sábado, 17 de agosto de 2019

Arthur de Azevedo (Denúncia Involuntária)


O Lustosa era muito boa pessoa, mas tinha um defeito: gostava de intrometer-se na vida alheia, e bisbilhotar o que se passava em casa dos outros. Ele observou que uma bonita senhora, que morava defronte da casa dele, na Rua São Francisco Xavier, era regularmente visitada por dois amantes – um, já de meia-idade, gordo, calvo, pesado, feio, e outro, muito novo ainda, bonito e elegante. O Lustosa imaginou logo, e imaginou muito bem, que o primeiro era o pagador e o segundo o amant de coeur. O primeiro, além de ser mais velho, tinha uns ares de dono de casa que não enganava a ninguém; as suas visitas eram mais demoradas, duravam às vezes toda a noite; ao passo que o outro aparecia de fugida, e não saía para a rua sem primeiro examinar se não passava alguém. Ora, aconteceu que certa noite, achando-se numa soirée familiar em casa de um amigo que fazia anos, o Lustosa foi apresentado ao rapaz, que também lá estava. A pessoa que fez a apresentação afastou-se, e o nosso indiscreto disse logo ao Peixoto que já o conhecia. O moço chamava-se Peixoto.

– Já me conhecia? De onde? – perguntou este muito intrigado.

– Da Rua São Francisco Xavier. .

– Cale-se! Por amor de Deus, não me comprometa! Eu tenho família, sou casado, e minha mulher está aqui! Olhe, é aquela senhora vestida de azul.

– Pois eu supunha-o solteiro; mas descanse; por mim ninguém saberá.

– Aquilo é um contrabando. São destas coisas em que a gente se mete não sabe como, e de que é muito difícil livrar-se.

– Ora! O amigo ainda está na idade, não acabou ainda de pagar o seu tributo; mas tenha cuidado: sexta-feira passada, quando o senhor entrou, o outro mal tinha acabado de sair! Por mais dois ou três minutos encontravam-se à porta. Eu moro defronte, e vi tudo por trás da veneziana.

– O senhor disse "o outro". Que outro?

– O dono.

– Como o dono? O dono sou eu! – Quero dizer: o "marchante". – Não há outro marchante senão este seu criado! Dar-se-á caso que aquela mulher receba um homem quando eu lá não estou? Dar-se-á que me engane?

– Não! Não creio que ela o engane com um homem feio, que podia ser pai do senhor… um sujeito barrigudo… careca…

O Lustosa reconheceu a asneira que tinha feito, mas era tarde.

– Meu caro senhor, disse o Peixoto, as mulheres são capazes de tudo. Tenho aí um carro à porta. Vou até lá. Quero verificar agora mesmo se sou traído por aquele diabo. A ocasião e excelente. Ela não me espera, porque sabe que vim a esta reunião… minha mulher está distraída… Até logo!

O Peixoto saiu, e pouco depois ouvia-se rodar o carro. O Lustosa ficou perguntando a si mesmo quando se corrigiria daquele mau costume de intrometer-se na vida alheia.

O Peixoto voltou ao cabo de uma hora, e foi logo ter com ele.

– Obrigado pelo serviço que me prestou. Surpreendi lá dentro o careca em ceroulas. Ela quis me convencer que era um tio. Desavergonhada! Estou livre daquela péla!

– Pois, senhor, disse o Lustosa, dei rata, dei: mas quem podia supor que o senhor, com essa mocidade e com esses olhos, era o marchante, e o outro, com aquela cara, o coió! Decididamente, em se tratando de mulheres, devemos sempre contar com o absurdo e o inverossímil!

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

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