terça-feira, 20 de agosto de 2019

André Kondo (A Pérola)


Akemi mergulhou nas tépidas águas da baia de Ago. Assim como ela, dezenas de mulheres vasculhavam o fundo do golfo em busca de um tesouro. Todas eram colhedoras de pérolas, mas a joia a buscar naqueles dias não era essa. Era algo muito mais precioso...

A presença do venerável imperador do Japão havia provocado grande alvoroço em Ise, ainda mais pelos súditos estarem cientes de que seu filho estava muito doente. Era notório o amor do pai pelo filho e, mais evidente ainda, a sua relutância em casá-lo. Desejava para ele a esposa ideal, perfeita. Os anos se passaram e ninguém lhe parecia á altura de seu filho. Até a doença precipitar-se sobre o príncipe.

Desesperado, o imperador acorreu aos ancestrais para buscar uma cura. Após rezar no templo de Ise, morada da deusa Amaterasu, adormeceu e teve um sonho com Meoto Iwa, as rochas casadas. Sonhou com um longo laço unindo Izanami e Izanagui (ver postagem abaixo). O casal de deuses, representado por duas rochas que se erguem imponentes na baía de Ise, teria lhe dito que a salvação de seu filho estava em uma pérola, colhida das mesmas águas que banhavam as rochas casadas. Foi revelado ainda que a mulher que colhesse a pérola, além de portar a cura, seria a esposa ideal.

A notícia se espalhou com o vento. Todas as mulheres da península de Ise passaram a buscar a pérola mais bela, com a qual pretendiam, além de curar o príncipe, casar-se com ele. Akemi também desejava, do fundo de sua alma, encontrar a pérola da salvação.

No fundo da baía de Ago, Akemi colheu uma ostra em forma de coração. O inusitado do achado também atraiu a atenção de sua amiga, que costumava mergulhar com Akemi todos os dias. Aberta a ostra, revelou-se uma incrível e rara pérola negra.

Akemi, com lágrimas nos olhos, sorriu. Em seguida, recebeu um golpe na cabeça que a fez desmaiar. A amiga de Akemi correu para onde estavam o imperador e o príncipe. Teve que aguardar a sua vez em uma longa fila. Uma a uma, as pérolas foram apresentadas e dispostas sobre o principesco peitoral. Por mais bela que fosse a pérola, nenhuma delas apresentou qualquer efeito. Até chegar a vez da pérola negra...

Depositada sobre o coração do príncipe, ouviu-se uma longa inspiração. O imperador, esperançoso, pensou que o filho estivesse curado. Porém, logo após o peito do príncipe se estufar, a pérola negra caiu, rolando até se alojar em uma fenda do assoalho, aos pés de Akemi, que acabava de chegar. O filho mergulhou novamente em profundo sono.

A amiga fugiu, envergonhada. Sem dizer uma palavra, a jovem Akemi caminhou com a mão fechada, como uma ostra, em direção ao imperador.

Abriu os dedos...

À princípio, o imperador não enxergou o que havia nela. Aproximando-se, verificou um minúsculo grão de areia. Ele sussurrou algo no ouvido do ministro, pois o imperador não falava diretamente com seus súditos.

— O que significa isso? — perguntou o ministro.

Akemi, com os olhos marejados, explicou:

— Sou como esse grão de areia... Há muito tempo, amei o filho do senhor destas terras de Ise. Por ser uma simples colhedora de ostras, nunca me foi permitido casar com ele... Aceitei isso, pois me achava inferior ao meu amado. No dia em que ele decidiu fugir comigo, eu recusei... Como poderia? Eu, um simples grão de areia, unir-me a uma pérola como ele?

O imperador ouvia a colhedora de pérolas com atenção. Seria inimaginável um encontro entre a mais poderosa entidade do Japão e uma simplória colhedora de ostras. Porém, o imperial sonho era claro. Era preciso colher a pérola da salvação, das mãos de uma singela mergulhadora. Akemi prosseguiu:

— Seu filho é uma pérola; a mais preciosa dentre todas as pérolas. Ele é o filho do imperador! Não há mulher que se iguale a ele… - Portanto, como poderá encontrar-lhe um par? Meu amado também era uma pérola... Ele queria me envolver com o seu amor, mas eu não aceitei. Continuei grão de areia, soprado ao vento, sem destino. Enquanto isso, o pai de meu amado o enviou em um barco para as províncias do norte, onde uma esposa adequada, filha também de um rico senhor, já o aguardava.

O imperador, divindade, deixava-se tocar pela mortalidade daquelas palavras.

— Na despedida, meu amado me disse que seu coração havia se tornado uma pérola negra, aprisionado, como as pérolas são contidas no interior das ostras. Sim, ele se sentia prisioneiro… e suplicou para que eu o salvasse, para que eu o libertasse. Eu nada fiz. Deixei-o partir... Seu barco afundou nestas águas da baia… E nunca mais o vi... até encontrar uma pérola negra, até resgatar o coração perdido. Agora, compreendo. É preciso salvar o amor...

Akemi aproximou-se do príncipe. Abriu-lhe a mão, depositando nela o grão de areia. Depois, fechou os dedos principescos, como uma ostra. Assim fazendo, falou ao imperador:

— Na mão de seu filho, encontra-se um grão de areia. Saiba que as pérolas nascem assim. Somos como grãos de areia… que envolvidos pelo amor, tornam-se pérolas. Quando ouvi sobre a doença de seu filho, percebi na hora que se tratava de uma desilusão amorosa. Pois eu também sofri com essa doença... Acredito que seu filho ama uma mulher... Talvez, a mais simples de todas no deserto deste vasto mundo... Um grão de areia, perdido.

O imperador, impressionado com as palavras de Akemi, esquecendo-se de todos os protocolos, argumentou diretamente:

— Mas como entregar o meu filho a uma mulher qualquer?

— Seu filho tem o poder de transformar qualquer grão de areia... na mais bela das pérolas. O amor dele será capaz de realizar isso.

Uma mulher entrou no recinto, correndo em direção ao príncipe. Com lágrimas nos olhos, carregava nas mãos uma pérola imperfeita. A única que havia conseguido apanhar, após tanto esforço, pois não era uma colhedora de pérolas. Era apenas uma camponesa que mal sabia nadar. Ao depositar a irregular pérola sobre o peito do príncipe, sussurrou-lhe algumas palavras. O príncipe abriu os olhos...

Ao ver o amor se realizando diante de si, Akemi, após tanto tempo aprisionada, libertava-se de seu destino de grão de areia.

Sorrindo, a colhedora de pérolas vasculhou o chão e resgatou, da escura fenda, a pérola negra... E até o fim de seus dias, carregou-a consigo em um colar, sempre bem próximo, ao seu peito em liberdade.

[3. lugar no Prêmio “O Pensador” V – Franklin Cascaes – Academia Itapemense de Letras (SC)]

Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

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