Como uma tentativa de preservar a cultura do estado, a academia pernambucana de letras foi fundada no tempo em que o recife vivia seu jeito francês de ser.
Sempre ranzinza e irônico, o escritor Carlos Heitor Cony certa vez disse que não conseguiria levar muito a sério um século no qual ele vivia. Mesmo para quem teve de conviver diariamente com o Século XX, é difícil fazer um balanço equilibrado desses últimos 100 anos, que deixaram a impressão de ter passado rápido demais para a quantidade de pestes e feitos, alguns fundamentais outros deliciosamente fúteis, que deixou como legado: duas guerras mundiais, Aids, ditaduras abomináveis, Internet, a guitarra elétrica, o astro pop, o videocassete, o CD... A lista é interminável.
Sempre ranzinza e irônico, o escritor Carlos Heitor Cony certa vez disse que não conseguiria levar muito a sério um século no qual ele vivia. Mesmo para quem teve de conviver diariamente com o Século XX, é difícil fazer um balanço equilibrado desses últimos 100 anos, que deixaram a impressão de ter passado rápido demais para a quantidade de pestes e feitos, alguns fundamentais outros deliciosamente fúteis, que deixou como legado: duas guerras mundiais, Aids, ditaduras abomináveis, Internet, a guitarra elétrica, o astro pop, o videocassete, o CD... A lista é interminável.
Com pouco mais de 20 dias de vantagem em relação ao contraditório século que acaba de se encerrar, a Academia Pernambucana de Letras comemora no dia 26 de janeiro o seu centenário - fundada por Carneiro Vilela, como a Terceira do Brasil, só perdendo para a Brasileira e a Cearense. Singular desde o seu princípio, tanto por ter permitido o ingresso de nomes que se distinguiam não só no campo da literatura, mas também no da filosofia, ciências e história, pela eleição vitoriosa da primeira mulher a fazer parte de uma instituição de letras, a professora e poeta Edwiges de Sá Pereira - como pelo caráter irreverente do seu registro civil, escrito, em tom humorístico, pelo poeta Gregório Júnior:
"Ergamos, pois a nossa própria estátua!
Dos célebres nós temos monopólio,
Deixemos a modéstia vil e fátua.
Fundada a grei, a nossa panelinha,
Exclame cada um no capitólio -
Zoilos, tremei! Posteridade, és minha"
A fundação da APL pode ser encarada como uma tentativa de sobrevivência da cultura pernambucana, que se via ameaçada pelos problemas econômicos do Estado, que já não era mais a potência de antes. Até meados do Século XIX, o Recife era um dos maiores centros culturais do Brasil. Para isso, dois fatos colaboravam de forma fundamental: pela sua posição geográfica, (esse era o primeiro destino de navios vindos da Europa para a então capital do Brasil, Rio de Janeiro). Antes de chegar à corte, inúmeras companhias de teatro e ópera aportavam primeiro por aqui; e a Faculdade de Direito do Recife, naquele período, era uma das duas únicas do Brasil. Intelectuais de todas as partes, como Castro Alves, acabavam vindo estudar na cidade, criando um intenso intercâmbio cultural.
Enquanto surgia, a APL via o Brasil começar a ser dominado pela chamada "república do café com leite", centrada em São Paulo e Minas Gerais, que não precisava do nosso açúcar para "adoçar" a mistura do poder.
Naquele princípio de século, continuávamos sendo um mero satélite espiritual da França. A tal ponto que nossa vida intelectual podia ser comparada com o que acontecia na Rússia czarista, onde os membros da aristocracia costumavam comunicar-se em francês, relegando o russo para as relações com os criados. Reza a lenda que, no centro do Recife, havia até um mendigo que pedia esmolas no idioma de Racine. "Donnez moi l" argent, si vous plait", pedia aos passantes, surpresos diante de tal refinamento.
As idéias que orientavam os fundadores de nossa República, aglutinando-se ao Positivismo, eram de origem francesa. Lia-se muito Anatole France, Zola, Flaubert e Maupassant. A grande exceção nesse terreno era o ferino português Eça de Queiroz. A "ecite" contaminava a todos - alguns gostavam outros não. Indiferença era o que não havia.
Para os mais abastados, nada como fluir anualmente à cidade-luz. Nenhum outro destino era melhor para, digamos, a cabeça. No campo da literatura, ela se tornava um laboratório de tendências. Parnasianismo ou simbolismo? Realismo ou naturalismo? Ao mesmo tempo em que Machado de Assis penetrava de maneira sutil na alma humana, revelando suas ambigüidades, Aluízio de Azevedo contrapunha a esse realismo psicológico um naturalismo à Zola, no qual as mazelas sociais assumem o primeiro plano.
O Recife vivia sua belle époque tardia dos anos 20 na Esquina do Lafayette. Era por lá que os intelectuais, especialmente os poetas, se reuniam para conversar sobre literatura, a sua e a dos outros - o que, até hoje em dia, ainda deve ser bem mais interessante.
Em seu ensaio "A Esquina do Lafayette", o acadêmico da APL Rostand Paraíso ressaltou que naquele tempo o Recife vivia uma verdadeira "febre" de academias paralelas à APL: "Houve o Cenáculo Pernambucano de Letras que, segundo Luiz do Nascimento, seu participante, morrera da doença da desídia e do abandono. Da mesma doença, haviam desaparecido a Academia Recifense de Letras, de Fernando Pio e Mauro Mota, o Silogeu Pernambucano de Letras, de Berguedof Elliot, o Grêmio Recifense de Letras, a Falange Literária Dr. Oliveira Lima, e o Cenáculo da Livraria Silveira, entre outras instituições que chegaram a ter seus momentos de glória". Nesse período, a Academia Pernambucana de Letras tinha apenas 20 cadeiras. Um número reduzido para abrigar a quantidade de intelectuais que habitavam o Recife. Em 1921, o número subiu para 30 e, finalmente, em 1960, para 40 cadeiras, igualando-se à Academia de Letras Francesa, o padrão para todas as outras.
Apesar de viver em uma cidade cheia de crioulas tradições francesas e repleta de intelectuais, a APL não repetia o seu glamour em termos econômicos. A grande prova disso é que suas reuniões aconteciam em salas emprestadas do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico do Recife. "O certo é que quase todas as Academias no Brasil passaram por grandes dificuldades financeiras para terem condições de funcionar como desejavam seus criadores. A Casa de Machado de Assis (a Academia Brasileira de Letras) sofreu grandes dificuldades nos seus primeiros tempos. Não possuía sede desejada. Rodrigo Otávio e outros valores intelectuais chegaram a ceder parte de seus escritórios de advocacia para abrigar colegas intelectuais. Não foi diferente com a Casa de Carneiro Vilela (como é conhecida a instituição)", declara o atual presidente da APL, Luiz de Magalhães, reeleito por quatro vezes por unanimidade.
A sede de fato da Academia, situada na Rui Barbosa, número 1596, só foi doada em 1966, durante o governo de Paulo Guerra, que assumiu o comando do Estado após Miguel Arraes ter sido exilado devido ao golpe militar de 64. Interessante foi que o pedido de Luiz Delgadom então presidente da APL, para o governador declarava que todos os acadêmicos eram "uns pobretões".
O solar que hoje abriga a APL havia sido residência do barão Rodrigues Mendes, no Século XIX. Na época em que foi doado, estava tão abandonado que as vacas dos herdeiros tiravam o seu merecido descanso noturno nos salões onde hoje se reúnem os acadêmicos.
Cedido o casarão, os móveis e obras de arte da Academia foram doados, em sua maioria, pela sociedade pernambucana da época. Inclusive por Dom Helder Câmara.
E foi nessa sua atual sede que a APL recebeu o ingresso de dois senhores com estilo notadamente anti-acadêmico, mas cuja obra falava por qualquer ato excêntrico ou mesmo pela ausência de postura: João Cabral de Melo Neto e Gilberto Freyre, eleitos por unanimidade.
João Cabral, sempre introspectivo e avesso a solenidades, nem mesmo foi à sua posse. Alegou estar doente. "Não tenho qualquer lembrança da presença de João Cabral na Academia", lembra o presidente Luiz de Magalhães. Já Gilberto Freyre, despojado e sem maiores rodeios, não se conteve em reclamar do demorado discurso proclamado por Waldemar Lopes durante sua posse. "Minha bunda já está doendo" - disse, levando todos os presentes a cair na gargalhada.
Com uma história marcada por problemas financeiros, feministas, anti-acadêmicos e postura à francesa de ser, a APL chega aos seus 100 anos com uma recepção em 26 de janeiro, na qual será entregue a medalha do centenário para os seus 40 membros, entidades e personalidades homenageadas. "A data que vamos comemorar será o coroamento vivo do que foi possível traduzir ou realizar em homenagem à cultura, como para dar relevo e dignidade à própria instituição a que pertencemos", declarou Luiz de Magalhães.
Durante a recepção que marca o centenário, será realizada a inauguração da nova sala de reuniões da instituição, cujo nome do patrono ainda será escolhido.
Lista dos primeiros acadêmicos da APL :
Antônio Joaquim Barbosa Viana; João Gregório Gonçalves; Bianur Gadault Fonseca de Medeiros; Carlos da Costa Ferreira Porto Carreiro; Gervásio Fioravanti Pires Ferreira; Arthur Orlando da Silva; João Batista Regueira Costa; Joaquim Maria Carneiro Vilela; Francisco Augusto Pereira da Costa; Eduardo de Carvalho; Alfredo Ferreira de Carvalho; José Antônio de Almeida Cunha; José Isidoro Martins Júnior; Henrique Capitolino Pereira de Melo; Ernesto de Paula Santos; Joaquim José de Faria Neves Sobrinho; Sebastião de Vasconcelos Galvão; Luiz de França Pereira; Manuel Teotônio Freire; Celso Vieira.
Fonte:
http://apl.iteci.com.br/
"Ergamos, pois a nossa própria estátua!
Dos célebres nós temos monopólio,
Deixemos a modéstia vil e fátua.
Fundada a grei, a nossa panelinha,
Exclame cada um no capitólio -
Zoilos, tremei! Posteridade, és minha"
A fundação da APL pode ser encarada como uma tentativa de sobrevivência da cultura pernambucana, que se via ameaçada pelos problemas econômicos do Estado, que já não era mais a potência de antes. Até meados do Século XIX, o Recife era um dos maiores centros culturais do Brasil. Para isso, dois fatos colaboravam de forma fundamental: pela sua posição geográfica, (esse era o primeiro destino de navios vindos da Europa para a então capital do Brasil, Rio de Janeiro). Antes de chegar à corte, inúmeras companhias de teatro e ópera aportavam primeiro por aqui; e a Faculdade de Direito do Recife, naquele período, era uma das duas únicas do Brasil. Intelectuais de todas as partes, como Castro Alves, acabavam vindo estudar na cidade, criando um intenso intercâmbio cultural.
Enquanto surgia, a APL via o Brasil começar a ser dominado pela chamada "república do café com leite", centrada em São Paulo e Minas Gerais, que não precisava do nosso açúcar para "adoçar" a mistura do poder.
Naquele princípio de século, continuávamos sendo um mero satélite espiritual da França. A tal ponto que nossa vida intelectual podia ser comparada com o que acontecia na Rússia czarista, onde os membros da aristocracia costumavam comunicar-se em francês, relegando o russo para as relações com os criados. Reza a lenda que, no centro do Recife, havia até um mendigo que pedia esmolas no idioma de Racine. "Donnez moi l" argent, si vous plait", pedia aos passantes, surpresos diante de tal refinamento.
As idéias que orientavam os fundadores de nossa República, aglutinando-se ao Positivismo, eram de origem francesa. Lia-se muito Anatole France, Zola, Flaubert e Maupassant. A grande exceção nesse terreno era o ferino português Eça de Queiroz. A "ecite" contaminava a todos - alguns gostavam outros não. Indiferença era o que não havia.
Para os mais abastados, nada como fluir anualmente à cidade-luz. Nenhum outro destino era melhor para, digamos, a cabeça. No campo da literatura, ela se tornava um laboratório de tendências. Parnasianismo ou simbolismo? Realismo ou naturalismo? Ao mesmo tempo em que Machado de Assis penetrava de maneira sutil na alma humana, revelando suas ambigüidades, Aluízio de Azevedo contrapunha a esse realismo psicológico um naturalismo à Zola, no qual as mazelas sociais assumem o primeiro plano.
O Recife vivia sua belle époque tardia dos anos 20 na Esquina do Lafayette. Era por lá que os intelectuais, especialmente os poetas, se reuniam para conversar sobre literatura, a sua e a dos outros - o que, até hoje em dia, ainda deve ser bem mais interessante.
Em seu ensaio "A Esquina do Lafayette", o acadêmico da APL Rostand Paraíso ressaltou que naquele tempo o Recife vivia uma verdadeira "febre" de academias paralelas à APL: "Houve o Cenáculo Pernambucano de Letras que, segundo Luiz do Nascimento, seu participante, morrera da doença da desídia e do abandono. Da mesma doença, haviam desaparecido a Academia Recifense de Letras, de Fernando Pio e Mauro Mota, o Silogeu Pernambucano de Letras, de Berguedof Elliot, o Grêmio Recifense de Letras, a Falange Literária Dr. Oliveira Lima, e o Cenáculo da Livraria Silveira, entre outras instituições que chegaram a ter seus momentos de glória". Nesse período, a Academia Pernambucana de Letras tinha apenas 20 cadeiras. Um número reduzido para abrigar a quantidade de intelectuais que habitavam o Recife. Em 1921, o número subiu para 30 e, finalmente, em 1960, para 40 cadeiras, igualando-se à Academia de Letras Francesa, o padrão para todas as outras.
Apesar de viver em uma cidade cheia de crioulas tradições francesas e repleta de intelectuais, a APL não repetia o seu glamour em termos econômicos. A grande prova disso é que suas reuniões aconteciam em salas emprestadas do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico do Recife. "O certo é que quase todas as Academias no Brasil passaram por grandes dificuldades financeiras para terem condições de funcionar como desejavam seus criadores. A Casa de Machado de Assis (a Academia Brasileira de Letras) sofreu grandes dificuldades nos seus primeiros tempos. Não possuía sede desejada. Rodrigo Otávio e outros valores intelectuais chegaram a ceder parte de seus escritórios de advocacia para abrigar colegas intelectuais. Não foi diferente com a Casa de Carneiro Vilela (como é conhecida a instituição)", declara o atual presidente da APL, Luiz de Magalhães, reeleito por quatro vezes por unanimidade.
A sede de fato da Academia, situada na Rui Barbosa, número 1596, só foi doada em 1966, durante o governo de Paulo Guerra, que assumiu o comando do Estado após Miguel Arraes ter sido exilado devido ao golpe militar de 64. Interessante foi que o pedido de Luiz Delgadom então presidente da APL, para o governador declarava que todos os acadêmicos eram "uns pobretões".
O solar que hoje abriga a APL havia sido residência do barão Rodrigues Mendes, no Século XIX. Na época em que foi doado, estava tão abandonado que as vacas dos herdeiros tiravam o seu merecido descanso noturno nos salões onde hoje se reúnem os acadêmicos.
Cedido o casarão, os móveis e obras de arte da Academia foram doados, em sua maioria, pela sociedade pernambucana da época. Inclusive por Dom Helder Câmara.
E foi nessa sua atual sede que a APL recebeu o ingresso de dois senhores com estilo notadamente anti-acadêmico, mas cuja obra falava por qualquer ato excêntrico ou mesmo pela ausência de postura: João Cabral de Melo Neto e Gilberto Freyre, eleitos por unanimidade.
João Cabral, sempre introspectivo e avesso a solenidades, nem mesmo foi à sua posse. Alegou estar doente. "Não tenho qualquer lembrança da presença de João Cabral na Academia", lembra o presidente Luiz de Magalhães. Já Gilberto Freyre, despojado e sem maiores rodeios, não se conteve em reclamar do demorado discurso proclamado por Waldemar Lopes durante sua posse. "Minha bunda já está doendo" - disse, levando todos os presentes a cair na gargalhada.
Com uma história marcada por problemas financeiros, feministas, anti-acadêmicos e postura à francesa de ser, a APL chega aos seus 100 anos com uma recepção em 26 de janeiro, na qual será entregue a medalha do centenário para os seus 40 membros, entidades e personalidades homenageadas. "A data que vamos comemorar será o coroamento vivo do que foi possível traduzir ou realizar em homenagem à cultura, como para dar relevo e dignidade à própria instituição a que pertencemos", declarou Luiz de Magalhães.
Durante a recepção que marca o centenário, será realizada a inauguração da nova sala de reuniões da instituição, cujo nome do patrono ainda será escolhido.
Lista dos primeiros acadêmicos da APL :
Antônio Joaquim Barbosa Viana; João Gregório Gonçalves; Bianur Gadault Fonseca de Medeiros; Carlos da Costa Ferreira Porto Carreiro; Gervásio Fioravanti Pires Ferreira; Arthur Orlando da Silva; João Batista Regueira Costa; Joaquim Maria Carneiro Vilela; Francisco Augusto Pereira da Costa; Eduardo de Carvalho; Alfredo Ferreira de Carvalho; José Antônio de Almeida Cunha; José Isidoro Martins Júnior; Henrique Capitolino Pereira de Melo; Ernesto de Paula Santos; Joaquim José de Faria Neves Sobrinho; Sebastião de Vasconcelos Galvão; Luiz de França Pereira; Manuel Teotônio Freire; Celso Vieira.
Fonte:
http://apl.iteci.com.br/
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