perto do horizonte marítimo, depois da sétima badalada, um ser urbano pode por um momento até esquecer a grande mentira da civilização. Já um nativo, para fazê-lo, tem que ir mais longe e adentrar o mar.

Fonte:
Alcir Chiari et al. Novos Autores Curitibanos: crônicas, poesias, contos. Curitiba/PR: Gusto Ed., 2013.

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