sábado, 19 de janeiro de 2008

Sebos, o destino dos livros (Gilfrancisco)

Bibliófilos e discófilos constituem uma seita que ama livros e discos acima de todas as coisas. Eles reviram sebos à procura de raridades, podem não ser nem muito eruditos nem muito importantes. Freqüentadores assíduos dos sebos – lugares onde, aos sábados, vários intelectuais também fazem ponto de encontro – eles passam horas, às vezes dias inteiros, garimpando seus “tesouros”, como costumam chamar suas obras raras.

Nos sebos há um pouco de tudo. Vale a lei da oferta e da procura. Vamos encontrar também, volumes gastos, maltratados ou sujos, edições amareladas, poeira fina, páginas rotas e preços às vezes baixos. Portanto, para quem gosta de livros o salão de festas é uma livraria ou uma biblioteca, pública ou particular.

O acervo dos sebos é formado principalmente pela aquisição de bibliotecas. A morte acaba levando os parentes a se desfazerem dos livros, seja pela dificuldade de manutenção ou simplesmente para se livrarem dos objetos que despertam saudades.

Livros ocupam espaços e os apartamentos são cada vez menores, inclusive na altura, que era por onde as estantes podiam espalhar-se. As vezes, os descendentes não tem os mesmos interesses intelectuais que o chefe da família.

As constantes mudanças de casas para apartamentos pequenos também costumam motivar as pessoas a abrirem mão de suas bibliotecas. E há aqueles proprietários, com cara e coragem, vão importunar logo a viúva ou os filhos do colecionador, e em troca de mísera quantia, transformam o seu estabelecimento em entreposto onde os bibliófilos saciam um pouco de sua sede de saber ou da mania de ter coisas... Uma coisa é certa, não é por questões financeiras, as pessoas que têm boas bibliotecas não necessitariam do pequeno rendimento que a venda de seus livros lhes proporcionaria.

Os sebos, tradicionais comércios de vendas, compras e trocas de livros usados, e que em outras cidades é apenas isso mesmo – comércio, embora trabalhando com mercadoria cultural – que aos poucos vai adquirindo traços de verdadeiro movimento cultural em ascensão, trazendo expectativas de um redimensionamento não só aos que trabalham no ramo mas aos próprios caminhos do comportamento de quem impulsiona a cultura.

O comércio de livros usados se perde na noite dos tempos em todos os países de tradição editorial ele existe, como oportunidade de se encontrar obras raras e esgotadas a preço barato. Em Paris, é denominado de “bouquinerie”, e todo turista que visitou a capital francesa conheceu o pitoresco da fileira de bancas de livros às margens do rio Sena.

No Brasil, os estabelecimentos deste tipo receberam a denominação “sebos”. Nas grandes cidades brasileiras, certas ruas e bairros caracterizam-se pela proliferação deles. É o caso do bairro de Pinheiros, em São Paulo ou o da rua São José, no Rio de Janeiro, que durante muito tempo teve esta característica, de rua dos sebos.

Sebo é enriquecimento cultural: é um local onde se encontra material de vanguarda tradicionalista. Sebo é também antropologia: o livro usado é a história de um leitor, com anotações, frases sublinhadas e história muitas vezes documentada em fotos e documentos familiares esquecidos em páginas passadas e repassadas, e que sebistas sensíveis e atentos já estão colecionando e catalogando em pastas apropriadas. Existe até um Guia de Sebos Brasileiros, que teve sua 1a. edição em 1990.

É ainda nos sebos que vão parar alguns dos volumes roubados das Bibliotecas Públicas, do Arquivo Público, do Instituto Geográfico e Histórico, da Academia de Letras, de Instituto e colégios particulares – como atestam os respectivos carimbos.

Já é tempo de que o humanismo dos sebos seja reconhecido em seu papel social e cultural. Que as pessoas aprendam a ter na palavra “sebo”, quando se trata deste tipo especial de comércio, não mais uma palavra agressiva e feia, e sim algo que recorde bons momentos de convivência com estes amigos fiéis e sábios: os livros, os discos, as revistas...

Num país que a crise econômica vem transformando o hábito de ler num verdadeiro luxo, uma saída para não pagar os preços de ficção científica cobrados pelas livrarias é comprar nos sebos. Hoje, os sebos não são só dos caçadores de livros raros ou das classes mais pobres. O universo de consumidores cresceu e sebistas continuam ampliando seus negócios.

Nesses pontos se vendem, se compram e se trocam livros de literatura, filosofia, história, didáticos, enfim, de todas as especialidades e até mesmo pornográficos. Revistas e também coleção de jornais podem ser encontrados.

Não há preço fixo no sebo. Tudo está aberto a negociação. “O preço, agente discute”, diz um proprietário. Para os sebistas conta muito a curiosidade do freguês. E se alguém demonstrar necessidade e urgência em adquirir um certo volume, o sebista anota tudo com a sua psicologia básica. Neste caso o livro é valorizado. O sebista tem faro para negócio, percebe o tipo de freguês e até a forma como paquera um livro usado. Por este motivo é que se questiona o item”raridade de um volume”. O que pode ser raro para um, pode ser figurinha fácil para outro.
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Gilfrancisco é jornalista, pesquisador e professor universitário.

Fonte:
http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=literatura/docs/sebo

O Conto - como fazer

Teses sobre o conto
(por Ricardo Piglia )
1. Num de seus cadernos de notas Tchekov registrou este episódio: "Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida". A forma clássica do conto está condensada no núcleo dessa narração futura e não escrita.
Contra o previsível e convencional (jogar-perder-suicidar-se) a intriga se estabelece como um paradoxo. A anedota tende a desvincular a história do jogo e a história do suicídio. Essa excisão é a chave para definir o caráter duplo da forma do conto.

2. Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias.
O conto clássico (Poe, Quiroga) narra em primeiro plano a história 1 (o relato do jogo) e constrói em segredo a história 2 (o relato do suicídio). A arte do contista consiste em saber cifrar a história 2 nos interstícios da história 1. Uma história visível esconde uma história secreta, narrada de um modo elíptico e fragmentário.
O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta aparece na superfície.

3. Cada uma das duas histórias é contada de maneira diferente. Trabalhar com duas histórias significa trabalhar com dois sistemas diversos de causalidade. Os mesmos acontecimentos entram simultaneamente em duas lógicas narrativas antagônicas. Os elementos essenciais de um conto têm dupla função e são utilizados de maneira diferente em cada uma das duas histórias.
Os pontos de cruzamento são a base da construção.

4. No início de "La Muerte y la Brújula", um lojista resolve publicar um livro. Esse livro está ali porque é imprescindível na armação da história secreta. Como fazer com que um gângster como Red Scharlach fique a par das complexas tradições judias e seja capaz de armar a Lönrot uma cilada mística e filosófica? Borges lhe consegue esse livro para que se instrua. Ao mesmo tempo usa a história 1 para dissimular essa função: o livro parece estar ali por contiguidade com o assassinato de Yarmolinsky e responde a uma causalidade irônica. "Um desses lojistas que descobriram que qualquer homem se resigna a comprar qualquer livro publicou uma edição popular da "Historia Secreta de los Hasidim". O que é supérfluo numa história, é básico na outra. O livro do lojista é um exemplo (como o volume das "Mil e Uma Noites" em "El Sur"; como a cicatriz em "La Forma de la Espada") da matéria ambígua que faz funcionar a microscópica máquina narrativa que é um conto.

5. O conto é uma narrativa que encerra uma história secreta. Não se trata de um sentido oculto que depende da interpretação: o enigma não é senão uma história que se conta de modo enigmático. A estratégia da narrativa está posta a serviço dessa narrativa cifrada. Como contar uma história enquanto se está contando outra? Essa pergunta sintetiza os problemas técnicos do conto.
Segunda tese: a história secreta é a chave da forma do conto e suas variantes.

6. A versão moderna do conto que vem de Tchekov, Katherine Mansfield, Sherwood Anderson, o Joyce de "Dublinenses", abandona o final surpreendente e a estrutura fechada; trabalha a tensão entre as duas histórias sem nunca resolvê-las. A história secreta conta-se de um modo cada vez mais elusivo. O conto clássico à Poe contava uma história anunciando que havia outra; o conto moderno conta duas histórias como se fossem uma só.
A teoria do iceberg de Hemingway é a primeira síntese desse processo de transformação: o mais importante nunca se conta. A história secreta se constrói com o não dito, com o subentendido e a alusão.

7. "O Grande Rio dos Dois Corações", um dos textos fundamentais de Hemingway, cifra a tal ponto a história 2 (os efeitos da guerra em Nick Adams) que o conto parece a descrição trivial de uma excursão de pesca. Hemingway utiliza toda sua perícia na narração hermética da história secreta. Usa com tal maestria a arte da elipse que consegue com que se note a ausência da outra história.
O que Hemingway faria com o episódio de Tchekov? Narrar com detalhes precisos a partida e o ambiente onde se desenrola o jogo e técnica utilizada pelo jogador para apostar e o tipo de bebida que toma. Não dizer nunca que esse homem vai se suicidar, mas escrever o conto se o leitor já soubesse disso.

8. Kafka conta com clareza e simplicidade a história secreta e narra sigilosamente a história visível até transformá-la em algo enigmático e obscuro. Essa inversão funda o "kafkiano".
A história do suicídio no argumento de Tchekov seria narrada por Kafka em primeiro plano e com toda naturalidade. O terrível estaria centrado na partida, narrada de um modo elíptico e ameaçador.

9. Para Borges a história 1 é um gênero e a história 2 sempre a mesma. Para atenuar ou dissimular a monotonia essencial dessa história secreta, Borges recorre às variantes narrativas que os gêneros lhe oferecem. Todos os contos de Borges são construídos com esse procedimento.
A história visível, o jogo no caso de Tchekov, seria contada por Borges segundo os estereótipos (levemente parodiados) de uma tradição ou de um gênero. Uma partida num armazém, na planície entrerriana, contada por um velho soldado da cavalaria de Urquiza, amigo de Hilario Ascasubi. A narração do suicídio seria uma história construída com a duplicidade e a condensação da vida de um homem numa cena ou ato único que define seu destino.

10. A variante fundamental que Borges introduziu na história do conto consistiu em fazer da construção cifrada da história 2 o tema principal.
Borges narra as manobras de alguém que constrói perversamente uma trama secreta com os materiais de uma história visível. Em "La Muerte y la Brújula", a história 2 é uma construção deliberada de Scharlach. O mesmo ocorre com Acevedo Bandeira em "El Muerto"; com Nolan em "Tema del Traidor y del Héroe"; com Emma Zunz.
Borges (como Poe, como Kafka) sabia transformar em argumento os problemas da forma de narrar.

11. O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que nos permita ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta. "A visão instantânea que nos faz descobrir o desconhecido, não numa longínqua terra incógnita, mas no próprio coração do imediato", dizia Rimbaud.
Essa iluminação profana se transformou na forma do conto.

O CONTO

Calcula-se que o hábito de ouvir e de contar histórias venha acompanhando a humanidade em sua trajetória no espaço e no tempo. Em que momento o primeiro agrupamento humano se sentou ao redor da fogueira para ouvir as narrativas fantásticas ou didáticas capazes de atrair a atenção e o gosto dos presentes e de deixar, no rastro de magia em que eram envolvidas, uma lição e/ou um momento de prazer?

O que se pode afirmar é que todos os povos, em todas as épocas, cultivaram seus contos. Contos anônimos, preservados pela tradição, mantiveram valores e costumes, ajudaram a explicar a história, iluminaram as noites dos tempos.

De Sherazade (uma voz de mulher que conta mil e um contos nas Mil e uma noites, fazendo, dessa forma, a compilação dos contos mais conhecidos no final da Idade Média) aos contistas contemporâneos, a narrativa curta tem sido observada com especial interesse.

A fórmula de compilação e narração de contos até então mantidos no ideário popular adotada nas Mil e uma noites foi largamente adotada e repetida por muitos autores nos anos subseqüentes (Veja-se, por exemplo, o Decamerão, de Bocaccio).

Aos poucos, novas modalidades de contos foram surgindo, diferenciando-se dos contos infantis e dos contos populares, regidos agora por uma nova maneira de narrar, de acordo com a época, os movimentos artísticos que essa época produziu e o estilo individual do autor/narrador.

Luzia de Maria, no volume O que é conto, da coleção Primeiros Passos, introduz seu leitor na discussão das várias modalidades de conto, começando por distinguir “o conto como forma simples, expressão do maravilhoso, linguagem que fala de prodígios fantásticos, oralmente transmitido de gerações a gerações e o conto adquirindo uma formulação artística, literária, escorregando do domínio coletivo da linguagem para o universo do estilo individual de um certo escritor”. [1]

E surgiram os contos de humor, os contos fantásticos, os contos de mistério e terror, os contos realistas, os contos psicológicos, os contos sombrios, os contos cômicos, os contos religiosos, os contos minimalistas, os contos estruturados de acordo com as técnicas da narrativa.

Ricardo Piglia assegura que o segredo de um conto bem escrito é que, na realidade, todo conto conta duas histórias: uma em primeiro plano e outra que se constrói em segredo. A arte do contista estaria em entrelaçar ambas e, só ao final, pelo elemento surpresa, revelar a história que se construiu abaixo da superfície em que a primeira se desenrola. As duas histórias encontram-se nos pontos de cruzamento que vão dando corpo a ambas, embora o que pareça supérfluo numa seja elemento imprescindível na armação da outra.

A história visível e a história secreta, segundo ele, recebem diferentes tratamentos no conto clássico e no conto moderno. No primeiro, uma história é contada anunciando a outra; nos contos modernos, as duas histórias aparecem como se fossem uma só.

Na forma reduzida do conto, a intensidade da busca: “O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que nos permita ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta.” [2]

As qualidades que lhe são apontadas são a concisão e a brevidade, ou seja, é estruturado com uma linguagem densa, com o máximo de economia de palavras. Sua dimensão se dá no sentido da profundidade.

O conto de feição clássica se organiza numa cadeia de acontecimentos que centralizam o poder de atração, apresentando, conseqüentemente, ação, personagens, diálogos. Caracteriza-se como narração de um episódio, uma única ação, com começo, meio e fim, concentrado num mesmo espaço físico, num tempo reduzido. Destaca-se por sua unidade de tempo e de ação.
O conto contemporâneo, reflexo da nova narrativa que se foi construindo nas últimas décadas, substituiu a estrutura clássica pela construção de um texto curto, com o objetivo de conduzir o leitor para além do dito, para a descoberta de um sentido do não-dito. A ação se torna ainda mais reduzida, surgem monólogos, a exploração de um tempo interior, psicológico, a linguagem pode, muitas vezes chocar pela rudeza, pela denúncia do que não se quer ver. Desaparece a construção dramática tradicional que exigia um desenvolvimento, um clímax e um desenlace. Em contrapartida, cobra a participação do leitor, para que os aspectos constitutivos da narrativa possam por ele ser encontrados e apreciados. Exige uma leitura que descortine não só o que é contado, mas, principalmente, a forma como o fato é contado, a forma como o texto se realiza.

1- REIS, Luzia de Maria R. O que é o conto. São Paulo: Brasiliense. 1987, p.10.
2. PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. Caderno Mais, Folha de São Paulo, 30 de dezembro de 2001, p. 24.

Ricardo Piglia é escritor argentino, autor de, entre outros, "Respiração Artificial" (Iluminuras) e "Dinheiro Queimado (Companhia das Letras). O texto acima foi publicado originalmente em "O Laboratório do Escritor" (Iluminuras).

Tradução de Josely Vianna Baptista

Fonte:
http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=literatura/docs/comofazer

Augusto dos Anjos (1884 - 1914)

Referendado como o Poeta da Morte, dos cemitérios, dos ossos e da carne em putrefação, Augusto dos Anjos, ao contrário do que muitos imaginam, segreda em sua obra poética uma filosofia esotérica libertária,capaz de nos guiar pela senda da mais pura transcendência.

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a ingratidão, esta pantera,
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!


Estes são seus "Versos Íntimos", escritos em 1906 pelo poeta Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos, a compor um dos mais declamados trabalhos deste enigmático discípulo de Baudelaire, cuja breve vida esteve marcada por um intenso questionamento filosófico, disseminado por toda a sua obra.

"Versos Íntimos" expõem, de modo formal e cruel, a nossa efêmera condição, fadados que estamos a nos prostrar na lama sepulcral não sem antes experimentarmos toda a sorte de sofrimentos advindos do relacionamento humano.

Só mesmo a perfeição faria toda a filosofia Hobbeana, a considerar o homem lobo do próprio homem, caber assim metrificada nos catorze versos (geralmente dois quartetos e dois tercetos) decassílabos heróicos - 6a e 10a sílabas são tônicas - de um único soneto. O poeta observa laconicamente o definhar de nossos sonhos, lembra-nos a todos de que a ingratidão é o natural presente que nossas mãos estão acostumadas a receber por toda a vida, e nos adverte acerca das traições a que estamos sempre sujeitos, considerando por isso inútil qualquer espécie de remorso que possamos sentir esboçar-se em nosso peito. São versos realistas, eivados de um pessimismo desconcertante, a reproduzir o comportamento da sociedade hipócrita à qual estamos condenados desde o nascimento.

Por dizer verdades como estas, Augusto dos Anjos pagou seu preço. Sua poesia, considerada por muitos impressionista, não agrada à maioria, posto que seus versos rasgam as principais feridas da natureza humana, não acostumada a falar da morte sem estremecer, pouco disposta a observar os erros de sua maneira absurdamente competitiva de viver.

Entretanto, se nos detivermos mais serenamente sobre sua obra, encontraremos não obstante os termos difíceis por onde esbanja o cientificismo, toda uma mística que lhe serve de arcabouço, inequívoca função compensatória para o pessimismo declarado do poeta, sempre a questionar severamente o sentido de nossas vidas. Em alguns de seus sonetos e outras partes não tão popularizadas de seus versos, deparamo-nos com um caráter filosófico ocultista absolutamente singular em toda a literatura brasileira, com genuínas reflexões à moda esotérica, em versos sublimados por uma religiosidade espiritualista, voltados para a libertação e transcendência desta nossa alma, a mesma que, no mais das vezes, vive atormentada.

Augusto dos Anjos nasceu aos 20 de abril de 1884 no engenho do Pau-d’Arco, na Paraíba do Norte. Criado no seio de um austero regime patriarcal, o poeta veio ao mundo em época tumultuada, quando a sociedade assistia ao crescimento dos movimentos abolicionista e republicano que se contrapunham à decadente monarquia de fim de século. Filho do advogado Alexandre Rodrigues dos Anjos e de D. Córdula Carvalho Rodrigues dos Anjos, Sinhá Mocinha para os íntimos, foi alimentado na primeira infância pelo leite da escrava Guilhermina, a quem dedicaria anos mais tarde o soneto "Ricordanza della mia Giuventú"

Augusto, terceiro filho de uma prole de seis, não cursou escola alguma até seus 16 anos, quando iniciou sua produção literária. Recebeu do próprio pai, junto de seus irmãos, todas as lições de humanidades. Somente o caçula não pôde ser educado pelo "Dr. Alexandre", vitimado que fora o genitor pela paralisia geral em 1905, ano em que faleceu; e foi o próprio Augusto quem se encarregou de ensinar o irmão menor. Ao pai, dedicou três sonetos na ocasião: "A meu pai doente", "A meu pai morto", e "Ao sétimo dia de seu falecimento". A família reunida, tomava lições às sombras do tamarindo, árvore que marcou a vida de Augusto, considerada membro da família, sob a qual o jovem se sentava para ler, estudar, e compor seus versos. A "árvore de amplos agasalhos" acha-se homenageada nos sonetos "Debaixo do Tamarindo" e "Vozes da Morte" entre outros, peças de elevada sensibilidade.

Dr. Alexandre era um misantropo. Por nada trocava a quietude de sua vida doméstica, e passava seus dias lendo, sempre alienado das questões administrativas do engenho, que ficavam a cargo de seu primo, Dr. Aprígio, monarquista de índole racista e reacionária. Alexandre era homem ilustrado, dono de vasta biblioteca. Títulos de todos os gêneros incluíam os hinos sagrados do "Rig Veda", cujo nome sânscrito significa "saber", e o "Phtah-Hotep", livro egípcio de sabedoria reputado à V dinastia, cerca de 2400 a.C. Augusto os menciona em seu soneto "Agonia de um Filósofo". O acervo abrangia obras filosóficas, poesia, literatura clássica, códigos do Direito, livros nacionais e obras importadas da Europa que chegavam por navio, escritas em todas as línguas latinas, inglês e alemão, além dos dicionários e das gramáticas de grego e latim. Todos liam de tudo naquela casa, até faziam circular internamente três jornais escritos à mão pelos próprios membros da família, "O Miserável", "O Espinho", e "O Ourinol da Tarde", este último temido pelo tanto de pilhérias que trazia, dirigido com bom humor pelo conservador Dr. Aprígio. Neles, semanalmente, "publicavam-se" crônicas, comentários políticos, opiniões, receitas, enigmas e charadas, além de verdadeiras disputas literárias. Lamentavelmente, deles nada resta; nenhum exemplar desta "imprensa sui generis" sobrou.

A família também se divertia promovendo sessões espíritas. Embora todos ali se intitulassem católicos fervorosos, a virada do século trazia em seu bojo a febre das sessões espíritas, muito praticadas na Europa em torno de manifestações curiosas que alimentavam a crença nos espíritos desencarnados, capazes de interferir em nosso mundo e nos trazer mensagens do além. Augusto dos Anjos não perdeu tempo e resolveu investigar o outro mundo por si mesmo. Passou a promover as sessões na sala de jantar de sua casa, para o desespero de sua mãe que, nestas horas, se agarrava ao terço ou recitava o responso de Santo Antônio, temendo o sobrenatural. Conta-se que Augusto logo passou a ser visto como médium qualificado. Certa feita teria recebido o espírito de Gonçalves Dias que poetou na melhor da verve maranhense. Não houve quem duvidasse da autoria dos poemas psicografados.

Mas convém lembrar que Augusto bem conhecia o estilo dos grandes poetas, ele próprio era repentista nato, capaz de fazer sonetos de cabeça em questão de dois ou três minutos, para só depois transcrevê-los num papel. Porém, nessa época, o Pau-d’Arco foi assolado por medos de assombração de toda gente. A família presenciara fenômenos no estilo Poltergeist na casa grande, eram batidas que à noite assustavam. Na capela do Pau-d’Arco (também cemitério), pegada à casa, surgiram manchas de gordura em seus ladrilhos, às quais o poeta chamou de "óleo malsão". A família estava atarantada. À noite não havia quem abrisse as janelas com medo dos espíritos, e os empregados se apavoraram por conseguinte, julgando que a gordura que escorria na capela era dos espíritos perturbados que haviam acordado com as sessões praticadas por Augusto. Dona Mocinha tomou atitude enérgica e proibiu as tais sessões. Nas "Cismas do Destino", o implicado perpetraria as pancadas que os atemorizavam:

"Todas as divindades malfazejas,
Siva e Ahriman, os duendes, o Yn e os trasgos,
Imitando o barulho dos engasgos,
Davam pancadas no adro das igrejas".

No ano de 1900 matricula-se no Liceu Paraibano, e após rápida passagem pelos bancos escolares presta exames para a Faculdade de Direito de Recife, sendo facilmente aprovado em 1903. Fez o chamado curso vago, estudava no Pau-d’Arco e ia a Pernambuco apenas cumprir as provas que, em seu caso, eram mais severas e incluíam todos os pontos do início ao fim do curso. Nesta época é influenciado pelo positivismo de Comte, propalado aos quatro cantos por seu professor, Tobias Barreto.

O poeta formou-se em 1907, mas, igual ao pai, não exerceu a profissão. Em 1908 é nomeado professor de literatura do Liceu Paraibano. Também passa a dar aulas particulares que serão seu ganha pão, uma vez que a família, por conta das crises econômicas e da vertiginosa baixa do açúcar no mercado internacional, viu-se obrigada a hipotecar seus dois engenhos, para os perder definitivamente em 1910. Neste mesmo ano, aos 4 de julho, casa-se com Ester Fialho, de quem haverá três filhos. O primeiro deles foi um natimorto de sete meses a quem o poeta escreveu seu soneto "Agregado infeliz de sangue e cal...". Em 1912 mudar-se-ia para o Rio de Janeiro, vivendo sempre em pensões baratas e ministrando aulas. Nasce sua filha Glória nesse ano, e no seguinte, Guilherme. Mas sua permanência no Rio seria curta, só serviria mesmo para empreender a publicação de seu livro.

Mas antes de falarmos dele, convém ainda citar outro nome, não muito importante, mas que exerceu certo fascínio sobre a juventude de Augusto. Foi seu tio Generino dos Santos, que não vivia no engenho. Ao visitá-lo provocava-o com os ideais libertários que, como maçon convicto e republicano extremado, professava. Era também defensor ferrenho do positivismo que, embora presente na obra augustiana, não absorveu toda a inquietação do poeta. Augusto fora buscar suas verdades mais além; transpondo o cabedal de toda a literatura clássica, leu Darwin, Leibnitz, também os alemães Spencer e Haeckel, e abraçou-se ao filósofo Schopenhauer, precursor da noção de inconsciente, que o conduziu às portas do brahamanismo e do budismo, temas centrais de Augusto, a denotar a espiritualizada busca de sua mente efervescente, acusada pelos incautos de ter sido meramente pessimista e mórbida.

Exemplo disso é o "Monólogo de uma Sombra"; são 31 sextilhas que abrem seu único livro intitulado "Eu". A primeira edição data de 1912; trazia 58 poemas em 131 páginas impressas pela Princeps da Guanabara, dois anos antes da morte do poeta. Foi custeado por seu irmão Odilon dos Anjos, e não vendeu o suficiente para ressarcir o investimento de 550 mil réis. Só a foto de Augusto, a figurar no livro, custou 50 mil.

O que a princípio possa parecer egolatria, em verdade revela um Eu em amplo sentido de expressão, repleto de conflitos, tomado por densas questões existenciais e uma preocupação permanente com a transcendência da alma. O Eu de Augusto mais parece ser um Eu profundo, distante do ego, e substancializado como essência. Por ele Augusto se apresenta aos leitores em pleno exercício de reflexão cosmogônica, à moda dos antigos pré-socráticos, que se perguntavam acerca do cósmico segredo, a respeito da substância de todas as substâncias. Perpassa por toda sua poética uma noção monista e panteísta do universo, isto é, uma idéia defendida também pelos gnósticos e alquimistas, cuja raiz se encontra no orfismo, de que tudo na natureza é vivo, mesmo a matéria inanimada, e de que cada uma de suas partes representa o todo. À moda schopenhaueriana, Augusto acreditava na expiação como forma de solucionar a perene luta entre as vontades, e aguardava pelo advento de uma humanidade redimida e pura, quando os homens valorizariam o sentido universal da vida em detrimento das questões egóicas e particulares da alma. Isto está bem claro em seu título "Os Doentes", onde encara a morte como mera etapa do processo ininterrupto da vida, a assinalar não o fim, mas uma continuidade ou recomeço de seu perene ciclo.

A métrica rígida, a cadência musical, as aliterações e rimas preciosas dos versos fundiram-se ao esdrúxulo vocabulário extraído da área científica para fazer do "Eu" — desde 1919 constantemente reeditado como "Eu e outras poesias" — um livro que sobrevive, antes de tudo, pelo rigor da forma. Com o tempo, Augusto dos Anjos tornou-se um dos poetas mais lidos do país, sobrevivendo às mutações da cultura e a seus diversos modismos como um fenômeno incomum de aceitação popular.

Augusto dos Anjos bateu também às portas do ocultismo e da teosofia, galgando a mesma senda de Fernando Pessoa, de quem era leitor. Pessoa tornar-se-ia divulgador da doutrina de Mme. Blavatsky em Portugal, tradutor que fora das obras teosóficas de Annie Beasant. A doutrina esotérica ocupava a mente do poeta paraibano, que também se interessou pela astrologia, mas sua breve existência não lhe deu o tempo para que se iniciasse formalmente nas Escolas de Mistério.

Esta sua mística, espécie de filosofia em forma de poesia inclassificável, destoante de qualquer escola literária, transborda por seus intrincados versos, científicos sim, mas sobretudo herméticos. Exemplos tácitos de sua espiritualidade poética, dentre tantos outros, são "O Lamento das Cousas", soneto schopenhaueriano que bem sintetiza os paradoxos atualmente pesquisados pela mecânica quântica; "O Meu Nirvana"; "Caput Immortale"; "Louvor à Unidade", soneto que privilegia a mônada de Leibnitz (ou pitagórica, se preferirem); "Supreme Convulsion"; "Natureza Íntima", verdadeira máxima alquimista, a de que a natureza evolui per si e também em decorrência do aprimoramento pessoal de cada um; "Ao Luar", soneto em que descreve aquilo que bem pode ter sido uma experiência sua fora do corpo, fenômeno este com que se preocupam hoje os parapsicólogos; e "Ultima Visio", no qual é a alquimia gnóstica quem se pronuncia.

Vejamos um dos melhores exemplos desta sua visão budista-panteísta, essencialmente presente em seu diálogo interno "Solilóquio de um Visionário", publicado na citada edição do "Eu":

"Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto!

A digestão desse manjar funéreo
Tornado sangue, transformou-me o instinto
De humanas impressões visuais que eu sinto,
Nas divinas visões do íncola etéreo.

Vestido de Hidrogênio incandescente,
Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais...

Subi talvez às máximas alturas,
Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que inda eu suba mais!"

O poeta, evidentemente, está aqui às voltas com o eterno mistério da morte, ao qual classifica como "velho e metafísico". Caberia uma tese inteira somente sobre este soneto, mas indiquemos o essencial. Suas metáforas tratam mesmo de um corpo que, uma vez enterrado, libertaria sua alma. O poeta diz comer seus olhos crus avidamente, ou seja, imagina transpor seu olhar superficial sobre as coisas, seu entendimento comum da vida. Uma vez liberto dos limites impostos pela carne, ao completar sua "digestão", isto é, ao metabolizar suas reflexões sobre o labiríntico tema, o poeta tem suas impressões visuais (algo próprio dos sentidos físicos) substituídas por visões divinas, recurso dos que se elevam em suas orações, e que permitem perceber as coisas pela ótica superior de um habitante das alturas (íncola etéreo). Esta é a condição da alma "desprendida", que se veste de Hidrogênio incandescente (a maiúscula é alegorizante, sugere não o elemento químico, mas algo extraordinário), original metáfora para o estado anímico incorpóreo. Passa assim o poeta a vagar pelas monotonias siderais, talvez uma alusão ao interregno entre duas existências para todo aquele que, como Augusto dos Anjos, acredite na reencarnação. Mas ele vaga improficuamente, e o sem sentido de seu vagar se explica justamente por causa de sua atual condição, a de se achar encarnado, com a alma às escuras, pois é necessário que nesta existência a alma ainda aprenda mais!

Cético em relação às possibilidades do amor ("Não sou capaz de amar mulher alguma, / Nem há mulher talvez capaz de amar-me"), Augusto dos Anjos fez da obsessão com o próprio "eu" o centro do seu pensamento. Não raro, o amor se converte em ódio, as coisas despertam nojo e tudo é egoísmo e angústia em seu livro patético ("Ai! Um urubu pousou na minha sorte"). A vida e suas facetas, para o poeta que aspira à morte e à anulação de sua pessoa, reduzem-se a combinações de elementos químicos, forças obscuras, fatalidades de leis físicas e biológicas, decomposições de moléculas. Tal materialismo, longe de aplacar sua angústia, sedimentou-lhe o amargo pessimismo ("Tome, doutor, essa tesoura e corte / Minha singularíssima pessoa"). Ao asco de volúpia e à inapetência para o prazer contrapõe-se porém um veemente desejo de conhecer outros mundos, outras plagas, onde a força dos instintos não cerceie os vôos da alma ("Quero, arrancado das prisões carnais, / Viver na luz dos astros imortais").
Augusto dos Anjos, que nunca ficara doente em sua vida, foi tomado por uma pneumonia dupla de funesta proporção. Morreu assim, precocemente, aos 30 anos, em Leopoldina, aos 12 de novembro de 1914. Seu livro foi reeditado por seu amigo Órris Soares, acrescido de todas as suas outras poesias dispersas, em 1920. Desde então vem sendo o poeta nordestino mais lido, também o menos compreendido. Poeta não da morte, nem da carne em putrefação, mas sim da vida, capaz que foi de ver o mundo num grão de areia e de ouvir verdades ditas pelas pedras mortas

Fontes:

URBAN, Paulo. Augusto dos Anjos: O Poeta da Espiritualidade. Publicado na Revista Planeta nº 337 / outubro 2000. Disponível em


Conto de Ficão Cientifica: Lucy in the Sky with Diamonds

O que havia era um calmo "mar" escuro, que foi perturbado por um pequenino fio luminoso amarelado com bordas vermelhas. Depois foi ficando cada vez mais intenso; ofuscando a vista. Um arco incandescente começou a se formar com uma beleza indescritível; agora um pequeno ponto se destacava no centro da semi-esfera como um ponto mais luminoso. Logo a cabine ficou completamente iluminada, os raios amarelados entravam pela pequena janela e a cabine começava a ficar aquecida. A íris de Michelle se contraiu involuntariamente para se acostumar com a luz. Já estava em órbita há três meses, mas ainda se deslumbrava com o amanhecer visto a mil quilômetros da superfície terrestre. "Here comes the Sun", pensou Michelle.

Michelle teria que se preparar para mais um dia de trabalho; além de ocupar o cargo de Comandante da Estação Espacial LUCY, suas culturas de morangos estavam em um estado adiantado de desenvolvimento. Era impressionante como os morangos (e outros vegetais) se desenvolviam quando estavam "sem peso". Principalmente com um ambiente sob medida (luz, umidade e temperatura) e uma espécie de cortiça porosa que continha tudo aquilo que o melhor solo terrestre podia oferecer. Assim que a tecnologia fosse mais desenvolvida, a Terra teria "Campos de Morangos para sempre!!!" Pensava Michelle.

Para variar, outra cena cômica se deu durante suas abluções matinais. Hoje foi o sabonete que escapou para o teto. Resolvido o pequeno incidente, Michelle se dirigiu ao módulo cilíndrico "Miss Eleanor Rigby", que dava acesso à sala de exercícios. Ao passar pela cabine do Sargento Peppers, observou que ele, novamente, não havia prendido bem as amarras ao dormir, e estava no teto batendo levemente com a cabeça no duto de ventilação que o havia "sugado" lentamente durante a noite. Havia uma grande vantagem em uma Estação Espacial: se você perdesse alguma coisa, essa coisa iria invariavelmente se dirigir ao duto de ventilação.

Depois de uma hora na bicicleta ergométrica, Michelle se sentia melhor, já que ativara a circulação em seu corpo e exercitara suas pernas. A imponderabilidade, causava várias mudanças no corpo humano. Como o corpo está em queda livre, o sangue se dirige para a cabeça, deixando-a inchada, com os olhos vermelhos e o nariz entupido (por isso dizem que a comida de astronauta não tem gosto, o sentido do olfato fica muito debilitado em órbita); as pernas ficam finas, com o os músculos gelatinosos. A pessoa fica alguns centímetros mais alta, pois sua coluna vertebral não precisa sustentar o peso do corpo; o famoso "frio na barriga" é constante, já que o aparelho digestivo fica "flutuando". Outro problema é que o cálcio dos ossos escapa pela urina, deixando os ossos frágeis. Com a diminuição dos movimentos, consome-se menos oxigênio, diminuindo em até 20% o número de glóbulos vermelhos no sangue. Por essas e outras, é necessário uma dieta ricam em todos os tipos de alimentos e uma boa dose de exercícios.


Michelle estava pronta para mais um dia de trabalho. Encontrou com o Doutor Robert no caminho da sala de comunicações. Ele era o responsável pela saúde da tripulação. Michelle entrou no pequeno cilindro. Tinha que dizer a senha diária ao computador:

_"Yellow Submarine". Disse Michelle.

_Bom dia Cap. Michelle. Respondeu a Unidade de Inteligência Artificial (UIA).

_Bom dia Walrus. Respondeu Michelle.

_Cap. Michelle, acabo de receber uma mensagem.

_Não vá me dizer que você não tem a menor idéia de onde ela vem! Não vejo nenhum monolito por aqui! Disse Michelle em tom jocoso.

_Entendi sua observação Cap. Michelle... Meus bancos de dados possuem várias referências... Ficção Científica do século XX. Interessante, mas completamente absurda. Uma UIA é incapaz de fazer o que aquele HAL-9000 cometeu. Ironia, uma coisa curiosa exclusiva aos humanos. A mensagem é da Terra, é urgente.

_Me desculpe Walrus. Reproduza a mensagem, por favor. Disse Michelle com arrependimento. Mas logo se sentiu uma idiota, computadores não tem sentimentos. Pelos menos não deveriam ter...

A voz que saiu do auto-falante era impessoal e sem personalidade.

_Estação LUCY, atenção! Um acidente ocorreu com o Módulo de Transporte "Penny Lane". Um destroço de menos de 5cm de um antigo satélite se chocou com o giroscópio do Módulo. Eles perderam o alinhamento e passarão por uma órbita ao lado de vocês. O comunicador deles está avariado e o piloto automático se foi. O controle está manual.

_Que coisa! Ser atingido por um destroço no espaço é o mesmo que ser atingido por um meteorito na superfície da Terra! É impossível! Exclamou Michelle.

_Existem três casos registrados em meus bancos de dados com pessoas que foram atingi...

_Silêncio Walrus! Estabeleça contato com a Terra agora! Disse Michelle.
Alguns segundos depois, a Superintendente da Agência Espacial Mundial estava no visor da LUCY. Todas as atividades da Estação estavam suspensas. Foi instalado o regime de alerta total. Uma tripulação de 4 homens estava quase a deriva em órbita, e a única esperança era que o piloto encontrasse a Estação Espacial LUCY visualmente e atracasse com ela.

_Doutora Yoko. Como o Piloto irá ver a estação? Estamos na sombra da Terra; o Sol ainda está atrás de nós. Eles não recebem o rádio-farol; na certa está avariado também! Assim que o piloto ver nossas luzes, será tarde demais para ele manobrar em nossa direção e passará direto! A próxima vez que nos encontrarmos poderá ser tarde demais!! Disse Michelle com o rosto completamente molhado de suor (apesar da temperatura da cabine permancer em 22º Celsius) Apenas o Doutor Robert e o Sargento Peppers estava com ela na cabine.

_Ainda não sabemos!! A nave de resgate "Mystery Tour" só sairá em seis horas, e levará outras três para se encontrar com a "Penny Lane". Pelo radar, ela passará por vocês em trinta minutos, temos que pensar em alguma coisa. Recebemos uma leitura de que há vazamento de oxingênio na "Penny Lane". Disse a Doutora Yoko que ainda aparentava um rosto sonolento.

_Entre em contato conosco o mais rápido possível.

_Nossos melhores homens em Terra estão trabalhando numa solução. Entraremos em contato assim que tivermos uma idéia!

O monitor ficou escuro, refletindo apenas o reflexo perplexo da Cap. Michelle.

_Que ótimo! A batata quente está em nossas mãos! Disse Michelle fazendo um gesto de concha com as mãos.

Os dois homens se olharam e deram de ombros. Eles não tinham a menor idéia de como resolver esse sério problema. Michelle flutuava de um lado para o outro dentro da cabine. Perguntou ao Sargento Peppers se adiantaria ir até lá fora e fazer sinal com alguma lanterna. A resposta foi negativa. O Módulo de Fuga "Help" que ficava preso ao casco da estacão não possuía sistema de navegação. As comunicações por rádio estavam cortadas. Apenas as visuais, mas as luzes que possuíam não eram suficiente para avisar ao "Penny Lane" onde eles estariam. Michelle supirou.

_Cap. Michelle, a senhora deve se acalmar, tome um pouco de água fresca. Disse o Doutor Robert. Era estranho um senhor inglês de quarenta e setes anos se dirigir para uma bela jovem francesa de vinte quatro anos por senhora. Ne certa seria pelo cargo.

_Não me chame de senhora Doutor! E eu não estou com sede, estou com...Espere aí!

_O que foi? Perguntou Peppers.

_Água! É isso!!! Walrus, onde está o Sol? Quando os raios nos alcançarão? Disse Michelle com um expressão de quem havia visto um fantasma.

_O Sol está a 20º acima do horizonte terrestre. Os raios solares ainda não atingiram nossa órbita por estarmos indo a favor da rotação terrestre com uma defasagem de 35%. Quando os raios atingirem a Estação LUCY, o Módulo "Penny Lane" já terá passado da órbita em 2 minutos e 13 segundos. Respondeu o computador.

_Ótimo!! Walrus, abra as válvulas dos tanques de água 2 e 3. Disse Michelle.

_Com todo o respeito Cap. Michelle, mas a senhora tem certeza dessa ordem? Qual o motivo dela? Perguntou o Sargento Peppers.

_Não me chame de senhora! Depois eu explico! Walrus, execute a ordem!

_Sim Cap. Michelle. Respondeu o computador enquanto abria as válvulas. A água saía dos tanques que mantinham toneladas de pressão em suas paredes com uma fúria enorme.

A pressão externa era praticamete zero, fazendo com que o conteúdo dos tanques fossem "sugados" pelo vácuo do espaço numa avalanche.

_Paul!! Veja isso!! Quê diabos é aquilo?? Apontou o piloto Starr para a pequena janela da cabine de controle da "Penny Lane".

_Parece uma nuvem!! Uma nuvem aqui no espaço??? Ela brilha, como se fosse feita de milhares de pequenas luzes!!

_O que foi? Perguntou o Engenheiro Lennon que entrava naquele momento na cabine.

_Veja!! É a coisa mais linda que já vi!! Parece uma nuvem de pequenos "diamantes", milhares deles!! Um pequeno arco-íris está sendo formado!! Disse o pequenino piloto.

Os três homens ficaram em silêncio por alguns segundos paralizados pela visão que tinham através da pequena janela da cabine. O Capitão Paul colocou as mãos à cabeça e gritou:

_Mande George parar como os reparos!! Já sei o que é aquilo!! Starr, vá em direção da nuvem!!

_Em direção na nuvem? Mas...

_Faça o que mandei!!

Alguns minutos, no meio da manta brilhante que se formara no espaço, o piloto pôde ver as luzes da Estação LUCY.

_Lá está!! Conseguimos!! Agora é só levar a "Penny Lane" com cuidado. Mas o que é essa coisa brilhante? Perguntou Starr.

_Você ainda não descobriu? Disse Lennon.

_Acho que não. Me diga logo!!

_Bem só pode ser uma coisa!! Paul teve um palpite de que aquilo fosse alguma coisa vinda da Estação Espacial LUCY. A Estação sabia que estávamos por perto, mas não sabiam onde exatamente.

_Você ainda não disse o que é essa Nebulosa Brilhante!!! Disse o pequeno piloto com cara de raiva.

_Calma!!! Como eu disse, sabíamos que a Estação LUCY estava por perto. De repente uma nuven de pequenos "diamantes" começa a brilhar numa órbita próxima a nossa. Note que o Sol está atrás da nuvem. Essa nuvem só pode ter vindo de LUCY. Ao vermos os "diamantes", saberíamos de onde eles viriam. É só pensar!! Os "diamantes" são feitos de cristais de ÁGUA!! Na certa o capitão da Estação mandou abrir as válvulas dos tanques, que possuem milhares de litros. Assim que a água escapa para o espaço, acontecem duas coisas: a água evapora e congela ao mesmo tempo!! Como a pressão no vácuo tende a zero, o ponto de ebulição da água é baixíssimo, fazendo-a evaporar instantaneamente; mas como a temperatura no espaço é de 3 Kelvins (-270º Celsius), quase zero absoluto, a água congela!! Mas como eu disse, ela evapora milésimos de segundo antes e, congelando, se transforma em cristais de gelo, que, iluminados pelos raios do Sol que estão logo atrás, brilham e decompõem a luz, como pequenos prismas, fazendo aquele espetáculo maravilhoso que vimos a pouco.

_Puxa!! Como sou burro!! Disse o piloto Starr.

_Não se preocupe com isso, você ainda tem que se preocupar em fazer a junção com LUCY. Disse o Engenheiro Lennon.

Depois, tudo ocorreu perfeitamente bem. O Módulo de Transporte "Penny Lane" se conectou perfeitamente com a Estação LUCY graças a perícia de Starr. As duas tripulações se abraçavam e comemoravam com muita água e música de um antigo grupo de rock inglês do século XX. Afinal quatro astronautas escaparam por pouco da morte iminente graças a genial idéia da Cap. Michelle em transformar a região ao redor da Estação Espacial numa espécie de prisma gigante, espalhando luzes coloridas pelo espaço. No meio da escuridão quase completa, era óbvio que a tripulação da "Penny Lane" avistaria "LUCY no Céu com Diamantes!!!"

Fonte:
http://galaxiabr.vilabol.uol.com.br/lucyintheskywithdiamonds.htm

Beatriz Francisca de Assis Brandão (1779 - 1868)

Vida

Beatriz Francisca de Assis Brandão nasceu na cidade de Vila Rica, então capital da província de Minas Gerais, atual Ouro Preto, a 29 de julho de 1779. Filha do sargento-mor Francisco Sanches Brandão e de Isabel Feliciana Narcisa de Seixas. Dedicou-se à poesia, à prosa e à tradução, assinando-se apenas com o prenome à guisa de pseudônimo, D. Beatriz, no período em que colaborava para a Marmota Fluminense.

Depois de publicar seus versos no Parnaso brasileiro, os reúne em volume sob o título de Cantos da mocidade, em 1856. A segunda obra publicada foi Carta de Leandro a Hero, e Carta de Hero a Leandro, também no Parnaso brasileiro. Em 28 abril de 1868, já bastante conhecida, mereceu um artigo, no Correio Mercantil, intitulado "Prima de Marília", onde se lê que "D. Beatriz era um ânimo varonil e uma inspirada poetisa."

D. Beatriz dedicou-se também ao ensino. Dirigiu em Vila Rica um educandário para meninas. E participou da nossa imprensa, tendo publicado no Guanabara e na Marmota Fluminense, de 1852 a 1857.

Faleceu no Rio de Janeiro a 5 de fevereiro de 1868.

É a patrona da cadeira n° 38 da Academia Mineira de Letras e pertenceu à Sociedade Promotora da Instituição Pública da Cidade de Ouro Preto.

Obra:

Poesias. In: BARBOSA, Januário da Cunha. Parnaso brasileiro ou collecção das melhores poesias dos poetas do Brasil, tanto inéditas, como já impressas. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1831. v. 2, cad. 5°, p. 27-38.

Carta de Leandro a Hero, traduzida do francês, e dedicada à Senhora D. Delfina Benigna da Cunha, e Carta de Hero a Leandro. In: BARBOSA, Januário da Cunha. Parnaso brasileiro ou collecção das melhores poesias dos poetas do Brasil, tanto inéditas, como já impressas. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1832. v. 2, cad. 7°, p. 7-28.

Cantos da mocidade. Rio de Janeiro: Emp. Typ. Dous de Dezembro,1856. v. 1.

Saudação à Ilma. e Exma. Sra. Dona Violante Atabalipa Ximenes de Bivar e Velasco. Poesia em versos hendecassílabos, que vem em um livro anunciado por B.X.P. de Sousa, em 1859.

Catão. Drama trágico pelo abade Pedro Metastásio, traduzido do italiano. Rio de Janeiro: Typ. B.X.P. de Sousa, 1860. É precedido de uma dedicatória em versos à princesa Dona Januária.

Lágrimas do Brasil. Poesia em versos hendecassílabos, no mausoléu levantado à memória da excelsa rainha de Portugal, dona Estefânia. Rio de Janeiro, 1860.

As comendas. Rio de Janeiro, s. d. Poesia.

Romances imitados de Gessner. Rio de Janeiro: Typ. B.X.P. de Sousa, s.d. Poesia. 32 p. Contém dois pequenos romances em versos: "O caçador" e "Lelia e Nerina".

Óperas traduzidas para o português: Alexandre na Índia, José no Egito, Sonho de Cipião, Angélica e Medoro, Semíramis reconhecida, Diana e Endimião.

Drama à coroação de D. Pedro I, posto em música, cantado no teatro. (Não foi impresso.)

Drama ao nascimento de D. Pedro II, posto em música, cantado no teatro. (Não foi impresso.)

Cantata aos anos da imperatriz D. Leopoldina.

Textos

Soneto

Estas, que o meu Amor vos oferece,
Não tardas produções de fraco engenho,
Amadas Nacionais, sirvam de empenho
A talentos, que o vulgo desconhece.

Um exemplo talvez vos aparece
Em que brilheis nos traços, que desenho:
De excessivo louvor glória não tenho,
E se algum merecer de vós comece.

Raros dotes talvez vivem ocultos,
Que o receio de expor faz ignorados;
Sirvam de guia meus humildes cultos.

Mandei ao Pindo os vôos elevados,
E tantos sejam vossos versos cultos,
Que os meus nas trevas fiquem sepultados.

Soneto

Voa, suspiro meu, vai diligente,
Busca os Lares ditosos onde mora
O terno objeto, que minha alma adora,
Por quem tanta aflição meu peito sente.

Ao meu bem te avizinha docemente;
Não perturbes seu sono: nesta hora,
Em que a Amante fiel saudosa chora,
Durma talvez pacífico e contente.

Com os ares, que respira, te mistura;
Seu coração penetra; nele inspira
Sonhos de amor, imagens de ternura.

Apresenta-lhe a Amante, que delira;
Em seu cândido peito amor procura;
Vê se também por mim terno suspira.

Soneto

Meu coração palpita acelerado,
Exulta de prazer, de amor delira,
Novo alento meu peito já respira,
É mil vezes feliz o meu cuidado.

O meu Tirce de mim vive lembrado,
Saudoso, como eu, por mim suspira;
Que seleto prazer a esta alma inspira
A amorosa expressão do bem amado!

Doce prenda dos meus ternos amores,
Amada, suavíssima escritura,
Que em meu peito desterras vãos temores;

Em ígneos caracteres na alma pura
Grava, Amor, com os farpões abrasadores
Estes doces penhores da ternura.

Soneto

Que tens, meu coração? Porque ansioso
Te sinto palpitar continuamente?
Ora te abrasas em desejo ardente,
Outra hora gelas triste e duvidoso?

Uma vez te abalanças valeroso
A suportar da ausência o mal veemente;
Mas logo esmorecido, descontente,
Abandonas o passo perigoso?

Meu terno coração, ela, resiste,
Não desmaies, não tremas; pode um dia
Inda o Fado mudar o tempo triste.

Suporta da saudade a tirania,
Que ainda verás feliz, como já viste,
Raiar a linda face da alegria.

Fontes:
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/catalogo/beatriz_vida.html
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/catalogo/beatriz_obra.html
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/catalogo/beatriz_textos.html

Literatura Feminina (Virginia Woolf)


Fonte:
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/

Ludwig Tieck (Conto de Fadas: O Loiro Eckbert)

Tradução de Karin Volobuef

Em uma região da Hercínia morava um cavaleiro que comumente era chamado apenas de O Loiro Eckbert. Ele contava cerca de quarenta anos, mal alcançava estatura mediana, e seus cabelos louros claros caíam curtos e lisos bem rente ao semblante pálido e descarnado. Levava uma vida pacata e reservada, e jamais se envolvia nas contendas de seus vizinhos, além disso, só muito raramente era visto fora dos muros de circunvalação de seu pequeno castelo. Sua esposa apreciava igualmente a solidão, e ambos pareciam amar-se do fundo de seus corações, sendo usual queixarem-se apenas do fato de que o céu se recusava a abençoar seu casamento com filhos.

Só raramente Eckbert recebia visitas de hóspedes, e quando isso acontecia, quase nada era alterado por causa deles no modo de vida habitual, a temperança residia ali e a parcimônia em pessoa parecia ordenar tudo. Nessas ocasiões, Eckbert ficava jovial e de bom humor, apenas quando ficava sozinho é que se percebia nele um certo ar taciturno, uma melancolia silenciosa e retraída.

Ninguém vinha ao burgo tão amiúde como Philipp Walther, um homem a quem Eckbert se havia associado por encontrar nele uma forma de pensar muito semelhante à sua própria . Sua morada propriamente dita ficava na Francônia, mas com freqüência ele permanecia mais da metade do ano nas cercanias do burgo de Eckbert coletando ervas e seixos e ocupando-se em colocá-los em ordem, vivia de uma pequena fortuna e por isso não dependia de ninguém. Eckbert muitas vezes acompanhava-o em seus passeios solitários, e de ano a ano os dois ficavam unidos por uma amizade mais estreita.

Há momentos em que a pessoa é tomada de angústia se tiver que manter um segredo que até então vinha ocultando de seu amigo com grande desvelo; nessa hora, a alma sente um impulso irresistível de compartilhar tudo, de descerrar frente ao amigo inclusive as coisas mais íntimas, a fim de tornar essa amizade tanto mais sólida. Nessas ocasiões as almas se revelam uma à outra em sua fragilidade, e de vez em quando também pode suceder-se de uma retroceder assustada diante da amizade da outra.

Já era outono quando numa noite nebulosa Eckbert se achava sentado com seu amigo e sua esposa Bertha junto ao fogo de uma lareira. As chamas lançavam um vivo clarão através do aposento e brincavam no teto; a noite espreitava lúgubre pelas janelas adentro, e as árvores lá fora estremeciam com a fria umidade. Walther queixou-se do longo caminho de retorno que teria de percorrer, e Eckbert sugeriu-lhe que pernoitasse ali, passando parte da noite com uma conversa descontraída e depois indo ainda dormir até o amanhecer em um dos aposentos da casa. Walther aceitou a proposta, e então foram trazidos o vinho e a ceia, o fogo foi realimentado com madeira e a conversa entre os amigos foi ficando cada vez mais alegre e espontânea.

Depois de os pratos terem sido retirados e os servos se afastado, Eckbert tomou a mão de Walther e disse: "Meu amigo, vós deveríeis aproveitar a ocasião e ouvir de minha esposa a história de sua infância, que é bastante incomum." - "Com prazer", disse Walther, e sentaram-se novamente junto à lareira.

Era então justamente meia-noite, a Lua espreitava em intervalos por entre as nuvens que passavam esvoaçantes. "Espero que vós não haveis de me considerar importuna", começou Bertha, "meu esposo diz que tendes uma maneira de pensar tão nobre que seria errado ocultar-vos alguma coisa. Peço-vos porém que, por mais inusitada que minha narrativa possa parecer, não a tomeis por um conto de fadas.

Nasci em uma aldeia, meu pai era um pobre pastor. As condições de meus pais não eram das melhores, muitas vezes eles não sabiam de onde poderiam tirar o pão. Mas o que eu lastimava bem mais era que meu pai e minha mãe amiúde se altercavam por causa de sua pobreza e então um fazia amargas censuras ao outro. Além disso, constantemente diziam que eu era uma criança tola e estúpida, incapaz de realizar até as tarefas mais insignificantes, e, de fato, eu era por demais inepta e desajeitada, sempre deixava cair as coisas , não aprendia nem a costurar nem a fiar, não conseguia ajudar em nenhum serviço doméstico, somente a penúria de meus pais, isso eu compreendia muito bem. Com freqüência ficava então sentada num canto com a cabeça cheia de fantasias sobre como haveria de ajudá-los se de um momento para outro me tornasse rica, e como haveria de acumulá-los de ouro e prata e me deliciar com seu assombro; aí via espíritos elevando-se pelos ares e me indicando tesouros enterrados ou dando-me pequenos seixos que se transformavam em pedras preciosas, enfim, ocupava-me das mais mirabolantes fantasias e, quando depois disso tinha que me levantar para ajudar em algo ou carregar alguma coisa, mostrava-me ainda bem mais desajeitada porque minha cabeça estava zonza com todos aqueles sonhos quiméricos.

Meu pai sempre ficava muito zangado comigo por eu ser assim um fardo totalmente inútil para eles; por isso, tratava-me muitas vezes de modo bastante cruel, e era raro receber dele uma palavra gentil. Assim eu alcancei algo em torno dos oito anos de idade e nessa época foram tomadas medidas sérias para que eu fizesse ou aprendesse alguma coisa. Meu pai considerava que tudo não passava de capricho ou indolência de minha parte a fim de passar meus dias em ociosidade; resumindo: ele começou a me perseguir com veementes ameaças, quando porém elas não trouxeram nenhum fruto, surrou-me da maneira mais atroz dizendo que essa punição seria repetida todos os dias uma vez que eu não passava de uma criatura inútil.

Durante toda aquela noite chorei amargamente, sentia-me abandonada ao extremo, sentia tamanha pena de mim mesma que desejava morrer. Temia o alvorecer do dia, estava totalmente desnorteada e sem saber o que fazer; desejava possuir todas as habilidades imagináveis, e não conseguia entender por que era menos capaz do que as outras crianças que conhecia. Estava à beira do desespero.

Quando despontou o dia, levantei-me e, quase sem que o soubesse, abri a porta de nossa pequena cabana. Encontrei-me no campo aberto, pouco depois estava numa floresta em que ainda mal chegava a luz do dia. Fui correndo sem parar e nunca olhava para trás, não sentia qualquer cansaço, pois continuava acreditando que meu pai ainda poderia me alcançar e, irritado pela minha fuga, tratar-me-ia com crueldade redobrada.

Quando alcancei o fim da floresta o Sol já estava bastante alto; percebi nesse momento que havia à minha frente algo escuro e encoberto por uma densa névoa. Ora tive que escalar colinas, ora seguir por um caminho que serpenteava por entre rochedos, e eu presumi então que devia estar na serra circunvizinha, e comecei a sentir-me apavorada naquela solidão. Pois lá na planície nunca vira nenhuma montanha, e quando ouvira alguém mencionando serras, a própria palavra já soara assustadora aos meus ouvidos infantis. Não tive coragem de retornar, foi meu medo justamente o que me impeliu adiante; muitas vezes olhava sobressaltada para trás quando o vento passava sobre minha cabeça e se infiltrava pelas árvores ou quando uma machadada longínqua ressoava através da manhã silenciosa . Por fim, ao deparar-me com carvoeiros e mineiros e ouvir uma pronúncia estranha, por pouco não caí desmaiada de horror.

Perdoai minha prolixidade; sempre que falo dessa história, involuntariamente torno-me loquaz, e Eckbert, a única pessoa a quem a narrei, sempre prestou tamanha atenção que me deixou mal-acostumada.

Atravessei diversas aldeias e pedi esmolas, pois agora sentia fome e sede; conseguia arranjar-me razoavelmente com as respostas quando alguém perguntava algo. Já avançara assim por uns quatro dias, quando fui dar em uma pequena vereda que foi me levando cada vez mais para longe da estrada principal. Os rochedos à minha volta começaram nesse ponto a apresentar uma forma diferente, bem mais estranha. Eram penhascos empilhados uns sobre os outros, que davam a impressão de que o primeiro sopro de vento os faria despencar para todos os lados. Fiquei em dúvida se deveria prosseguir. Durante as noites sempre havia dormido na floresta, pois estávamos justamente na estação mais amena do ano, ou então em cabanas de pastores isoladas; mas ali não encontrava nenhuma moradia humana nem podia ter a expectativa de deparar-me com uma nesse descampado; os rochedos foram tornando-se cada vez mais tenebrosos, obrigando-me diversas vezes a passar bem próximo a abismos vertiginosos, e, por fim, até mesmo a trilha sob os meus pés desapareceu . Fiquei absolutamente desconsolada, chorei e gritei, e o eco de minha voz respondeu nos vales rochosos de uma maneira aterrorizante. Então caiu a noite e escolhi um canto coberto de musgo para nele repousar. Não pude dormir; durante a noite ouvi os ruídos mais estranhos, que ora tomava por animais selvagens, ora pelo vento gemendo entre as rochas, ora por pássaros inusitados. Rezei e adormeci só muito tarde, pouco antes de amanhecer.

Acordei com a luz do dia batendo em minha face. À minha frente havia um rochedo íngreme; escalei-o na esperança de poder descobrir lá de cima uma saída desse descampado e eventualmente divisar casas ou pessoas. Mas quando alcancei o cimo, tudo ao meu redor, tão longe quanto a vista alcançava, era igual ao lugar em que me encontrava, tudo estava submerso em uma neblina perfumada, o dia estava cinzento e lúgubre, e meus olhos não conseguiam distinguir nenhuma árvore, nenhum prado, nenhum arbusto sequer, exceto umas poucas ramas dispersas que haviam crescido, solitárias e tristonhas, de algumas fendas estreitas nas rochas. Não é possível descrever a saudade que eu sentia de avistar ao menos um único ser humano, ainda que ele fosse dos mais estranhos e me inspirasse temor. A fome mortificava-me enquanto isso, sentei-me e decidi-me a morrer. Algum tempo depois, porém, a vontade de viver saiu vitoriosa, reuni minhas forças e caminhei o dia inteiro sob lágrimas, sob suspiros intermitentes; por fim já mal tinha consciência de mim, estava com sono e esgotada, já mal tinha o desejo de viver e, ainda assim, receava a morte.

Perto do anoitecer a região à minha volta pareceu tornar-se um pouco mais aprazível , minhas idéias e minha vontade reavivaram-se, o desejo de viver despertou em todas as minhas veias. Julguei então ouvir ao longe o zunir de um moinho, acelerei meus passos e quão bem, quão leve me senti quando realmente acabei por alcançar os limites do deserto de rochedos, e mais uma vez estendiam-se à minha frente bosques e prados com longínquas e suaves montanhas. Era como se tivesse saído do inferno e entrado no paraíso, a solidão e meu estado de desamparo nesse momento já não pareciam mais assustadoras.

Em lugar do esperado moinho fui dar numa cachoeira, o que por certo reduziu bastante minha alegria; estava colhendo com a mão um gole de água do regato quando de súbito tive a impressão de ouvir a alguma distância o som abafado de alguém tossindo. Nunca fora tão agradavelmente surpreendida como nesse momento, caminhei naquela direção e, na orla da floresta, divisei uma anciã que parecia estar descansando. Estava trajada quase totalmente de preto, uma mantilha negra cobria sua cabeça e boa parte de seu rosto, na mão segurava uma bengala.

Aproximei-me dela e pedi sua ajuda, a anciã convidou-me a sentar ao seu lado e deu-me pão e um pouco de vinho. Enquanto eu comia, entoou com voz esganiçada uma canção religiosa. Quando terminou, disse-me para acompanhá-la.

Essa oferta me alegrou muitíssimo, não obstante a voz e o aspecto da anciã me parecerem bizarros. Ela andava com bastante agilidade apoiada em sua bengala, e fazia caretas a cada passo que dava, o que no início me fazia rir. Os rochedos desabitados foram ficando cada vez mais para trás, atravessamos uma suave campina e depois um bosque bastante extenso . Quando chegamos ao fim dele o Sol estava justamente se pondo, e jamais me esquecerei da imagem e da sensação desse entardecer. Tudo se fundia nos mais delicados tons rubros e dourados, as árvores erguiam seus picos no arrebol, e pelos campos derramava-se um clarão encantador; as matas e as folhas das árvores estavam imóveis, o céu límpido parecia um paraíso de portas abertas, e o murmúrio das fontes e o ocasional zunir das árvores atravessavam aquela risonha calmaria num tom de jubilosa melancolia. Minha alma juvenil alcançou então, pela primeira vez, uma idéia do que era o mundo e suas particularidades. Esqueci-me de mim e de minha guia, meu espírito e meus olhos apenas voavam entusiasmados por entre as nuvens douradas.

Subimos então numa colina recoberta de bétulas, do alto via-se um pequeno vale repleto de bétulas, lá embaixo no meio das árvores havia uma casinha. Um alegre latido soou em nossa direção e em pouco um ágil cãozinho pulou na anciã abanando a cauda; depois ele veio ter comigo, olhou-me de todos os lados e em seguida retornou para junto da anciã com trejeitos amáveis.

Quando descíamos pelo morro ouvi um cântico singular que parecia vir da cabana, como se fosse de um pássaro; o canto era assim:

Doce solidão
Do bosque, que alegria
Dia após dia
E pelos tempos que virão
Oh, como me delicia
Doce solidão.

Estas poucas palavras eram incessantemente repetidas; esse canto, se tivesse que descrevê-lo, era quase como o som distante de uma charamela e uma trompa de caça tocando juntas.

Minha curiosidade estava aguçada ao extremo; sem esperar pelo convite da anciã entrei com ela na cabana. O crepúsculo já caíra, tudo estava bem arrumado, havia algumas canecas num armário na parede, vasos misteriosos sobre uma mesa, junto à janela estava pendurado um pássaro em uma pequena e reluzente gaiola, e era ele de fato quem entoava aquelas palavras. - A anciã arfava e tossia, parecia que não conseguia mais se restabelecer, ora afagava o cãozinho, ora falava com o pássaro, que apenas lhe respondia com sua canção habitual; na verdade, ela agia como se eu nem estivesse presente. Enquanto fiquei assim a observá-la, diversas vezes senti um frio na espinha, pois seu rosto estava em um movimento constante e distorcido, ao mesmo tempo em que a cabeça balançava como se fosse de velhice de modo que se tornava impossível discernir realmente as feições dela.

Quando havia se restabelecido, ela acendeu uma luz, pôs uma mesa diminuta e serviu a ceia. Então virou-se para mim e disse-me para sentar numa das cadeiras de vime trançado. Dessa forma fiquei sentada bem em frente dela e a luz estava entre nós. Juntou suas mãos ossudas e rezou em voz alta continuando a fazer caretas, de modo que eu quase teria rido novamente; mas tomei o cuidado de controlar-me para que ela não se zangasse comigo.

Depois da ceia, rezou outra vez, e em seguida ofereceu-me um leito numa câmara muito pequena; ela dormiu na sala. Não permaneci desperta por muito tempo, estava meio atordoada, mas durante a noite despertei algumas vezes e então ouvia a anciã tossindo e falando com o cão enquanto o pássaro, que parecia estar sonhando, cantava somente palavras isoladas de sua canção. Esses sons, em conjunto com as bétulas que murmuravam bem em frente à janela e o canto de um rouxinol distante, formavam uma combinação tão fantástica que eu ficava com a impressão, não de ter despertado, mas de estar apenas caindo em um outro sonho ainda mais estranho.

De manhã a anciã me acordou e pouco depois impeliu-me para o trabalho, minha tarefa era fiar, e desta vez aprendi a fazê-lo sem dificuldade, além do mais também tinha que cuidar do cão e do pássaro. Rapidamente acostumei-me à lida doméstica, e todos os objetos ao redor se tornaram conhecidos; tive então a impressão de que tudo era como deveria ser, já não pensava que a anciã tinha algo de bizarro, que a localização da casa era extravagante, e que havia algo de extraordinário no pássaro. Mas sua beleza nunca deixou de chamar minha atenção, pois suas penas reluziam em todas as cores possíveis, o mais formoso azul claro alternava-se em seu pescoço e corpo com o vermelho mais vivo , e quando cantava enfatuava-se de orgulho fazendo com que suas penas parecessem ainda mais soberbas.

Muitas vezes a anciã ausentava-se e retornava apenas ao anoitecer, então eu ia ao seu encontro com o cão e ela me chamava de minha menina e filha. Com o tempo fui me afeiçoando bastante a ela, pois que nos acostumamos a tudo, especialmente quando crianças. À noite ela ensinou-me a ler, logo assimilei a lição, e depois disso a leitura na minha solidão tornou-se uma fonte infinita de prazer, já que a anciã possuía alguns livros antigos escritos à mão que continham histórias mirabolantes.

Até hoje a lembrança de como vivi naquela época continua parecendo-me estranha: sem receber a visita de nenhuma criatura humana, adaptada somente a esse círculo familiar tão diminuto, pois o cão e o pássaro davam-me a mesma impressão que normalmente só pessoas há muito conhecidas nos causam. Nunca mais pude recordar o curioso nome do cão, embora o tivesse chamado tantas vezes naquele tempo.

Já vivia assim com a anciã há quatro anos e devia estar com uns doze anos, quando finalmente ela depositou maior confiança em mim e me revelou um segredo: todos os dias o pássaro botava um ovo no qual se achava uma pérola ou uma pedra preciosa. Já havia muito, eu percebera que ela mexia às escondidas na gaiola, mas nunca me preocupara com isso. Por ora ela incumbiu-me da tarefa de recolher esses ovos durante as suas ausências e guardá-los cuidadosamente nos vasos misteriosos. Daí por diante ela deixava alimentos para mim e passou a ausentar-se por períodos mais longos, semanas, meses; minha pequena roca chiava, o cão latia, o pássaro mágico cantava enquanto a região na circunvizinhança se mantinha tão serena que não me recordo de ter havido durante todo esse tempo qualquer vendaval, qualquer tempestade. Nunca ninguém perdeu o caminho e foi dar ali, nenhum animal selvagem aproximava-se de nossa morada, eu estava satisfeita e cantava, e meu trabalho fazia os dias se sucederem. - O ser humano talvez fosse bastante feliz se lhe fosse possível manter até o fim uma vida tão tranqüila.

A partir das poucas coisas que lia, ia formando uma idéia bastante fabulosa do mundo e das pessoas; tudo assemelhava-se a mim e a meus companheiros: quando eram mencionadas pessoas alegres, eu não conseguia imaginá-las de outro modo a não ser como o pequeno lulu, damas faustosas sempre tinham a aparência do pássaro, todas as mulheres idosas, a da minha anciã bizarra. - Também li um pouco sobre o amor, e então fabricava na minha imaginação histórias fantasiosas envolvendo a mim mesma. Imaginava o cavaleiro mais belo do mundo, dotava-o de todas as qualidades, embora realmente não soubesse, após todos esses esforços, qual era a aparência dele; mesmo assim, sentia uma grande pena de mim mesma quando ele não correspondia ao meu amor e nesses momentos elaborava em pensamento, ou por vezes também em voz alta, longos e tocantes discursos a fim de conquistá-lo. - Vós estais sorrindo! Deveras, nós todos agora já passamos por esse tempo de juventude.

Nessa época preferia mesmo ficar só, pois então era eu própria quem mandava na casa. O cão amava-me muito e fazia tudo o que eu queria; o pássaro respondia a todas as minhas perguntas com seu cântico; minha pequena roca sempre girava com vivacidade, e assim, no fundo, nunca fui tomada pelo desejo de mudanças. Quando a ancião retornava de suas longas jornadas, elogiava minha dedicação, ela dizia que, desde a minha chegada, a casa estava muito melhor cuidada, ela ficava contente com meu crescimento e minha aparência sadia, enfim, tratava-me como a uma filha.

‘Tu és valorosa, minha menina!’ disse-me ela certa vez num som estridente; ‘se continuares assim, sempre haverás de passar bem; por outro lado, sair do bom caminho nunca traz bons frutos, o castigo é infalível e nunca é tarde demais para ele.’ - Quando ela assim falou, não lhe dei muita atenção, pois era muito vivaz em minha maneira de ser; mas à noite lembrei-me de suas palavras e não consegui compreender o que ela quisera dizer com aquilo. Refleti com cuidado sobre cada palavra, decerto eu havia lido sobre riquezas e, por fim, veio-me a idéia de que suas pérolas e pedras preciosas provavelmente fossem valiosas. Dentro em breve essa idéia acabaria adquirindo contornos ainda mais definidos. Mas o que ela queria dizer com o bom caminho? Ainda não conseguia captar perfeitamente o sentido de suas palavras.

Completei quatorze anos, e é uma desventura para o ser humano o fato de alcançar a razão e, em troca, infalivelmente perder a inocência de sua alma. Eis que eu compreendi claramente que, se assim o quisesse, poderia apoderar-me do pássaro e das jóias quando a anciã estivesse longe e partir com eles em busca do mundo sobre o qual havia lido. Aí talvez até pudesse encontrar o formosíssimo cavaleiro de quem ainda não me esquecera.

No princípio essa era uma idéia como qualquer outra, mas enquanto estava sentada junto à roda de fiar, esse pensamento sempre ficava retornando contra a minha vontade, e acabei deixando-me levar por ele de tal modo que já me via magnificamente adornada e cercada de cavaleiros e príncipes. Nas ocasiões em que me deixava levar assim, tornava-me bastante tristonha quando novamente levantava os olhos e percebia estar na pequena cabana. Aliás, desde que fizesse minhas tarefas, a anciã não me dava maior atenção.

Certo dia minha senhoria partiu novamente, dizendo-me que dessa vez haveria de ficar longe por mais tempo do que de costume, ela exortou-me a cuidar muito bem de tudo e a não me entregar ao tédio. Despedi-me dela com certa aflição, pois tinha a sensação de que não tornaria a vê-la. Segui-a com os olhos por um longo tempo, embora eu mesma não soubesse por que estava tão assustada; era quase como se meu intento já estivesse decidido sem que tivesse plena consciência disso.

Nunca cuidei do cão e do pássaro com tamanha solicitude; meu afeto por eles era maior do que antes. A anciã já estava ausente havia alguns dias quando acordei com o firme propósito de abandonar a cabana com o pássaro e de sair em busca do assim chamado mundo. Meu coração estava apertado e cheio de angústia, desejei novamente continuar ali, e não obstante essa idéia também me era repugnante; uma estranha batalha travou-se em minha alma, como se houvesse em mim dois espíritos rebeldes em combate. Ora a plácida solidão parecia-me tão encantadora, ora entusiasmava-me outra vez com a idéia de um mundo novo com toda a sua maravilhosa diversidade.

Não sabia que decisão tomar, o cão não parava de pular carinhosamente em mim, os raios do Sol derramaram-se com alegria pelos campos, as verdes bétulas reluziam: tive a sensação de ter algo muito urgente a fazer, por conseguinte segurei o cãozinho, amarrei-o dentro da sala e tomei sob o braço a gaiola com o pássaro. O cão vergou-se e choramingou por causa desse tratamento inusitado, lançou-me um olhar suplicante, mas eu tinha receio de levá-lo comigo. Em seguida tomei um dos vasos repletos de pedras preciosas e coloquei-o entre as minhas coisas, os demais deixei onde estavam.

O pássaro revirou a cabeça de um modo bizarro quando passei com ele pela porta; o cão esforçou-se muito em acompanhar-me, mas teve que ficar para trás.

Evitando o caminho que levava aos rochedos agrestes, parti em direção oposta. O cão latia e choramingava sem parar, e eu fiquei profundamente comovida; o pássaro dispôs-se algumas vezes a cantar, mas, como estava sendo carregado, isso devia ser-lhe incômodo.

Enquanto prosseguia caminhando, os latidos foram soando cada vez mais fracos e, por fim, acabaram de vez. Chorei e estive prestes a tomar o caminho de volta, mas o anseio de ver algo novo impeliu-me adiante.

Já passara montanhas e alguns arvoredos quando caiu a noite e fui forçada a procurar albergue numa aldeia. Eu estava muito desajeitada quando entrei na taverna, deram-me um aposento e um leito, dormi bastante tranqüilamente apesar de sonhar com a anciã, que me ameaçava.

Minha viagem transcorreu de forma bastante uniforme, mas quanto mais avançava mais ia ficando atemorizada com a imagem da anciã e do cãozinho; eu ficava pensando que, sem meu auxílio, ele provavelmente morreria de fome; quando atravessava alguma floresta, tinha a impressão de que a anciã de repente apareceria à minha frente. Dessa forma, era sob lágrimas e suspiros que continuava meu caminho; em todas as ocasiões em que parava para descansar e depositava a gaiola no chão, o pássaro entoava sua canção fantástica e com isso fazia-me recordar de forma muito nítida daquelas belas paragens que abandonara. Como a natureza humana tende ao esquecimento, acreditava então que minha viagem anterior durante a infância não tivesse sido tão tristonha como a atual; desejei estar novamente naquela situação de outrora.

Eu tinha vendido algumas pedras preciosas e, depois de uma jornada de vários dias, cheguei a uma aldeia. Já na chegada tive uma sensação estranha, assustei-me e não sabia com o quê; mas logo entendi os meus sentimentos, pois era a mesma aldeia em que havia nascido. Como fiquei admirada! Minha alegria, motivada por mil lembranças curiosas, foi tamanha que as lágrimas correram pelas faces! Muitas coisas estavam diferentes, haviam surgido casas novas, outras, que naquela época tinham acabado de ser erigidas, agora estavam em estado decadente, também avistei construções que sofreram incêndios; tudo era bem mais diminuto e apertado do que eu esperava. Senti uma alegria infinita pela expectativa de rever meus pais depois de tantos anos; encontrei a casinha, a soleira tão familiar, a maçaneta ainda era exatamente como outrora, foi como se tivesse sido apenas ontem que a fechei; meu coração bateu com violência, abri com um gesto brusco - mas na sala havia semblantes totalmente estranhos que me encaravam. Indaguei pelo pastor Martin e disseram-me que já havia morrido há três anos com sua esposa. - Rapidamente recuei e, em prantos, abandonei a aldeia.

Eu havia imaginado que seria tão bonito surpreender meus pais com minha riqueza inesperada; aquilo com que na infância eu apenas tinha podido sonhar havia-se tornado realidade devido a um acaso dos mais extraordinários - e agora tudo foi em vão, eu não podia dar essa alegria a eles, e aquilo pelo que sempre mais ansiara na vida estava perdido para mim para sempre.

Em uma cidade agradável aluguei uma casinha com jardim e tomei os serviços de uma criada que veio morar comigo. O mundo não era tão maravilhoso como havia suposto, mas comecei a pensar um pouco menos na anciã e em minha antiga moradia e, de modo geral, vivia bastante satisfeita.

O pássaro já não cantava fazia bastante tempo; por isso, não foi pequeno o meu susto quando certa noite recomeçou e, dessa vez, com uma canção modificada. Ele cantou:

Doce solidão
Do bosque, longe de minha visão.
Remorso principia -
Nos dias que serão!
Oh, única alegria,
Doce solidão.

Durante toda aquela noite não pude dormir, tudo voltou-me à memória e, mais do que nunca, senti que causara uma injúria. No dia seguinte a visão do pássaro era-me por demais odiosa, ele ficava olhando para mim, e sua presença causava-me temor. Passou a entoar sua canção ininterruptamente e com voz mais alta e sonora do que antes fora seu costume. Quanto mais o observava, maior era o meu pavor; por fim, abri a gaiola, enfiei minha mão nela e peguei seu pescoço, apertei os dedos com força, ele lançou-me um olhar suplicante, soltei-o, mas já estava morto. - Enterrei-o no jardim.

A partir de então comecei a ficar inquieta por causa de minha criada, pensei no que eu mesma fizera e imaginava que também ela algum dia poderia me roubar ou até mesmo assassinar. - Já há algum tempo conhecia um jovem cavaleiro que me agradava sobremaneira, dei-lhe minha mão - e, com isso, senhor Walther, minha história chegou ao fim."

"Vós devíeis tê-la visto naquela época", interrompeu Eckbert com sofreguidão - "sua juventude, sua formosura e que encanto incompreensível lhe fora conferida através de sua educação solitária. Ela deu-me a impressão de um milagre e eu lhe dediquei um amor além de todas as medidas. Eu não tinha posses, mas o amor dela permitiu-me chegar a esse bem-estar; viemos residir aqui e, até hoje, nem por um momento nos arrependemos de nossa união."

"Mas de tanto eu falar", recomeçou Bertha, "a noite já vai bem adiantada - vamos nos recolher para dormir!"

Levantou-se e foi ao seu aposento. Walther desejou-lhe boa noite com um beijo na mão, e disse: "Nobre senhora, agradeço-vos, posso imaginar-vos muito bem com o estranho pássaro e cuidando do pequeno Strohmian."

Também Walther recolheu-se, somente Eckbert continuou na sala, andando inquieto de um lado para outro. - "O ser humano é realmente um tolo!", desatou ele a falar; "Primeiro, dou ensejo para que minha mulher narre sua história, e agora arrependo-me desse gesto de confiança! - Não irá ele trair minha amizade? Não irá contar a outros o que ouviu? Não poderá, já que assim é a natureza humana, criar uma desditosa cobiça pelas nossas pedras preciosas e por isso imaginar planos e se dissimular?"

Ocorreu-lhe que Walther não se despedira dele tão cordialmente como seria natural após uma confidência daquelas. Uma vez que a alma foi tomada de desconfiança, acaba também encontrando em cada detalhe uma confirmação. Também havia momentos em que Eckbert se repreendia por nutrir uma suspeita tão vil contra seu bom amigo e, mesmo assim, não conseguia evitar de senti-la novamente. Durante a noite inteira debateu-se com esses pensamentos e dormiu bem pouco.

Bertha estava doente e não pôde comparecer para o café da manhã; Walther parecia não se preocupar muito com isso e inclusive despediu-se do cavaleiro com bastante indiferença. Eckbert não conseguia entender seu comportamento; foi ver sua esposa, que ardia em febre, e disse-lhe que ela devia estar extenuada por causa da narrativa da noite.

Desde aquela noite, as visitas de Walther ao burgo de seu amigo tornaram-se raras, e, nas poucas ocasiões em que ele vinha, partia logo depois de algumas palavras insignificantes. Esse comportamento mortificava Eckbert ao extremo, muito embora não demonstrasse nada para Bertha e Walther, mas ambos deviam estar percebendo nele sua agitação interior.

A doença de Bertha tornava-se cada vez mais preocupante; o médico meneava a cabeça em sinal negativo; o rosado das faces dela desaparecera e seus olhos iam ficando cada vez mais febris. - Certa manhã, mandou que chamassem seu esposo para junto de seu leito, as servas tiveram que se retirar.

"Amado esposo", começou, "preciso revelar-te algo que quase custou meu juízo e arruinou minha saúde, ainda que possa parecer em si um detalhe insignificante. - Tu deves lembrar-te que sempre que narrava minha história eu não conseguia recordar, a despeito de todo esforço que fizesse, o nome do cãozinho com o qual convivi por tanto tempo. - Naquela noite, quando Walther se despedia de mim, ele disse de repente: ‘Posso imaginar-vos muito bem cuidando do pequeno Strohmian.’ Será coincidência? Terá adivinhado o nome, ou terá feito a menção com algum propósito? E, nesse caso, que ligação haverá entre esse homem e meu destino? - Por vezes digo a mim mesma que essa coincidência não passa de simples fruto de minha imaginação, mas isso é real, absolutamente real . Um pavor colossal apossou-se de mim no momento em que uma pessoa estranha auxiliou-me dessa forma com minhas recordações. O que dizes, Eckbert?"

Eckbert contemplou sua esposa doente com profundo pesar; permaneceu em silêncio, pensativo, em seguida disse-lhe algumas palavras de consolo e deixou-a. Em um aposento afastado, ia de um lado a outro numa agitação indescritível. Há muitos anos Walther vinha sendo o único a freqüentar sua casa, e não obstante era a única pessoa no mundo cuja existência o oprimia e atormentava. Tinha a impressão de que haveria de se sentir aliviado e feliz se essa única criatura pudesse ser afastada de seu caminho. - Tomou sua besta a fim de distrair-se e caçar.

Era um dia de inverno, sombrio e tempestuoso, e vasta camada de neve cobria as montanhas e vergava os ramos das árvores até o chão. Vagueou sem um destino certo, o suor cobria-lhe a testa, não encontrava nenhum animal selvagem e isso aumentava seu azedume. De súbito viu algo movendo-se à distância, era Walther coletando musgo das árvores; sem saber o que fazia, apontou a arma, Walther volveu-se, fez um gesto mudo de ameaça, mas nesse instante o dardo partiu e Walther tombou.

Eckbert sentiu-se aliviado e tranqüilo, contudo, um calafrio incitou-o a retornar a seu burgo; tinha um longo caminho pela frente, pois percorrera uma grande distância a esmo pelas florestas adentro. - Quando chegou, Bertha já havia falecido; antes de morrer ela ainda falara muito sobre Walther e a anciã.

Eckbert viveu então por longo período em profunda solidão; noutros tempos já costumava ser um pouco tristonho pois a estranha história de sua esposa o inquietava, sempre temera que algum incidente funesto pudesse ocorrer; mas agora seu estado era de total desmoronamento interior. O assassinato de seu amigo pairava-lhe sem trégua diante dos olhos, ele vivia censurando-se interiormente.

Em busca de distração, às vezes dirigia-se até a cidade grande mais próxima onde comparecia a festas e reuniões sociais. Ansiava por algum amigo que preenchesse o vazio em sua alma, mas bastava recordar-se de Walther e a palavra amigo o deixava em sobressalto ; convencera-se de que inevitavelmente haveria de sofrer desventuras com quem quer que fosse seu amigo. Vivera por tanto tempo com Bertha em doce serenidade, a amizade de Walther por tantos anos trouxera-lhe contentamento, e agora ambos tinham sido ceifados de modo tão brusco que em alguns momentos sua vida mais lhe parecia um fabuloso conto de fadas do que uma existência real.

Um jovem cavaleiro, Hugo von Wolfsberg, procurou a companhia do calado e taciturno Eckbert e parecia sentir uma inclinação sincera por ele. Eckbert sentiu-se maravilhosamente surpreso, correspondeu à amizade do cavaleiro tanto mais rapidamente quanto menos havia contado com ela. Os dois passaram a ficar juntos com freqüência, o desconhecido realizava toda sorte de obséquios para Eckbert, um já quase não saía mais a cavalo sem o outro, em todas as reuniões sociais eles se encontravam, enfim, os dois pareciam inseparáveis.

A alegria de Eckbert costumava durar apenas por curtos momentos, pois ele tinha a nítida sensação de que a afeição de Hugo se devia tão somente a um engano: ele não o conhecia, não sabia sua história, e mais uma vez ele foi tomado por aquele mesmo anseio de revelar-se por completo a fim de poder certificar-se do quanto o outro era seu amigo. Dali a pouco, porém, seu intento era tolhido por escrúpulos e pelo temor de ser rejeitado. Havia momentos em que estava tão convencido de sua infâmia que acreditava que nenhuma pessoa poderia estimá-lo caso o conhecesse um pouco melhor. Entretanto, não pôde refrear-se; durante um solitário passeio a cavalo revelou a seu amigo toda sua história, perguntando-lhe em seguida se poderia sentir amizade por um assassino. Hugo ficou comovido e procurou consolá-lo; Eckbert acompanhou-o até a cidade com o coração aliviado.

Mas ele parecia estar amaldiçoado a ver nascer a suspeita sempre no momento da confidência, pois, mal haviam penetrado no salão, quando contemplou seu amigo iluminado pelas muitas velas, e sua expressão não lhe agradou. Acreditou perceber um sorriso pérfido, notou que só falava pouco com ele, que conversava bastante com os demais ao passo que a ele parecia ignorar. Encontrava-se ali na reunião um cavaleiro idoso que sempre se mostrara um adversário de Eckbert e sempre indagara de modo estranho sobre sua riqueza e sua esposa; a este juntou-se Hugo e ambos ficaram algum tempo conversando furtivamente e olhando para Eckbert. Este agora via sua suspeita confirmada, considerava-se traído, e uma cólera terrível apossou-se dele. Enquanto ainda mantinha os olhos fixos naquela direção, de repente avistou o semblante de Walther, todos os seus traços, toda sua figura, para ele tão familiar; continuava ainda olhando para lá e ficou convencido de que não era ninguém senão Walther quem conversava com o ancião. - Seu horror foi indescritível; descontrolado, precipitou-se para fora, ainda nessa noite abandonou a cidade e retornou a seu burgo depois de errar o caminho várias vezes.

Qual um fantasma errante perambulou de aposento a aposento, seus pensamentos estavam em completo torvelinho, idéias terríveis eram sucedidas por outras ainda mais terríveis, e seus olhos foram totalmente abandonados pelo sono. Muitas vezes pensou que havia enlouquecido e que criava tudo aquilo em sua imaginação; em seguida os traços de Walther voltavam à sua memória e tudo lhe parecia cada vez mais enigmático. Decidiu sair em viagem a fim de colocar seus pensamentos outra vez em ordem; a idéia de ter um amigo, o desejo de companhia ele agora tinha abandonado para sempre.

Partiu sem estabelecer uma rota definida, aliás, mal contemplava as paisagens que se estendiam à sua frente. Quando já trotava com seu cavalo há alguns dias, viu-se de repente perdido num labirinto de rochas que em parte alguma permitiam descobrir uma saída. Finalmente encontrou um velho camponês que lhe indicou um caminho que passava por uma cachoeira; quis dar-lhe algumas moedas em agradecimento, mas o camponês as recusou. - "Que importa?", disse Eckbert consigo, "eu poderia acabar imaginando outra vez que ele é Walther!" - e nisso volveu os olhos novamente para trás e era Walther. - Eckbert esporeou seu corcel e correram tão rápido quanto este conseguia, atravessando campinas e bosques até que o animal desabasse embaixo dele. - Sem se incomodar com isso, passou então a seguir sua viagem a pé.

Subiu absorto por uma colina; pareceu-lhe distinguir nas proximidades um latido alegre ao qual se misturava o sussurro de bétulas, e ouviu cantarem uma canção num tom singular:

Doce solidão
Do bosque, de novo que alegria.
Sempre estou são,
Aqui não mora ambição.
Outra vez me delicia,
Doce solidão

Isto deu um golpe fatal na mente, no juízo de Eckbert; ele não conseguia encontrar a chave do enigma: estaria sonhando agora ou teria ele sonhado outrora com uma mulher chamada Bertha; as coisas mais fantásticas mesclavam-se às mais banais, o mundo ao seu redor estava enfeitiçado, e ele não era capaz de qualquer pensamento, qualquer recordação.

Uma anciã de costas vergadas caminhava devagar, subindo a colina com uma bengala e tossindo. "Estás trazendo meu pássaro para mim? Minhas pérolas? Meu cão?" gritou ela em sua direção. "Vejas, a injúria causa seu próprio castigo: ninguém senão eu era o teu amigo Walther, teu Hugo."

"Deus no céu!" disse Eckbert de mansinho para si mesmo - "em que tenebrosa solidão passei então minha vida!"

"E Bertha era tua irmã."

Eckbert caiu ao chão.

"Por que ela me abandonou desse modo pérfido? Caso contrário tudo teria terminado bem e direito, seu tempo de provação já havia terminado. Ela era a filha de um cavaleiro que a entregou a um pastor para que a criasse, a filha de teu pai."

"Por que sempre pressenti essa terrível idéia?" exclamou Eckbert.

"Porque em tua infância mais tenra certa vez o ouvistes falando sobre isso: por causa da esposa ele não podia criar essa filha junto a si, pois era de outra mulher."

Eckbert jazia enlouquecido no chão e sua vida se esvaia; em tons surdos e emaranhados ouvia a anciã falando, o cão latindo e o pássaro repetindo sua canção.

Fonte:
http://www.members.tripod.com/volobuef/tr_eckbert.htm

A Imagem da Criança na Poesia Infantil Brasileira (Marta Yumi Ando)

Dados do autor no final

RESUMO
A poesia infantil brasileira sofreu lento processo de evolução: se, em seu período formativo, na virada do século XX, o gênero atuou, predominantemente, como veículo pedagógico, e, se entre as décadas de 20 e 50, houve tentativas de emancipá-lo desse passado mais utilitarista, a partir da década de 60, ele incorporou, significativamente, as conquistas da poética moderna. Resultado de uma pesquisa desenvolvida no PIBIC/CNPq-UEM, e apresentado originalmente no XI Encontro Anual de Iniciação Científica e na 55a. Reunião Anual da SBPC, este trabalho teve como objetivo focalizar a imagem que se construiu da criança ao longo de mais de um século de poesia infantil brasileira e os modos como os poetas construíram essa imagem, a fim de promover a mediação com o pequeno leitor.

PALAVRAS-CHAVE: literatura infanto-juvenil, poema, leitura.

INTRODUÇÃO

Os poemas infantis eram o lugar por excelência de propagação de uma imagem exemplar da criança, segundo interesses de ordem não-literária. Embora tenham ocorrido rupturas desde os anos 20, essa produção predominantemente didática persistiu até os anos 60, quando poetas genuínos a tornaram digna de pertencer ao âmbito artístico. Entretanto, não obstante as conquistas alcançadas, o gênero ainda é visto de forma pejorativa como se infantil significasse infantilidade. Esse é um equívoco que deve ser retificado através de estudos que mostrem a riqueza que caracteriza a verdadeira poesia infantil.

MATERIAL E MÉTODO

A pesquisa empreendida, de natureza bibliográfica, foi realizada no período de 1o./08/2001 a 31/07/2002, em cumprimento às etapas de abrangência do Projeto de Iniciação Científica “Panorama e paradigmas da poesia infantil no Brasil”, desenvolvido com bolsa do PIBIC-CNPq/UEM. Nessa pesquisa, foram realizadas leituras de textos teórico-críticos que serviram de subsídio para a sistematização histórica da poesia infantil brasileira, para o reconhecimento do lugar e da imagem da criança na sociedade brasileira, para a reflexão sobre os modos como os escritores construíram essa imagem bem como para o levantamento dos aspectos temáticos e estéticos responsáveis pela mediação entre crianças e poetas.

RESULTADOS

Na virada do século XX, via de regra, os poemas infantis brasileiros funcionavam como manuais educativos, valorizando-se a criança passiva e obediente. Uma das obras em que a vivacidade infantil é ignorada em prol da transmissão de normas comportamentais é Poesias infantis (1904)1 de Olavo Bilac. Moldada para o uso escolar, tal obra pauta-se na educação moral, conforme exemplifica o poema “Meio-dia” (p.317-318):

1. Meio-dia. Sol a pino.
2. Corre de manso o regato.
3. Na igreja repica o sino;
4. Cheiram as ervas do mato.
5. Na árvore canta a cigarra;
6. Há recreio nas escolas:
7. Tira-se, numa algazarra,
8. A merenda das sacolas.
9. O lavrador pousa a enxada
10. No chão, descansa um momento,
11. E enxuga a fronte suada,
12. Contemplando o firmamento.

13. Nas casas ferve a panela
14. Sobre o fogão, nas cozinhas;
15. A mulher chega à janela,
16. Atira milho às galinhas.
17. Meio-dia! O sol escalda,
18. E brilha, em toda a pureza,
19. Nos campos cor de esmeralda,
20. E no céu cor de turquesa...
21. E a voz do sino, ecoando
22. Longe, de atalho em atalho,
23. Vai pelos campos, cantando
24. A Vida, a Luz, o Trabalho.

Neste poema, composto por quadrinhas de redondilhas, destaca-se a religiosidade; apresenta-se uma visão ufanista da natureza; mostra-se uma imagem patriarcal da mulher; valoriza-se o trabalho rural e o doméstico.
A religiosidade se evidencia quando se descreve o cenário, apresentado como um lugar por excelência bucólico, que convida à devoção religiosa. Em obediência a esse locus amoenus, a religiosidade funde-se à natureza, de modo que o sol do meio-dia está em seu esplendor, o rio corre mansamente e sente-se o cheiro da natureza. A sinestesia é figura de destaque, havendo o cruzamento da visão (sol, regato e ervas), da audição (o marulhar do regato e o repicar do sino) e do olfato (o cheiro das ervas).

Na 2a.estrofe, dá-se continuidade à descrição do locus amoenus: Na árvore canta a cigarra (v.5), e introduz-se um elemento novo, qual seja, o didatismo: Há recreio nas escolas:/ Tira-se, numa algazarra,/ A merenda das sacolas. (v.6-8). Não obstante se trate de um momento de descontração, o recreio é apenas um intervalo entre os estudos, que aparecem com maior realce em outros poemas do autor, como “Justiça” (p.315) e “Ave-Maria” (p.318). (Neste artigo, estamos utilizando a edição Obra reunida, organizada por Alexei Bueno (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996).

Na estrofe subseqüente, surge a figura do lavrador que, suado e cansado, pousa a enxada/ No chão (v.9-10). No contexto histórico em que se deu a formação da literatura infantil brasileira, vários elementos corroboraram para a construção da imagem de um Brasil em processo de modernização. No entanto, o gênero apresentava traços nitidamente conservadores, e, se a nossa literatura infantil surge como um produto que se quer moderno, mas que apresenta características tradicionais, não é de estranhar a acentuada presença de um ruralismo arcaico, como se constata em muitos poemas bilaquianos.

Na 4a. estrofe, o conservadorismo presentifica-se na imagem patriarcal da mulher. Ao focalizar a dona de casa, reforça-se a dependência da mulher em relação ao homem, uma vez que a “dona de casa” permanece confinada em seus afazeres domésticos, enquanto espera pelo retorno do verdadeiro dono, que possui, ao contrário daquela, um papel socialmente ativo na sociedade. Além disso, é curioso o estereótipo da “rainha do lar” aí presente, pois, como afirma CADERMATORI (1984, p.34), os termos “doméstica” e “rainha”, implícitos na expressão “rainha do lar”, se contradizem, mas, ao mesmo tempo, criam um lugar-comum conveniente à cultura dominante; nesta medida, a referida expressão “eufemiza a omissão social da mulher, coroando-a no recinto fechado em que ela circula. Sendo o lar o seu reino, ela nada tem a fazer fora dele”.

Na penúltima estrofe, resgata-se a visão ufanista da natureza, sublinhando-se o tom eufórico mediante a exclamação e adjetivações que evocam reverberações de jóias: o sol brilha intensamente, os campos não são apenas verdes, mas cor de esmeralda, e o céu não é apenas azul, mas cor de turquesa.

Na estrofe final, acentua-se a religiosidade através da reiteração do badalar dos sinos. Se, no terceiro verso, o sino simplesmente repica, aqui ele possui voz, como se estivesse chamando as pessoas para a devoção religiosa. Metonímia de igreja, o sino, ao ecoar longe, propaga a religiosidade por toda a extensão campestre capaz de alcançar. No último verso, a inicial maiúscula destaca os valores que se pretendem inculcar: uma vida rural e religiosa; luz como metáfora para o estudo; e o tipo de trabalho valorizado, a saber: o rural e o doméstico.

Acompanhando as rupturas que vinham ocorrendo na literatura brasileira em geral a partir da década de 20, houve também, na poesia infantil, tentativas de romper com a visão tradicional que vinha impedindo a autonomia do gênero. Em O menino poeta (1943), (Como não foi possível encontrar a edição original de O menino poeta, em que se insere “Tempestade”, estamos utilizando a transcrição do referido poema obtida em Leitura e desenvolvimento da linguagem (Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989, de A. L. B. SMOLKA et al.), de Henriqueta Lisboa, considerada a obra mais relevante do período, poemas inovados mesclam-se àqueles em que predomina a visão adulta. Um dos poemas em cujos versos predomina a inovação é “Tempestade” (p.64):

1. – Menino, vem para dentro
2. olha a chuva lá na serra,
3. olha como vem o vento!
4. – Ah! como a chuva é bonita
5. e como o vento é valente!
6. – Não sejas doido, menino,
7. esse vento te carrega,
8. essa chuva te derrete!
9. – Eu não sou feito de açúcar

10. para derreter na chuva.
11. Eu tenho força nas pernas
12. Para lutar contra o vento!
13. E enquanto o vento soprava
14. e enquanto a chuva caía,
15. que nem um pinto molhado,
16. teimoso como ele só:
17. – Gosto de chuva com vento,
18. gosto de vento com chuva!

Constituído de versos brancos, este poema apresenta irregularidade na configuração estrófica que acompanha, ao nível semântico, uma visão de mundo também anticonvencional. Constata-se uma brincadeira com a sonoridade, de modo a instaurar estreita correlação entre sons e significados: – Menino, vem para dentro/ olha a chuva lá na serra,/ olha como vem o vento!// – Ah! como a chuva é bonita/ e como o vento é valente! (v.1-5).

A aliteração do fonema sonoro constritivo labial /v/ sugere o próprio som do vento a anunciar a tempestade próxima. Em meio ao temporal que se forma, duas vozes conflitantes medem forças: a prudência adulta e a vitalidade infantil. O adulto tenta impor sua autoridade através do tom exclamativo, mas o menino também sublinha sua vontade exclamativamente, além de qualificar a chuva (como bonita) e o vento (como valente).

Ao contrário dos poemas do 1o período, em que a criança não tinha voz, neste ela não apenas tem voz como esta supera a do adulto, cujos exageros e dramaticidade são ignorados pelo garoto travesso e autoconfiante: – Eu não sou feito de açúcar/ para derreter na chuva./ Eu tenho força nas pernas/ Para lutar contra o vento! (v.9-12).

Nas estrofes finais, aparece a voz do eu-poético a descrever o menino em sua obstinada teimosia, em meio à tempestade que já desaba: E enquanto o vento soprava/ e enquanto a chuva caía,/ que nem um pinto molhado, / teimoso como ele só:// – Gosto de chuva com vento,/ gosto de vento com chuva! (v.13-18).

O contato com as forças da natureza, promovendo a fusão entre menino e chuva, o faz exclamar exultante, e a palavra final cabe a ele e não ao adulto autoritário. Como as palavras chuva e vento se repetem ostensivamente e como elas são sugestivas de per si, quase onomatopaicas, essa reiteração intensifica o som da tempestade, de forma que o nível sonoro reflita o semântico. Além disso, o gradativo aproximar da tempestade caminha em paralelo à progressão da vontade infantil que também se impõe, decisivamente, no final do poema.

A partir dos anos 60, baniu-se a antiga tradição que fazia do gênero um meio de adestramento social, e a forma, que ganhou roupagem moderna, fez com que a produção poética para a infância no Brasil alcançasse a necessária autonomia. Uma obra inovadora é Ou isto ou aquilo (1964) (Neste artigo, estamos utilizando a edição de 1990, publicada pela editora Nova Fronteira), de Cecília Meireles, em que se desvenda a interioridade infantil através da exploração sonora, como se verifica em “Moda da menina trombuda” (p.11):

1. É a moda
2. da menina muda
3. da menina trombuda
4. que muda de modos
5. e dá medo.
6. (A menina mimada!)

7. É a moda
8. da menina muda
9. que muda
10. de modos
11. e já não é trombuda.
12. (A menina amada!)


Neste poema, constituído de versos polimétricos, o tema, em vez de receber um tratamento de dura repreensão do adulto, é tratado com singeleza. Abordando a metamorfose d’(A menina mimada!), que, deixando de ser trombuda, torna-se (A menina amada!), a poeta trabalha com as mudanças de humor passageiras.

As associações sonoro-semânticas, no título e na estrofe inicial, ocorrem pelo emprego das nasais /m/, /n/ e /õ/ e das vogais fechadas /e/, /i/ e /u/ que, através da reiteração, revelam o humor infantil.

Na 2a. estrofe, constituída de um só verso, (A menina mimada!), ocorre uma abertura vocálica que se repete no verso final. Dá-se especial relevo a esse verso, já que, além de sozinho constituir uma estrofe, vem destacado pelos parênteses e pelo ponto de exclamação, recursos que reforçam sua importância.

Na estrofe seguinte, apesar de a menina continuar mudando de modos, estes já não são os mesmos, pois ela já não é trombuda (v.11). No verso que finaliza o poema, destaca-se, como no verso 6, o conteúdo através dos mesmos recursos, havendo nova abertura decorrente do sentido positivo inerente ao verbo amar.

Há dois momentos fundamentais no poema, refletidos na divisão do texto em partes, graficamente simétricas: o primeiro (v.1-6) é o da menina trombuda; o segundo (v.7-12), do instante em que ela se sente amada. Portanto, o nível gráfico, a par da sugestiva sonoridade, espelha as significações presentes, concretizando os estados anímicos da criança.

A pronunciada musicalidade de que se reveste o poema, através das nasais e das vogais fechadas em oposição à vogal aberta /a/, vai ao encontro da palavra moda, pois este termo refere-se a um certo tipo de cantiga popular. Além disso, moda pode também designar capricho. Neste sentido, parece haver correlação de moda-cantiga e de moda-capricho com a moda cantada no poema, já que tanto a musicalidade quanto o comportamento caprichoso da menina se presentificam em “Moda da menina trombuda”.

DISCUSSÃO

Se, por um lado, a doutrinação foi uma constante na gênese da poesia infantil brasileira, por outro, os autores desse período apresentam grande importância histórica, em virtude do pioneirismo em criar uma literatura infantil genuinamente brasileira. Além disso, se é verdade que eles se revestiram de uma postura doutrinária, isto, na realidade, ocorreu pelo fato de estarem em consonância com a conservadora ideologia da época. A partir da década de 20, houve tentativas de romper com esse conservadorismo, obtendo-se um razoável acervo de poemas originais, dando início à emancipação do gênero, que se consolida, de forma indelével, a partir dos anos 60, embora ainda existam, ao lado de poetas genuínos, indivíduos que escrevam versos pautados no didatismo.

CONCLUSÃO

Se a poesia infantil brasileira, em seu período inicial, caracterizou-se pelo utilitarismo, e se, nas décadas de 20 a 50, surgiram modernistas que nutriram o desejo de emancipação poética, a partir dos anos 60, tal desejo foi significativamente concretizado. Na ausência de intuitos doutrinários, o poeta dialoga com a criança, a assimetria se desfaz e o universo infantil é respeitado, promovendo o encontro entre criança e poesia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BILAC, O. Meio-dia. In: BILAC, O. Obra reunida (org e introd. de Alexei Bueno). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996, p.317-318.

CADERMATORI, L. Jogo e iniciação literária. In: ZILBERMAN, R.; CADERMATORI, L.. Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. 2. ed. São Paulo: Ática, 1984, p.28-37.

LISBOA, H. Tempestade. In: SMOLKA, A. L. B. et al. Leitura e desenvolvimento da linguagem. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989, p.64.

MEIRELES, C. Moda da menina trombuda. In: MEIRELES, C. Ou isto ou aquilo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p.11.

Fonte:
PRADO, Isaura Maria Mesquita; MOLINARI, Sonia Lucy (editores). VII SAU (Semana de Artes da UEM). II Mostra Integrada de Ensino, Pesquisa e Extensão. 21 a 30 maio 2004. Maringá: UEM - Universidade Estadual de Maringá. Arq. Apadec, 8(supl.): Mai, 2004 ISSN 1414-7149 (CD-ROM).

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DADOS DO AUTOR
Possui graduação em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (2003) e mestrado em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (2006). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura, atuando principalmente com prosa experimental, literatura infanto-juvenil e leitura. Atualmente, cursa doutorado em Letras na Universidade Estadual Paulista (UNESP - São José do Rio Preto), integra a Banca de Avaliação da Prova Discursiva de Literatura do Vestibular da Universidade Estadual de Maringá e atua como professora na rede particular de ensino .
Fonte:
Currículo Lattes