terça-feira, 13 de agosto de 2019

Olga Agulhon (Magro Zé)


Dias atrás, desses de ficar remexendo nos baús guardados no sótão de nossa memória, lembrei-me, com saudade, do Magro Zé, um personagem que está presente nas minhas recordações de infância.

Bom lembrar do Magro Zé. O seu nome de batismo eu nunca soube. Tinha esse apelido porque era mesmo muito magro, não tinha muita saúde, pouco comia, bebia muito; acho que o seu primeiro nome nem era José. Era primo de minha mãe, a quem chamava de comadre, sem que houvesse motivo para isso. Viúvo, tinha duas filhas, que não ficaram com ele. Foram criadas por uma tia. Não sei se já bebia ou se o vício começou a partir da viuvez.

Minhas recordações são um tanto vagas e nunca me falaram dele depois que cresci. A única coisa que me contaram é que uma das filhas casou-se, mas me parece que o genro não o quis morando junto. E Magro Zé continuou sozinho.

Talvez ninguém o quisesse porque bebia. Ou, então, bebia porque ninguém o queria. Na verdade, acho que nem ele mesmo sabia por que se embriagava a ponto de vez por outra ser encontrado largado em qualquer canto, com uma garrafa de pinga vazia na mão, tal como um indigente. Era nisto que se transformava o Magro Zé quando bebia: um indigente, sem lar, sem parentes, sem amigos, sem sonhos, sem esperança, sem vontade de viver; um farrapo humano.

Quando estava sóbrio, ele era a pessoa da qual me lembro com carinho. Para a família, devia dar muito desgosto; mas, para mim, ele era legal. Magro Zé tinha inclusive profissão. Era um excelente mestre de obras, daqueles que constroem uma casa, um armazém, uma igreja, sem necessidade de instruções de nenhum engenheiro. Era mesmo bom no serviço, mas nunca teve nada na vida, nem ao menos um emprego seguro, um trabalho fixo. Bebia.

Numa certa altura de sua vida, a pedido de meu pai, veio fazer um trabalho na fazenda onde morávamos, hospedando-se em nossa casa. Terminou o serviço, mas foi ficando, ficando, ficou.

Pegava pequenos serviços por perto, para ir levando a vida. Às vezes, ia mais longe e demorava a voltar, mas voltava. Quando retornava, chegava de braços abertos e me mandava procurar balas e bombons nos bolsos do seu casaco; eu adorava aquilo. Também cuidava de mim quando minha mãe estava muito atarefada, mas não era de todo confiável, porque, de uma hora para outra, bebia.

Foi nessa época que minha mãe pôs na cabeça que iria fazê-lo parar de beber e ele prometeu que iria tentar, fazer de tudo para deixar o vício.

- Comadre, se você encontrar, de hoje em diante, alguma garrafa nesta casa, pode jogar fora.   

E era isso que ela fazia. Encontrava garrafas embaixo da cama, no guarda-roupa, atrás do sofá, na casinha do cachorro, nos mais diversos lugares; esvaziava todas, mas não se zangava com ele e não ralhava; e ele, por sua vez, também não reclamava.

Certo dia, chegou com a perna e o pé direitos engessados, pois havia quebrado um osso da coxa e o tornozelo ao cair de um telhado que estava cobrindo. Veio ajudado por um amigo, não podia andar sozinho.

- É agora que você para de beber, Magro Zé. Não se levanta sozinho e ninguém vai dar-lhe um pingo sequer de álcool.

- Pelo amor de Deus, Comadre, espere eu ficar bom... Como vou parar de beber logo agora que estou doente, entrevado, sem ter o que fazer?

– É uma boa hora!

Eu lhe fazia companhia, mas, para mim, ele somente pedia água e comida. Vivia me aconselhando para que nunca fumasse ou bebesse bebida alcoólica. Hoje, penso em quanto ele sofria e não me deixava perceber. Comigo, era sempre contente e estava sempre disposto a brincar.

No segundo dia, à tarde, toda a família foi até a cidadezinha mais próxima e, quando voltamos para casa, ao entrarmos pela cozinha, vimos um rastro branco de gesso pelo chão, que se estendia pelo corredor. No fim daquele rastro, lá estava Magro Zé bêbado, segurando uma garrafa quase vazia.

Depois do porre, a bronca:

- Quem lhe arrumou pinga, Zé?

- Ninguém, Comadre.

-Alguém tem que ter trazido para você. Aqui em casa é que não tinha nenhuma garrafa. Quem foi?

A explicação, porém, só pôde ser dada no dia seguinte, quando, do álcool, só restava, a ressaca:

- Ninguém, Comadre. Antes do acidente eu tinha escondido a garrafa dentro de uma panela, aquela que você só usa para fazer feijoada. Como está fazendo muito calor, achei que você não iria fazer feijoada tão cedo... Quando não aguentava mais, me virei até cair da cama e me arrastei até o armário; não sei como não bebi lá mesmo.,.

- Você não toma jeito, Zé! Mas foi a última vez. Vou revirar essa casa e não vou deixar uma gota de álcool para você.

Assim o fez. Encontrou mais uma garrafa dentro do saco de arroz guardado na despensa. Esvaziou-a.

Sem a bebida, Magro Zé foi ficando nervoso, não comia quase nada, gritava, xingava. Chegou a tentar se arrastar para fora de casa, mas meus pais o impediram. Por maior que fosse o seu desespero, não ousou enfrentá-los; tinha por eles muito respeito e gratidão, devia-lhes muitos favores. Afinal, eram as pessoas que o tinham acolhido, apesar do parentesco distante.

Voltou para a cama e, não se sabe como, ficou quarenta e cinco dias sem beber. Todos ficamos contentes.

- Se você aguentou todo esse tempo, pode ficar sem beber pelo resto da vida...

- Eu prometo, Comadre. Nunca mais vou pôr álcool na boca. Acho que agora estou curado.

Tirou o gesso. Nos dias que se seguiram, realizava longos passeios pela fazenda, dizendo que precisava fazer exercícios.

A alegria durou apenas mais uma semana; começou a aparecer bêbado todos os dias, apesar de ter ido á venda apenas uma vez. Ninguém sabia onde ele arrumava a bebida, já que não estava saindo da fazenda.

Foi aí que minha mãe resolveu seguir o Magro Zé. Ele atravessou a porteira e entrou no pasto. Daí em diante não deu para continuar, pois certamente ele a veria; o capim estava muito baixo. Observou-o de longe até perdê-lo de vista. Passou-se uma hora e ele não voltou. Fomos procurá-lo, eu e minha mãe, seguindo a direção que ele tinha tomado.

Encontramos o Magro Zé dormindo. O cheiro de pinga impregnava o ar. A seu lado, no meio de uma moita, uma caixa de cimento, feita com muito capricho. Estava destampada e cheia. Era um quadrado com cerca de cinquenta centímetros cada lado. Ainda havia, lá dentro, quatro garrafas de pinga.

Enquanto pensávamos que ele passeava pela fazenda para exercitar-se, ele estava trabalhando na tal caixa, que ainda lhe dava pinga fresquinha. Havia, com certeza, dado dinheiro para que alguém dos sítios vizinhos lhe trouxesse as garrafas da maldita, pois nenhum conhecido nosso o ajudaria em tal ato.

Dessa vez minha mãe ficou furiosa e ele, envergonhado por sua fraqueza, acabou indo embora, mesmo contra a nossa vontade.

Na partida, choramos. Vendo-o partir, acenando e querendo esboçar um sorriso, minha mãe comentou:

- Aquele corpo franzino, derrotado pelo vício, não parece conter uma alma tão grande... tão boa e generosa... Parece uma alma aprisionada.

Eu apenas observava seus olhos; e nunca mais vi tanta dor num olhar.

Nos primeiros tempos, escrevia. Chegou a nos visitar uma vez e me trouxe balas nos bolsos, como sempre fazia. Mas continuava constrangido; não nos olhava nos olhos, não se demorou. Com o tempo, parou de escrever. Ficamos sabendo, anos depois, que ele estava bem. Havia conseguido um bom emprego, era responsável pela construção de casas populares em uma cidade do interior de São Paulo. Tinha criado jeito.

Tempos depois, outra notícia: Magro Zé voltava para o alojamento na carroceria do caminhão que transportava os empregados da construção; já estava bêbado, caiu do caminhão em alta velocidade, quebrou-se todo. Fraco e também com o pâncreas debilitado, morreu na enfermaria de um hospital qualquer. Morreu sozinho, como vivera durante quase toda a sua vida.

Mas ao enterro todos compareceram: amigos, conhecidos, parentes e curiosos, daqueles que gostam de frequentar funerais.

Saudades do Magro Zé.

Fonte:
Olga Agulhon. Germens da terra. Maringá/PR: Midiograf, 2004.

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