sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Caldeirão Poético XXXI


A. J. PEREIRA DA SILVA
(1876-1944)

INCOGNITUS


Anda comigo uma tristeza estranha...
Tristeza? Não. Saudade inconsequente
De um país que uma luz de lua doente,
Como os minguantes outoniços, banha,

Essa ideia imanente me acompanha
De tal maneira o espírito vidente,
Que já sofro da falta desse ambiente
De clima luminoso e ar de montanha.

Vivi alhures? Guardo, impercebida,
Como na calma azul de um céu profundo,
A ingênita memória de outra vida?

Quem sabe? Um senso incógnito me diz
Que de outra forma viva e noutro Mundo
Pode alguém ser feliz... e eu fui feliz.

BONFIM SOBRINHO
(1875-1900)

NOIVADO FÚNEBRE

Negra tristeza meu semblante encova,
Ó noiva amada, lírio meu fanado!
Porque não vamos na mudez da cova
Em círios celebrar nosso noivado?

Nos sete palmos desse leito amado,
Ao frio bom de uma volúpia nova,
Há de embalar o nosso amor gelado
O coveiro a cantar magoada trova.

E os nossos corpos gélidos, inermes,
Em demorados e famintos beijos,
Serão depois roídos pelos vermes...

E do leito final que nos encerra
Em plantas brotarão nossos desejos,
E o nosso amor, em flores, sobre a terra.

FRANCISCA JÚLIA DA SILVA
(1874-1920)

A FLORISTA


Suspensa ao braço a grávida corbelha,
Segue a passo, tranquila... O sol faísca...
Os seus carmíneos lábios de mourisca
Se abrem, sorrindo, numa flor vermelha.

Deita à sombra de uma árvore. Uma abelha
Zumbe em torno ao cabaz... Uma ave, arisca,
O pó do chão, pertinho dela, cisca,
Olhando-a, às vezes, trêmula, de esguelha...

Aos ouvidos lhe soa um rumor brando
De folhas... Pouco a pouco, um leve sono
Lhe vai as grandes pálpebras cerrando...

Cai-lhe de um pé o rústico tamanco...
E assim descalça, mostra, em abandono,
O vultinho de um pé macio e branco.

HENRIQUE CASTRICIANO
(1874-1947)

A MISSA DO MAR


Eis-nos sós, companheiro! Amargurado Oceano,
Deixa-me descansar ao pé de ti, meu velho...
Depois de ter ouvido o Ritual Romano,
Quero aprender de cor o teu santo Evangelho.

Abre o verde Missal! Como um Padre, de joelho,
Põe nos ombros azuis o manto soberano;
E do Sol preso ao Céu, de seu disco vermelho,
Faze uma hóstia de luz, faze um símbolo humano.

Sobe o dia no Azul. Tontas de amor, no Espaço,
Gaivotas vão subindo... Ergue-se, ao longe, o braço
De um monte secular, entre nimbos risonhos...

E, ao ver tudo ascendendo, eu procuro o infinito
De tua Alma sem fim, para esconder, num grito,
Minhas queixas! meus ais! minhas penas! meus sonhos!

JONAS DA SILVA
(1880-1947)

Ó LARANJAL SEM FLOR!


Ó laranjal sem flor, ó limeira sem lima,
De braços hirtos como os de um Crucificado,
Talvez S. Sebastião, ao cumprir o seu fado,
Contra vós atirasse a maldição do clima.

Folha a folha, o tufão foi despindo a alta cima
Onde outrora cantava o sabiá namorado;
Hoje apenas lembrais o imortal torturado
Ou um mártir da Ilusão no Calvário da rima.

Como somos irmãos nesta vida em que vamos!
Voltarão pelo inverno os rebentos de outrora,
Os sabiás voltarão a cantar sobre os ramos.

E esta alma encontrará novamente a que estima?
E esta alma encontrará novamente a que adora?
Ó laranjal sem flor, ó limeira sem lima...

JOSÉ ALBANO
(1882-1923)

SONETO

Bom Jesus, amador das almas puras,
Bom Jesus, amador das almas mansas,
De ti vêm as serenas esperanças,
De ti vêm as angélicas doçuras.

Em toda parte vejo que procuras
O pecador ingrato e não descansas,
Para lhe dar as bem-aventuranças
Que os espíritos gozam nas alturas.

A mim, pois, que de mágoa desatino
E, noite e dia, em lágrimas me banho,
Vem abrandar o meu cruel destino.

E, terminado este degredo estranho,
Tem compaixão de mim, Pastor Divino,
Que não falte uma ovelha ao teu rebanho.

LUÍS GUIMARÃES FILHO
(1878-1940)

VÊNUS


Lembro-me ainda dessa esbelta e flava
Carícia dos teus braços amorosos...
Por mais que evite o encanto, os impiedosos
Perseguem sempre a minha carne escrava!

Eram suaves, cálidos, cheirosos,
Como doces damascos! Eu beijava
Aquela morna pele que tentava
O paladar! Oh! braços deliciosos,

Como esquecer as núpcias perturbantes,
Os longos desalentos delirantes
Que sem misericórdia vós me dáveis?

Ah! torna, Vênus, para o sacro Elêusis!
Fui condenado à morte pelos deuses,
E quero-a nos teus braços implacáveis

MENDES MARTINS
(1876-1915)

VELHINHOS

E vai fugindo o tempo. E, aos poucos, vem chegando,
Ai, vem chegando a idade em que eu serei velhinho,
Sopra o vento lá fora, as árvores curvando
E, em busca de outro lar, deserta o passarinho

- Ai, que frio! - eu murmuro. E, cheia de carinho,
Te chegas para mim, as minhas mãos tomando.
Ai, que frio, meu Deus! - torno a dizer baixinho,
De teu colo moreno as rugas contemplando.

E a lamparina estala e, trêmula, esmorece...
Lá fora, o temporal, bramindo, recrudesce
E solta, finalmente, os últimos arrancos...

E à luz crepuscular, que te sombreia os traços,
Tenho assomos de moço: aperto-te em meus braços
E beijo, apaixonado... os teus cabelos brancos.

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