segunda-feira, 12 de agosto de 2019

André Kondo (A Pétala)


Akemi e Jiro se conheceram durante o hanami*, o tão aguardado encontro com a primavera, sob as floridas cerejeiras. Dentre milhares de pétalas que choviam naquela tarde, sopradas pelos ventos do destino, Akemi e Jiro acompanharam, com o olhar, apenas uma. E o cair dessa pétala, traçando sentimentos no ar, uniu suas primaveras ao repousar no colo de Akemi. Como se estivesse diante do mais incrível espetáculo, Jiro aplaudiu aquele momento, porque lhe pareceu o mais belo de sua vida.

Jiro, com seus 17 anos, sonhava em conhecer o mundo. Queria ser explorador, mesmo sabendo que o mundo já havia sido explorado à exaustão. Porém, para ele, sempre sobrava a esperança de que ainda haveria alguma coisa nova a descobrir. Akemi, com seus 15 anos, sonhava em ser conhecida pelo mundo. Queria ser artista, mesmo consciente de que o mundo tem mais aspirantes a artistas do que pessoas interessadas em ser plateia. Porém, para ela, sempre restava a esperança de que ainda haveria lugar para mais uma estrela no céu.

Nem Jiro tornou-se explorador, nem Akemi artista. Naquele singelo voo de uma única pétala, que atraiu seus olhares e corações, Jiro descobriu que o mundo poderia se resumir em um sorriso de moça. E Akemi, que apenas um único homem poderia ser o seu mundo.

Vieram as primaveras, mas não os filhos no verão. Anos se passaram e a primavera da vida foi se distanciando. Mas em momento algum Jiro e Akemi deixaram de ansiar pelo hanami, quando voltavam para o mesmo parque, para contemplar as flores que desprendiam alegres lembranças.

Após anos de dedicação, haviam construído um lar. Akemi cantava em seu aparelho de karaokê. Jiro descobria, em cada canção de Akemi, uma nova alegria, e logo aplaudia o talento da esposa. Akemi cumprimentava, agradecida, como uma artista agradece a sua plateia. Eram felizes.

Longos anos se passaram, repletos de alegrias efêmeras, mas que pareciam valer por eternidades. Entretanto, por mais longo que seja o voo de uma pétala de cerejeira, chega o momento em que ela chega ao chão. Akemi caiu.

No hospital, Jiro encontrou a esposa em sono profundo, Quando ela acordou, não se lembrou do marido. Não se lembrava de mais nada. Era como se cada primavera fosse a primeira, como se cada pétala fosse igual a qualquer outra, que tenha caído ontem, hoje ou que ainda caísse amanhã. Nada mais era e nem seria lembrado.

Jiro queria levar a esposa para casa, mas os médicos disseram que seria perigoso, pois ambos já estavam velhos demais. Como se a velhice fosse uma doença.

Todos os dias, Jiro visitava Akemi. Falava com ela sobre coisas novas, porque qualquer coisa seria novidade para ela, que nada retinha em sua memória. Animava-se com a proximidade do hanami, quando as cerejeiras estariam floridas. Porém, os médicos não deixavam Akemi sair. A primavera passava.

Anos foram arrancados pela ventania da vida. "O senhor não precisa vir todos os dias aqui", dizia o médico. "Não posso deixar Akemi sozinha", respondia Jiro. "Mas ela não irá notar. Ela sequer se lembra do senhor”. E Jiro respondia: "Mas eu me lembro dela".

Assim, as lembranças de ambos eram guardadas apenas por um. Todavia, por mais persistente que seja a alma de um homem, o corpo não pode resistir para sempre. Sentindo as pernas fraquejarem, decidiu que era hora de prosseguir com o sonho de explorar o desconhecido, antes que fosse tarde demais. Era preciso viver novamente...

Jiro se preparou. Dirigiu-se ao hospital, com a consciência de que aquela seria a última vez. Akemi estava apática, como em todos os anos em que passou ali. Como sempre, não reconheceu Jiro. Mesmo assim, ele tomou a sua mão, a beijou e disse: "Akemi, chegou a hora de partir. Os sonhos não podem morrer".

Beijou carinhosamente o rosto da esposa e fugiu do hospital.

Jiro se sentiu feliz. Mais uma vez, comemorava o hanami. As flores de cerejeira traziam novos significados, novas vidas. Em cada pétala que partia de cada galho, via uma nova possibilidade. Imaginou como teria sido a sua vida, se não tivesse seguido a mesma pétala de Akemi. Teria se tomado um grande explorador? Teria conhecido o mundo? E Akemi? Teria se tomado uma grande artista? Teria sido reconhecida pelo mundo?

Jiro sorriu. Naquele instante, uma pétala caía no colo de Akemi, sentada em uma cadeira de rodas, ao seu lado. Ele a aplaudiu, sabendo que, a partir daquele momento, cada dia seria uma descoberta a ser explorada. E como uma grande artista, Akemi recebia os aplausos de Jiro, o seu mundo. Um mundo que a conhecia e a admirava. Jiro aplaudia.

Aplausos de uma desconhecida plateia, mas que, mesmo anônima, se sente feliz, amando a artista que voa em seu palco... Como uma pétala ao vento, efêmera, mas com o perfume das coisas eternas.

[Vencedor do XIX Concurso de Contos Washington de Oliveira – Fundart (SP)]
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Nota:
* Hanami (literalmente "contemplar as flores") é costume tradicional japonês de contemplar a beleza das flores, sendo que "flor" neste caso quase sempre significa sakura ou umê. Do fim de março ao começo de maio, o sakura floresce por todo o Japão, e por volta de primeiro de fevereiro na ilha de Okinawa. A previsão de florescimento é anunciada todo ano pela Agência Meteorológica do Japão e é observada cuidadosamente por aqueles que planejam fazer o hanami, visto que ela floresce por apenas uma ou duas semanas. No Japão moderno, o hanami consiste basicamente de realizar festas ao ar livre embaixo do sakura durante o dia ou a noite. O hanami à noite é chamado de yozakura (sakura noturno). Em muitos lugares, como o Parque Ueno, lanternas de papel temporárias são presas para realizar o yozakura. Na ilha de Okinawa, lanternas elétricas decorativas são presas nas árvores para o divertimento noturno, tais como nas árvores do Monte Yae, perto da cidade de Motobu, ou no Castelo Nakajin.
Uma forma mais antiga do hanami também existe no Japão, que é a contemplação do florescimento da ameixeira (ume). Este tipo de hanami é popular entre as pessoas mais velhas, pois elas são mais calmas do que as festas do sakura, que normalmente envolvem pessoas mais jovens e podem às vezes ser lotadas e barulhentas. (Wikipedia)


Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

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