quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Vicência Jaguaribe (O Jogo da Amarelinha)


Para todas as mulheres,
que confiam mais do que
recomenda o bom-senso.

Atirei a pedra na casa de número 1 e comecei o jogo. Sabia de cor as regras e conhecia os obstáculos que teria de enfrentar, para chegar com êxito e sem tropeços à última casa — o céu. O perigo morava na passagem da casa de número 10 para a meia-lua celeste. Entre as duas casas, havia o retângulo do inferno, no qual não se poderia mergulhar, por motivos óbvios.

Sabia que iniciava um jogo no qual enfrentaria adversários numerosos e impiedosos — alguns, conhecidos; outros, muito próximos; alguns outros, desconhecidos. Mas todos unidos para me impingir uma derrota exemplar — a derrota de minha vida. Eu, no entanto, não desistiria. Levaria o desafio até o fim.

Com a pedra na primeira casa, fiz o percurso de ida e de volta, ora pulando folgadamente com os dois pés, ora saltando com certa dificuldade com um único pé — o primeiro obstáculo do jogo. A conquista da primeira casa estava garantida, e eu dera o primeiro passo para atingir o paraíso.

Atirada a pedra na casa 2, venci os apuros — todos previsíveis - e fiz uma segunda passagem provisória pelo céu, pulando despreocupadamente as águas do Estige, sem nelas tocar. Garantia a posse de duas casas. Cobriu-me o manto da fantasia, e eu andei pelas nuvens sem tirar os pés da terra.

Enquanto tentava atingir a casa de número 3, encontrei os dois olhos que me seguiam com insistência, e me deixei iludir. Até aquele momento o traçado estava limpo, e os números demarcadores das casas, perfeitos. Nada indicava perturbação.

Ao lançar a pedra na quarta casa, eu estava tranquila. E ela aterrisou serena como uma pétala que se desprende da rosa, por haver terminado seu tempo. Fiz o percurso de ida e de volta sem incidentes ou acidentes. O mar estava em calmaria, e o céu prometia ficar firme até o final do jogo. A jogada seguinte, no entanto, foi infeliz - a pedra projetou-se de mau jeito c caiu fora da casa. Cedi a vez ao outro jogador e esperei. 

Quando a pedra me voltou às mãos, eu já não estava tão tranquila. Alguma coisa me perturbara. Cochichos à minha volta e os primeiros sinais da noite avizinhando-se. Repeti a jogada na casa de número cinco e, desta vez, não houve titubeio. Um pouco mais animada, pulei as casas restantes e voltei sem problemas. Os olhos estavam lá de novo e, envolvida pelo entusiasmo da boa jogada, prometi-lhe tudo, que cumpri ao alcançar a sexta casa. A casa de número 6, o número ambivalente, o número do pecado. Mas eu estava vivendo meu encantamento particular! Não poderia ater-me a esses detalhes.

O delírio envolveu-me quando atirei a pedra no número 7. Os sinos repicaram, as Três Marias começaram a piscar, e a Lua, que se escondia numa nuvem mais escura, lançou seu brilho esbranquiçado sobre mim. Abriram-se as portas do paraíso,

A pedra que lancei em direção à casa 8 caiu bem no centro. Bons presságios! Não considerei, no entanto, o fato de que há falsos oráculos e continuei a entregar-me, não só no plano da fantasia, mas também na dimensão do real.

A vez da casa 9, o número fatídico - o número do fim e do começo. A luz do dia começava a ir embora. Era o momento em que o Sol ofuscava e alucinava. E eu senti um novo começo dentro de mim - o sinal de um novo começo, parte de mim, que também traria o desespero e a infelicidade. Cumpri o percurso de ida e de volta, meio aturdida, meio desnorteada.

Não sei como atingi a décima casa. O número 10... o número do conjunto de leis... O decálogo... a condenação das transgressões. O fruto do pecado dentro de mim. O escândalo... a maldição… O momento definitivo... o salto para alcançar o céu.

Procurei o olhar que me perseguia. Não o encontrei. Estava só! Fechei os olhos e saltei. Não consegui. Caí no centro do retângulo infernal, mergulhando nas leteias águas, no momento exato em que a Terra caía na escuridão de uma noite sem Lua e sem Três Marias.

Fonte:
Livro enviado pela autora.
Vicência Jaguaribe. Ancoragem em porto aberto. RJ: Câmara Brasileira de Jovens Escritores, 2010.

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