sábado, 19 de janeiro de 2008

A Imagem da Criança na Poesia Infantil Brasileira (Marta Yumi Ando)

Dados do autor no final

RESUMO
A poesia infantil brasileira sofreu lento processo de evolução: se, em seu período formativo, na virada do século XX, o gênero atuou, predominantemente, como veículo pedagógico, e, se entre as décadas de 20 e 50, houve tentativas de emancipá-lo desse passado mais utilitarista, a partir da década de 60, ele incorporou, significativamente, as conquistas da poética moderna. Resultado de uma pesquisa desenvolvida no PIBIC/CNPq-UEM, e apresentado originalmente no XI Encontro Anual de Iniciação Científica e na 55a. Reunião Anual da SBPC, este trabalho teve como objetivo focalizar a imagem que se construiu da criança ao longo de mais de um século de poesia infantil brasileira e os modos como os poetas construíram essa imagem, a fim de promover a mediação com o pequeno leitor.

PALAVRAS-CHAVE: literatura infanto-juvenil, poema, leitura.

INTRODUÇÃO

Os poemas infantis eram o lugar por excelência de propagação de uma imagem exemplar da criança, segundo interesses de ordem não-literária. Embora tenham ocorrido rupturas desde os anos 20, essa produção predominantemente didática persistiu até os anos 60, quando poetas genuínos a tornaram digna de pertencer ao âmbito artístico. Entretanto, não obstante as conquistas alcançadas, o gênero ainda é visto de forma pejorativa como se infantil significasse infantilidade. Esse é um equívoco que deve ser retificado através de estudos que mostrem a riqueza que caracteriza a verdadeira poesia infantil.

MATERIAL E MÉTODO

A pesquisa empreendida, de natureza bibliográfica, foi realizada no período de 1o./08/2001 a 31/07/2002, em cumprimento às etapas de abrangência do Projeto de Iniciação Científica “Panorama e paradigmas da poesia infantil no Brasil”, desenvolvido com bolsa do PIBIC-CNPq/UEM. Nessa pesquisa, foram realizadas leituras de textos teórico-críticos que serviram de subsídio para a sistematização histórica da poesia infantil brasileira, para o reconhecimento do lugar e da imagem da criança na sociedade brasileira, para a reflexão sobre os modos como os escritores construíram essa imagem bem como para o levantamento dos aspectos temáticos e estéticos responsáveis pela mediação entre crianças e poetas.

RESULTADOS

Na virada do século XX, via de regra, os poemas infantis brasileiros funcionavam como manuais educativos, valorizando-se a criança passiva e obediente. Uma das obras em que a vivacidade infantil é ignorada em prol da transmissão de normas comportamentais é Poesias infantis (1904)1 de Olavo Bilac. Moldada para o uso escolar, tal obra pauta-se na educação moral, conforme exemplifica o poema “Meio-dia” (p.317-318):

1. Meio-dia. Sol a pino.
2. Corre de manso o regato.
3. Na igreja repica o sino;
4. Cheiram as ervas do mato.
5. Na árvore canta a cigarra;
6. Há recreio nas escolas:
7. Tira-se, numa algazarra,
8. A merenda das sacolas.
9. O lavrador pousa a enxada
10. No chão, descansa um momento,
11. E enxuga a fronte suada,
12. Contemplando o firmamento.

13. Nas casas ferve a panela
14. Sobre o fogão, nas cozinhas;
15. A mulher chega à janela,
16. Atira milho às galinhas.
17. Meio-dia! O sol escalda,
18. E brilha, em toda a pureza,
19. Nos campos cor de esmeralda,
20. E no céu cor de turquesa...
21. E a voz do sino, ecoando
22. Longe, de atalho em atalho,
23. Vai pelos campos, cantando
24. A Vida, a Luz, o Trabalho.

Neste poema, composto por quadrinhas de redondilhas, destaca-se a religiosidade; apresenta-se uma visão ufanista da natureza; mostra-se uma imagem patriarcal da mulher; valoriza-se o trabalho rural e o doméstico.
A religiosidade se evidencia quando se descreve o cenário, apresentado como um lugar por excelência bucólico, que convida à devoção religiosa. Em obediência a esse locus amoenus, a religiosidade funde-se à natureza, de modo que o sol do meio-dia está em seu esplendor, o rio corre mansamente e sente-se o cheiro da natureza. A sinestesia é figura de destaque, havendo o cruzamento da visão (sol, regato e ervas), da audição (o marulhar do regato e o repicar do sino) e do olfato (o cheiro das ervas).

Na 2a.estrofe, dá-se continuidade à descrição do locus amoenus: Na árvore canta a cigarra (v.5), e introduz-se um elemento novo, qual seja, o didatismo: Há recreio nas escolas:/ Tira-se, numa algazarra,/ A merenda das sacolas. (v.6-8). Não obstante se trate de um momento de descontração, o recreio é apenas um intervalo entre os estudos, que aparecem com maior realce em outros poemas do autor, como “Justiça” (p.315) e “Ave-Maria” (p.318). (Neste artigo, estamos utilizando a edição Obra reunida, organizada por Alexei Bueno (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996).

Na estrofe subseqüente, surge a figura do lavrador que, suado e cansado, pousa a enxada/ No chão (v.9-10). No contexto histórico em que se deu a formação da literatura infantil brasileira, vários elementos corroboraram para a construção da imagem de um Brasil em processo de modernização. No entanto, o gênero apresentava traços nitidamente conservadores, e, se a nossa literatura infantil surge como um produto que se quer moderno, mas que apresenta características tradicionais, não é de estranhar a acentuada presença de um ruralismo arcaico, como se constata em muitos poemas bilaquianos.

Na 4a. estrofe, o conservadorismo presentifica-se na imagem patriarcal da mulher. Ao focalizar a dona de casa, reforça-se a dependência da mulher em relação ao homem, uma vez que a “dona de casa” permanece confinada em seus afazeres domésticos, enquanto espera pelo retorno do verdadeiro dono, que possui, ao contrário daquela, um papel socialmente ativo na sociedade. Além disso, é curioso o estereótipo da “rainha do lar” aí presente, pois, como afirma CADERMATORI (1984, p.34), os termos “doméstica” e “rainha”, implícitos na expressão “rainha do lar”, se contradizem, mas, ao mesmo tempo, criam um lugar-comum conveniente à cultura dominante; nesta medida, a referida expressão “eufemiza a omissão social da mulher, coroando-a no recinto fechado em que ela circula. Sendo o lar o seu reino, ela nada tem a fazer fora dele”.

Na penúltima estrofe, resgata-se a visão ufanista da natureza, sublinhando-se o tom eufórico mediante a exclamação e adjetivações que evocam reverberações de jóias: o sol brilha intensamente, os campos não são apenas verdes, mas cor de esmeralda, e o céu não é apenas azul, mas cor de turquesa.

Na estrofe final, acentua-se a religiosidade através da reiteração do badalar dos sinos. Se, no terceiro verso, o sino simplesmente repica, aqui ele possui voz, como se estivesse chamando as pessoas para a devoção religiosa. Metonímia de igreja, o sino, ao ecoar longe, propaga a religiosidade por toda a extensão campestre capaz de alcançar. No último verso, a inicial maiúscula destaca os valores que se pretendem inculcar: uma vida rural e religiosa; luz como metáfora para o estudo; e o tipo de trabalho valorizado, a saber: o rural e o doméstico.

Acompanhando as rupturas que vinham ocorrendo na literatura brasileira em geral a partir da década de 20, houve também, na poesia infantil, tentativas de romper com a visão tradicional que vinha impedindo a autonomia do gênero. Em O menino poeta (1943), (Como não foi possível encontrar a edição original de O menino poeta, em que se insere “Tempestade”, estamos utilizando a transcrição do referido poema obtida em Leitura e desenvolvimento da linguagem (Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989, de A. L. B. SMOLKA et al.), de Henriqueta Lisboa, considerada a obra mais relevante do período, poemas inovados mesclam-se àqueles em que predomina a visão adulta. Um dos poemas em cujos versos predomina a inovação é “Tempestade” (p.64):

1. – Menino, vem para dentro
2. olha a chuva lá na serra,
3. olha como vem o vento!
4. – Ah! como a chuva é bonita
5. e como o vento é valente!
6. – Não sejas doido, menino,
7. esse vento te carrega,
8. essa chuva te derrete!
9. – Eu não sou feito de açúcar

10. para derreter na chuva.
11. Eu tenho força nas pernas
12. Para lutar contra o vento!
13. E enquanto o vento soprava
14. e enquanto a chuva caía,
15. que nem um pinto molhado,
16. teimoso como ele só:
17. – Gosto de chuva com vento,
18. gosto de vento com chuva!

Constituído de versos brancos, este poema apresenta irregularidade na configuração estrófica que acompanha, ao nível semântico, uma visão de mundo também anticonvencional. Constata-se uma brincadeira com a sonoridade, de modo a instaurar estreita correlação entre sons e significados: – Menino, vem para dentro/ olha a chuva lá na serra,/ olha como vem o vento!// – Ah! como a chuva é bonita/ e como o vento é valente! (v.1-5).

A aliteração do fonema sonoro constritivo labial /v/ sugere o próprio som do vento a anunciar a tempestade próxima. Em meio ao temporal que se forma, duas vozes conflitantes medem forças: a prudência adulta e a vitalidade infantil. O adulto tenta impor sua autoridade através do tom exclamativo, mas o menino também sublinha sua vontade exclamativamente, além de qualificar a chuva (como bonita) e o vento (como valente).

Ao contrário dos poemas do 1o período, em que a criança não tinha voz, neste ela não apenas tem voz como esta supera a do adulto, cujos exageros e dramaticidade são ignorados pelo garoto travesso e autoconfiante: – Eu não sou feito de açúcar/ para derreter na chuva./ Eu tenho força nas pernas/ Para lutar contra o vento! (v.9-12).

Nas estrofes finais, aparece a voz do eu-poético a descrever o menino em sua obstinada teimosia, em meio à tempestade que já desaba: E enquanto o vento soprava/ e enquanto a chuva caía,/ que nem um pinto molhado, / teimoso como ele só:// – Gosto de chuva com vento,/ gosto de vento com chuva! (v.13-18).

O contato com as forças da natureza, promovendo a fusão entre menino e chuva, o faz exclamar exultante, e a palavra final cabe a ele e não ao adulto autoritário. Como as palavras chuva e vento se repetem ostensivamente e como elas são sugestivas de per si, quase onomatopaicas, essa reiteração intensifica o som da tempestade, de forma que o nível sonoro reflita o semântico. Além disso, o gradativo aproximar da tempestade caminha em paralelo à progressão da vontade infantil que também se impõe, decisivamente, no final do poema.

A partir dos anos 60, baniu-se a antiga tradição que fazia do gênero um meio de adestramento social, e a forma, que ganhou roupagem moderna, fez com que a produção poética para a infância no Brasil alcançasse a necessária autonomia. Uma obra inovadora é Ou isto ou aquilo (1964) (Neste artigo, estamos utilizando a edição de 1990, publicada pela editora Nova Fronteira), de Cecília Meireles, em que se desvenda a interioridade infantil através da exploração sonora, como se verifica em “Moda da menina trombuda” (p.11):

1. É a moda
2. da menina muda
3. da menina trombuda
4. que muda de modos
5. e dá medo.
6. (A menina mimada!)

7. É a moda
8. da menina muda
9. que muda
10. de modos
11. e já não é trombuda.
12. (A menina amada!)


Neste poema, constituído de versos polimétricos, o tema, em vez de receber um tratamento de dura repreensão do adulto, é tratado com singeleza. Abordando a metamorfose d’(A menina mimada!), que, deixando de ser trombuda, torna-se (A menina amada!), a poeta trabalha com as mudanças de humor passageiras.

As associações sonoro-semânticas, no título e na estrofe inicial, ocorrem pelo emprego das nasais /m/, /n/ e /õ/ e das vogais fechadas /e/, /i/ e /u/ que, através da reiteração, revelam o humor infantil.

Na 2a. estrofe, constituída de um só verso, (A menina mimada!), ocorre uma abertura vocálica que se repete no verso final. Dá-se especial relevo a esse verso, já que, além de sozinho constituir uma estrofe, vem destacado pelos parênteses e pelo ponto de exclamação, recursos que reforçam sua importância.

Na estrofe seguinte, apesar de a menina continuar mudando de modos, estes já não são os mesmos, pois ela já não é trombuda (v.11). No verso que finaliza o poema, destaca-se, como no verso 6, o conteúdo através dos mesmos recursos, havendo nova abertura decorrente do sentido positivo inerente ao verbo amar.

Há dois momentos fundamentais no poema, refletidos na divisão do texto em partes, graficamente simétricas: o primeiro (v.1-6) é o da menina trombuda; o segundo (v.7-12), do instante em que ela se sente amada. Portanto, o nível gráfico, a par da sugestiva sonoridade, espelha as significações presentes, concretizando os estados anímicos da criança.

A pronunciada musicalidade de que se reveste o poema, através das nasais e das vogais fechadas em oposição à vogal aberta /a/, vai ao encontro da palavra moda, pois este termo refere-se a um certo tipo de cantiga popular. Além disso, moda pode também designar capricho. Neste sentido, parece haver correlação de moda-cantiga e de moda-capricho com a moda cantada no poema, já que tanto a musicalidade quanto o comportamento caprichoso da menina se presentificam em “Moda da menina trombuda”.

DISCUSSÃO

Se, por um lado, a doutrinação foi uma constante na gênese da poesia infantil brasileira, por outro, os autores desse período apresentam grande importância histórica, em virtude do pioneirismo em criar uma literatura infantil genuinamente brasileira. Além disso, se é verdade que eles se revestiram de uma postura doutrinária, isto, na realidade, ocorreu pelo fato de estarem em consonância com a conservadora ideologia da época. A partir da década de 20, houve tentativas de romper com esse conservadorismo, obtendo-se um razoável acervo de poemas originais, dando início à emancipação do gênero, que se consolida, de forma indelével, a partir dos anos 60, embora ainda existam, ao lado de poetas genuínos, indivíduos que escrevam versos pautados no didatismo.

CONCLUSÃO

Se a poesia infantil brasileira, em seu período inicial, caracterizou-se pelo utilitarismo, e se, nas décadas de 20 a 50, surgiram modernistas que nutriram o desejo de emancipação poética, a partir dos anos 60, tal desejo foi significativamente concretizado. Na ausência de intuitos doutrinários, o poeta dialoga com a criança, a assimetria se desfaz e o universo infantil é respeitado, promovendo o encontro entre criança e poesia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BILAC, O. Meio-dia. In: BILAC, O. Obra reunida (org e introd. de Alexei Bueno). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996, p.317-318.

CADERMATORI, L. Jogo e iniciação literária. In: ZILBERMAN, R.; CADERMATORI, L.. Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. 2. ed. São Paulo: Ática, 1984, p.28-37.

LISBOA, H. Tempestade. In: SMOLKA, A. L. B. et al. Leitura e desenvolvimento da linguagem. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989, p.64.

MEIRELES, C. Moda da menina trombuda. In: MEIRELES, C. Ou isto ou aquilo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p.11.

Fonte:
PRADO, Isaura Maria Mesquita; MOLINARI, Sonia Lucy (editores). VII SAU (Semana de Artes da UEM). II Mostra Integrada de Ensino, Pesquisa e Extensão. 21 a 30 maio 2004. Maringá: UEM - Universidade Estadual de Maringá. Arq. Apadec, 8(supl.): Mai, 2004 ISSN 1414-7149 (CD-ROM).

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DADOS DO AUTOR
Possui graduação em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (2003) e mestrado em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (2006). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura, atuando principalmente com prosa experimental, literatura infanto-juvenil e leitura. Atualmente, cursa doutorado em Letras na Universidade Estadual Paulista (UNESP - São José do Rio Preto), integra a Banca de Avaliação da Prova Discursiva de Literatura do Vestibular da Universidade Estadual de Maringá e atua como professora na rede particular de ensino .
Fonte:
Currículo Lattes

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