domingo, 25 de agosto de 2019

Malba Tahan (A Seita dos Iakinis)


Quando o príncipe Livati de Miapola voltava de uma caçada, na grande floresta de Baladeva, viu, casualmente, junto a uma casa rústica da estrada, formosa rapariga,
que trabalhava em grosseiro tear.

Apaixonou-se o príncipe por essa jovem, e, como não pudesse refrear os impulsos de seu coração, dirigiu-se, no mesmo instante, à encantadora desconhecida e pediu-a em casamento.

- Não posso aceitar a vossa generosa proposta, ó príncipe! Porque já sou casada!

E contou, pesarosa, o seu triste romance:

- Meu nome é Vitória - começou - e sou filha de um brâmane muito pobre. Quando eu tinha doze anos de idade, meu pai vendeu-me a um homem perverso chamado Jaradgava, dando-me em troca de uma dívida que fizera no jogo. Meu marido, da casta dos vaixias, tem alma de chandala [1]; trata-me com desprezo, e, não raras vezes, espanca-me impiedosamente!

- Pois fujamos desse bruto! - propôs o príncipe. - Iremos para Hiamavanta e, lá bem longe, casaremos!

- Não posso fugir - replicou a moça. - Embora não sinta a menor afeição por meu algoz, estou presa por um juramento que fui obrigada a fazer!

- Vou oferecer ao teu marido avultada quantia - ajuntou o mancebo. - Estou certo de que a cobiça fará com que ele, repudiando-te, consinta em nosso casamento!

- Nada conseguireis pelo dinheiro - respondeu a moça. - Jaradgava é caprichoso e ciumento. Já apunhalou, por minha causa, um rico mercador de Benares.

E a infeliz, com voz repassada de profunda mágoa, ajuntou:

- Só poderei ser vossa esposa se for levada ao vosso palácio e entregue aos vossos cuidados pela própria mão de meu marido! E isso é impossível! Completamente impossível!

Quando o príncipe regressou, nesse dia, ao castelo, estava triste e abatido. Procurou um velho brâmane, chamado Iama, seu confidente e amigo, contou-lhe o que se havia passado e pediu-lhe que o auxiliasse a vencer a teimosia e o ciúme do facinoroso Jaradgava.

- Estou certo - respondeu o brâmane - de que V. Alteza só poderá vencer esse vaicia [2] perverso, se quiser entrar para a seita dos Iakinis!

O príncipe de Baladeva nunca ouvira falar em semelhante seita: mas resolveu seguir confiante as instruções do prudente brâmane.

No dia seguinte Livati mandou convidar o perigoso Jaradgava para exercer o cargo de mordomo do castelo oferecendo-lhe ótimo salário.  O  ciumento  vaicia  - que  ignorava a paixão do príncipe por sua esposa - aceitou, sem hesitar, o generoso oferecimento.

Alguns dias depois, o príncipe chamou Jaradgava e disse-lhe, em tom confidencial:

- Naturalmente já sabes, meu amigo, que eu pertenço à grande seita dos Iakinis. Os filiados a essa doutrina secreta dedicam a todas as mulheres um amor puro e desinteressado. Quero, portanto, que tragas hoje, ao castelo, uma rapariga de casta elevada e que seja digna, pelos seus dotes naturais, de receber as homenagens que sou obrigado a prestar, segundo as formalidades prescritas pelos iakinistas.

Não se pode calcular a surpresa com que o vaicia ouviu estas palavras. Que seita seria essa? Não estaria o rico senhor de Baladeva sofrendo das faculdades mentais?

O príncipe, como se não percebesse o espanto que a sua inesperada revelação havia causado ao administrador, ajuntou:

- Quando trouxeres a rapariga, deveras levá-la ao salão de honra. E apresentando-a, deveras dizer: - "Eis aqui a mulher que Vossa Alteza pediu!"

Jaradgava retirou-se, tendo prometido que tudo faria como fora ordenado.

Intrigava-o, porém, aquele caso.

- Vou desvendar esse mistério! - pensou. E, no dia seguinte, procurou uma rapariga muito viva e alegre, chamada Noila, e propôs-lhe que o acompanhasse até o castelo de Maipola. Noila, que cultivava toda sorte de aventuras, aquiesceu de bom grado.

Jaradgava levou-a à presença do príncipe.

- Eis aqui - exclamou, solene - a mulher que Vossa Alteza pediu!

O príncipe tomou Noila pela mão e conduziu-a, respeitosamente, ao salão de honra do castelo, cuja porta fechou.

- Vamos ter belos idílios! - murmurou o mordomo.

Quando Noila, momentos depois saiu da sala, perguntou-lhe Jaradgava que galanteios lhe havia dito o príncipe.

- Nada - respondeu Noila. - Sua Alteza colocou-me em um trono riquíssimo, ajoelhou-se a meus pés e adorou-me como se eu fosse uma nova deusa! Obsequiou-me, por fim, dando-me vestidos, enfeites e joias!

E a jovem mostrou ao mordomo do castelo os ricos anéis, os colares, as pomadas e as rutilantes peças de ouro que recebera.

- É estranha essa religião! - murmurou Jaradgava.

Alguns dias depois, o príncipe ordenou a Jaradgava que lhe trouxesse outra rapariga, pois já era chegada, novamente, a ocasião de prestar as homenagens devidas à deusa dos Iakinis.

O mordomo trouxe, desta vez, uma donzela chamada Naraína. Passou-se tudo como da primeira vez. recebendo a jovem, que era da casta dos párias [3], valiosa recompensa.

- É extraordinário! - pensava Jaradgava, cada vez mais intrigado. - Parece-me que essa seita dos Iakinis não passa de uma loucura do príncipe! Não creio existirem no mundo dois homens que tenham, em relação às mulheres formosas, tão estranha maneira de proceder!

Um dia, porém, quando o desconfiado Jaradgava voltava de casa, encontrou sob uma árvore, junto à estrada, um velho brâmane. absorto com a leitura de um grande livro.

E Jaradgava, aproximando-se do velho, perguntou-lhe:

- É verdade, ó brâmane! Que existe no mundo uma seita chamada Iakinis?

O brâmane, que não era outro senão o prudente Iama, que naquele lugar fora postar-se já de propósito - respondeu:

- É verdade, sim, meu filho! A grande seita dos Iakinis existe, há mais de dez séculos, espalhada pelo mundo. Os adeptos dessa elevada doutrina faz o juramento sagrado de respeitar a mulher e de prestar homenagens constantes ao sexo feminino, reduzindo todo esse culto a uma admiração platônica, pura e desinteressada.

E o sábio concluiu, gravemente:

– Os iakinistas, homens extremamente puros, são incapazes de tocar em uma mulher!

Agradeceu Jaradgava ao bom brâmane a preciosa informação e, nesse dia, quando regressou ao castelo, estava já plenamente convencido de que a seita dos Iakinis era, na Índia, uma grande realidade.

Uma semana depois, o príncipe pediu ao seu mordomo que trouxesse ao castelo, para o cerimônia iakinista, uma jovem de boa família.

- E se eu trouxesse minha esposa? - pensou Jaradgava. - É claro que não haveria nisso mal algum! Esses bons iakinistas são inofensivos!

E murmurou, cheio de ambição:

- Bela ideia! Com os presentes que Vitória receber do príncipe estarei riquíssimo em pouco tempo!

O ambicioso vaicia foi nesse mesmo dia a casa e disse à esposa:

- Vou levar-te ao castelo do príncipe de Maipola. Deverás, ao chegar, obedecer a tudo o que o príncipe determinar!

A jovem fitou com indizível espanto o seu terrível marido. Quem teria feito mudar de ideia àquele homem caprichoso e mau?

Jaradgava levou a esposa ao castelo e, na presença do príncipe, exclamou, como já fizera das outras vezes:

- Eis aqui a mulher que Vossa Alteza pediu!
   
O príncipe tomou-a pela mão, levou-a para o grande salão do castelo e, depois de ter fechado cuidadosamente a porta, assim falou:

- Bem vês, querida Vitória, que foi o teu próprio marido que para aqui te quis trazer! Estás desligada de teu juramento! Convenci-o de que ele deveria consentir em nosso matrimônio!

E, ante o incalculável espanto da moça, o príncipe ajuntou:

- Fujamos depressa! Jaradgava pode arrepender-se, de repente, do ato de generosidade que acaba de praticar.

O príncipe abriu uma porta secreta que ficava ao fundo do salão. Foi por essa porta que os dois namorados fugiram, sem que Jaradgava pudesse perceber.

Algumas horas depois foi o rancoroso vaicia sabedor do logro em que havia caído. Era, porém, muito tarde para qualquer vingança. O príncipe e Vitória já estavam longe!

E ainda hoje, na índia, os velhos brâmanes contam:

- Era uma vez uma moça chamada Vitória, que entrou por uma porta, saiu por outra e... acabou-se a história!
_________________________
Notas:
[1] Chandala, na Índia, é o indivíduo expulso da sua casa.
[2] Vaicia - Uma das quatro maiores castas em que se divide o povo hindu.
[3] Párias - Casta antiga, perfeitamente definida, que não é a última nem das últimas. Os párias não se reputam miseráveis e abjetos nem são refugo da sociedade: entretêm o mesmo pudor de sua casta - ou o "castismo", como se diz na Índia - que os brâmanes e os xatrias e tratam as camadas que consideram mais baixas, como as de sapateiros e lavadeiras, com o puritanismo e desdém análogos aos das castas superiores.


Fonte:
Malba Tahan. Os Segredos da Alma Feminina nas Lendas do Oriente.

Nenhum comentário: