O agente do recenseamento vai bater numa casa de subúrbio longínquo, aonde nunca chegam as notícias.
— Não quero comprar nada.
— Eu não vim vender, minha senhora. Estou fazendo o censo da população e lhe peço o favor de me ajudar.
— Ah, moço, não estou em condições de ajudar ninguém. Tomara eu que Deus me ajude. Com licença, sim?
E fecha-lhe a porta.
Ele bate de novo.
— O senhor, outra vez?! Não lhe disse que não adianta me pedir auxílio?
— A senhora não me entendeu bem, desculpe. Desejo que me auxilie mas é a encher este papel. Não vai pagar nada, não vou lhe tomar nada. Basta responder a umas perguntinhas.
— Não vou responder a perguntinha nenhuma, estou muito ocupada, até logo!
A porta é fechada de novo, de novo o agente obstinado tenta restabelecer o diálogo.
— Sabe de uma coisa? Dê o fora depressa antes que eu chame meu marido!
— Chame sim, minha senhora, eu me explico com ele.
(Só Deus sabe o que irá acontecer. Mas o rapaz tem uma ideia na cabeça: é preciso preencher o questionário, é preciso preencher o questionário, é preciso preencher o questionário.)
— Que é que há? — resmunga o marido, sonolento, descalço e sem camisa, puxado pela mulher.
— É esse camelô aí que não quer deixar a gente sossegada!
— Não sou camelô, meu amigo, sou agente do censo…
— Agente coisa nenhuma, eles inventam uma besteira qualquer, depois empurram a mercadoria! A gente não pode comprar mais nada este mês, Ediraldo!
O marido faz-lhe um gesto para calar-se, enquanto ele estuda o rapaz, suas intenções. O agente explica-lhe tudo com calma, convence-o de que não é nem camelô nem policial nem cobrador de impostos nem emissário de Tenório Cavalcanti. A ideia de recenseamento, pouco a pouco, vai-se instalando naquela casa, penetrando naquele espírito. Não custa atender ao rapaz, que é bonzinho e respeitoso. E como não há despesa nem ameaça de despesa ou incômodo de qualquer ordem, começa a informar, obscuramente orgulhoso de ser objeto — pela primeira vez na vida — da curiosidade do governo.
— O senhor tem filhos, seu Ediraldo?
— Tenho três, sim senhor.
— Pode me dizer a graça deles, por obséquio? Com a idade de cada um?
— Pois não. Tenho o Jorge Independente, de catorze anos; o Miguel Urubatã, de dez; e a Pipoca, de quatro.
— Muito bem, me deixe tomar nota. Jorge… Urubatã… E a Pipoca, como é mesmo o nome dela?
— Nós chamamos ela de Pipoca porque é doida por pipoca.
— Se pudesse me dizer como é que ela foi registrada…
— Isso eu não sei, não me lembro.
E voltando-se para a cozinha:
— Mulher, sabes o nome da Pipoca?
A mulher aparece, confusa.
— Assim de cabeça eu não guardei. Procura o papel na gaveta.
Reviram a gaveta, não acham a certidão de registro civil.
— Só perguntando à madrinha dela, que foi quem inventou o nome. Pra nós ela é Pipoca, tá bom?
— Pois então fica se chamando Pipoca — decide o agente. — Muito obrigado, seu Ediraldo, muito obrigado, minha senhora, disponham!
Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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