sábado, 17 de agosto de 2019

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XXIII


ESTRANHO REMORSO...

Às vezes, quando escrevo feliz uma poesia,
me assalta um estranho remorso, incompreensível
que não sei de onde vem:
"Quem sabe? pode ser que esse meu canto de alegria
faça mal a alguém..."

Meu irmão triste, meu irmão doente,
perdoem-me a cantiga frívola e contente,
que me fugiu dos lábios na manhã alvissareira
de verão
Ela brotou sem querer da minha felicidade!
- é  que eu trago uma cigarra cantadeira
e imprudente
dentro do coração!

Não é por mal, não é por mal...

Quem pode condenar a alegria da cigarra
em seu sonho
estival?
- a estridular distraída e tagarela
e a dizer que a vida é bela,
- na árvore verde que há no pátio tristonho
do hospital?

EU SEI QUE ERA
   
Não, não eram teus olhos, que eles estavam cerrados
e embriagados
de misterioso vinho;
nem eram tuas mãos, que elas tateavam
tontas de carinho;
nem era a tua vontade, que havias perdido de ti mesma,
e não encontrarias o caminho....

Eram teus lábios sim, e a tua voz que ainda lutava
com ternura,
num débil balbucio sem alento:
- "Meu amor, é loucura!..."

Eu sei que era! Eu sei que era!
Louco também é o sol, a noite, o mar, o vento!
os pássaros, a terra, o céu, a primavera!

HARPA SUBMERSA

Este retardatário gosto de pureza,
que me vem à boca do fundo coração,
não sei se é tédio ou o sinal de alvoradas renascentes.

Na areia branca onde a onda tenta apagar
vestígios de pés e levar todas as conchas,
me deixo à espera de outra vagas carregadas de conchas
ou de passos que tatuem novas marcas
na epiderme do coração.

Pobre coração marinheiro, tão marcado,
de que canto obscuro desenterras imprevistamente
esta harpa cheia de algas e de sons submersos?

IMPREVIDÊNCIA
Vamos seguindo assim, desprevenidamente
a brincar com  o Destino... e a pensar que brincamos...
quando, na realidade, ele brinca com a gente,
e trama qualquer coisa que não suspeitamos...

Julgamos dominá-lo... e, que somos ? - dois ramos
arrastado por ele ao sabor da corrente...
Bem que percebemos quando nos amamos
mas teimamos, seguindo assim, inutilmente...

Prolongamos em vão um traiçoeiro dilema:
- ou tu te entregarás um dia, com ternura,
ou teremos criado um eterno problema...

Fora disto, há o recuo, bem sei... Mas assim
- tua vida há de ser um remorso sem cura !
- minha vida há de ser uma angústia sem fim !

INCONTENTÁVEL

Quando eu parti, ela chorou, e eu disse
tendo-a entre os braços a enxugar-lhe o pranto:
- "Voltarei logo, meu amor, portanto
não chores, que chorar é uma tolice..."

- "Voltarás?...", perguntou-me. E o seu espanto
quase fez afinal com que me risse.
- " E não hei de voltar, se te amo tanto
e se te quero assim com tal meiguice ?"

E eu que ia me afastar por alguns meses,
fiquei dois dias só. Depois que vim,
ela diz e repete – quantas vezes! –

como quem desabafa imensa dor:
- "Enfim juntos de novo, os dois, enfim!
Mas demoraste tanto meu amor!"

INDISCRIÇÃO...

Tu me perguntas porque escrevo poemas
e estas coisas que dizes que te encantam
tu quiseste saber
como posso fazê-las...

Acaso já indagaste aos rios por que correm
às ondas por que espumam,
e ao céu por que possui tantas estrelas?

INSTANTÂNEO Nº 1 

Há por certo inconstância, maldade, ironia,
no destino que um dia cruza duas vidas
e alheio a uma tragédia imensa:

- põe numa, um grande amor,
e noutra, a indiferença !

INSTANTÂNEO Nº 2
   
Eu vi a asa da borboleta que morreu
rolando ao vento, no chão,
num destino tristonho...

Naquela asa, fina leve, multicor,
como um minúsculo vitral,
via a imagem do sonho...

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 2. SP: Ed. Theor, 1965.

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