quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Olga Agulhon (Feita de Luz)


Expulsa da cidade, acusada de atrapalhar o sono dos justos, roubando-lhes a negritude da noite, onde todos os gatos são pardos, abrigou-se no campo, num pequeno sítio ao pé da serra, longe de vilarejos e longe de gente de todos os tipos.

Deixou, no antigo apartamento, quase toda a mobília, as roupas de seda, os saltos altos, as lembranças inúteis.

Com o pequeno filho sempre junto ao peito, carregou consigo apenas o necessário, as roupas de algodão, uma botina, algumas recordações agradáveis, não muitas; e seus livros, todos, sem esquecer nenhum título.

No meio do caminho, deu carona a um tipo estranho, grande, negro, mudo, que, por assim o ser, não pôde dizer como era chamado.

Chegando àqueles campos, que seriam seu refúgio, respirou o ar puro da natureza que os acolhia sem pudores ou preconceitos. Cumpriria naquele lugar o seu destino. Desceu para abrir a porteira, carregando o filho, junto ao peito como sempre o mantinha. Mais tarde, ao fechá-la, deixaria definitivamente para trás todo o seu passado de busca e escuridão.

Ao descarregar as malas, dispensou imenso cuidado a uma delas, por conter seu último par de asas.

O negro carregava os livros que não sabia decifrar.

Na casinha branca, de varanda, aguardou o motorista do caminhãozinho que havia transportado a pequena mudança. Antes de ir, após receber seu pagamento, não se conteve e perguntou à mulher sobre os livros, tantos eram.

Ela respondeu que eram o seu alimento; e ele foi-se embora sem entender, mas sem disposição para mais questionamentos.

Há louco pra tudo, mesmo... Livros, pra que tantos livros nesse fim de mundo, ficou pensando o motorista, que de leitura nada sabia.

Sem ter para onde ir, ou quem por ele esperasse, o negro ficou por lá, mudo, arando o campo, tentando descobrir os segredos da terra e da mulher.

Ela também cultivava o solo, descobria os seus desejos, fecundava suas entranhas.   

Cuidava do filho com esmero e amor.

Mantinha a casa limpa e arrumada.

Criava pequenos animais, fazia o pão.

De dia era assim. Parecia uma mulher comum, porém dotada de especial brilhantismo, inteligente, dessas heroínas que existem em todo o mundo e que conseguem assumir tantas funções, porque aprenderam a mágica e se duplicam; ou até mesmo se transformam em muitas, sem que os homens se deem conta da magia realizada.

De noite era outra. Abandonava os trapos de algodão; vestia-se de luz. Bebia o estrato dos imortais e inalava seus perfumes. Nutria-se de poemas.

Espargindo um líquido denso, que brotava ritmado, dava de mamar ao filho e fazia-o dormir ouvindo doces palavras.

O negro, mudo, assistia a tudo como se sonho fosse e, sem acreditar que pudesse existir mulher assim, feita de palavra e luz, em todas as noites era tomado por uma agradável sensação e adormecia, sentindo um cheiro muito bom e sonhando o mesmo sonho.

Depois de adormecidos, o menino e o negro, a mulher ainda permanecia acordada, devorando incontáveis páginas.

Quando se sentia extasiada, vestia seu par de asas e sobrevoava as cidades, como verdadeira heroína alada, exorcizando as dores e a ignorância do mundo, espargindo sobre os homens um pouco de si, noite após noite.

Nada mais tendo a doar e estando leve como uma pluma, não mais batia as asas, flutuava. E, nesses instantes, olhava o mundo por cima dele; e chorava. Chorava porque via o quanto os homens ainda precisavam de poemas, de magia, de sonhos. Ainda havia muito o que salvar...

Então voltava, recolhia as asas e deitava-se para repousar em pouco e recomeçar outro dia, sugando da terra e dos livros novas energias.

Em suaves momentos, observava os primeiros passos do filho. Preparava-o para ser seu sucessor. Mesmo sabendo que, por ser homem, o filho teria mais dificuldades, desejava passar-lhe toda a sua heroica sensibilidade, toda a sua mágica e toda a sua luz. Tinha esperanças.

Assim se passaram os anos.

Depois de toda uma vida feita de luz, a mulher entregou a asa ao filho e adormeceu para sempre, amparada pelo bom amigo negro e inculto, que se despediu falando com os olhos.

Foi tranquila, conhecendo o futuro que dera ao filho.

De longe, ainda pode ver quando ele pôs a velha asa na mala, disse até logo ao negro, e saiu para percorrer o mundo; e ser poeta.

Fonte:
Olga Agulhon. Germens da terra. Maringá/PR: Midiograf, 2004.

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