terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Arquivo Spina 27 - Ana Luzia Moura

 


Milton S. Souza (Somos todos anjos)


Alta madrugada. Despertei e notei que o Anjo da Solidão, meu companheiro inseparável de todas as noites, não estava no leito ao meu lado. Um pouco assustado, notei na penumbra do quarto que o Anjo do Sono estava sentado ao pé da cama. Antes que os meus olhos estivessem completamente abertos, ele falou: - Vamos brincar de esconde, esconde? E sumiu sem esperar a minha resposta. Contei até dez... Até cem... Até mil... E procurei o Anjo do Sono no meio dos lençóis amassados, nas sombras que a luz fraca da lâmpada de cabeceira jogava nas paredes e até no tique taque impaciente do relógio despertador. E nada…

Um clarão repentino renovou o meu susto. Logo reconheci o olhar achocolatado e os cabelos esvoaçantes do Anjo da Amizade que, saindo não sei de onde, pousou docemente ao lado do meu travesseiro. Em poucos segundos, ele segurou as minhas mãos entre as suas, e começou a contar histórias lindas dos belos momentos que tantas vezes passamos juntos. A penumbra ganhou centenas de cores enquanto nós dois, de mãos dadas, começamos a passear pelos caminhos das recordações. Respiramos o ar puro da brisa que brincava de pegar com as borboletas nas sombras de grandes árvores. Sentamos na beira de um lago de águas azuis, onde os peixinhos faziam malabarismos para chamar a nossa atenção. Atravessamos um jardim repleto de flores, enquanto centenas de passarinhos, de todas as cores, cantavam saudando a nossa passagem. Foi então que entramos num bosque onde a neblina era tão espessa que os nossos olhos, abertos ou fechados, enxergavam a mesma escuridão. Levei outro susto quando senti que a mão do Anjo da Amizade se desprendeu da minha. Abri os olhos e me vi novamente deitado no meu leito, com o Anjo do Sono cobrindo a minha visão com as suas mãos cinzentas.

- Onde está o Anjo da Amizade?, perguntei, enquanto sentia um torpor na mente, como se todas as forças estivessem fugindo do meu corpo. O Anjo do Sono ainda respondeu, antes que meus olhos se fechassem num sono profundo: - Não sei de Anjo da Amizade. Vi dois anjos voando em disparada quando cheguei. O Anjo do Amor, que estava de mãos dadas com o Anjo da Saudade. E, além de mim, só tem mais um anjo neste quarto: o Anjo da Solidão, que já está dormindo, como sempre, do teu lado.

Ainda tentei ficar com os olhos abertos, mas o Anjo do Sono, severo, me mandou dormir. Comovido com a minha tentativa de ficar acordado, ele falou mais uma vez: - Dorme tranquilo. Vou mandar o Anjo dos Sonhos entrar no teu sono. E ele, que tem a mania de satisfazer todas as vontades de todos, mesmo aquelas vontades que a pessoa nem manifesta, fará com que tu encontres com todos os anjos que quiseres, até mesmo com este tal Anjo da Amizade que os teus pensamentos inventaram...

Então fechei os olhos e dormi como um anjo. E sonhei com todos os anjos que fazem parte da minha vida. Acordei na manhã deste dia com a certeza de que nós todos somos anjos. Mudamos de nome dependendo da situação e do nosso jeito de estender a mão e de caminhar de mãos dadas com quem precisa. Depois disso, passamos a fazer parte dos sonhos das outras pessoas, que nos reconhecem como os anjos que foram importantes para elas naquele momento mais preciso.

Fonte:
Recanto das Letras

Baú de Trovas XXX


Este vazio em meu peito,
veja a que ponto chegou:
dói-me tanto, e de tal jeito,
que nem saudade ficou...
A. A. de Assis
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A mentira não resiste
por ser sempre incoerente;
vê-se logo que é um chiste:
a verdade é transparente...
Alfredo Barbieri
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Enquanto a vida não passa,
enquanto a morte não vem,
quem deixa marcas de graça
tem outros mundos no além!
Ari Santos de Campos
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Na gaiola um ser se agita,
com certeza por saudade...
Só não sei porque não grita
por socorro: LIBERDADE!
Célia Aparecida Silli Barbosa
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Em meio a um mundo violento
poesia é paz natural.
E a trova mostra o talento
no teatro universal...
Célia Guimarães Santana
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Pelos mares do infinito,
jogo anzóis e redes novas,
e, no meu sonho bonito,
pesco cardumes de trovas!
Delcy Canalles
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Beleza é ter a prudência
de uma vida pura e calma,
onde a nossa consciência
não cria rugas na alma!
Dilva Maria de Moraes
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Nas águas turvas da vida
que já não venço, alquebrada,
a fé é e corda estendida
que me garante a chegada,
Dorothy Jansson Moretti
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Jogo de amor não tem pressa,
adora preliminares...
Toda sedução começa
num longo beijo... de olhares!
Élbea Priscila Souza Silva
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De mãos dadas caminhava
com ele ao lado direito.
Minha alma doce sonhava
num casamento perfeito!
Elisa Alderani
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Até mesmo o passarinho,
que pensa ter liberdade,
retorna sempre ao seu ninho,
do qual também tem saudade.
Ilze de Arruda Camargo
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Tenho vivo em minha mente
um porto de salvação,
que me faz muito contente
e feliz meu coração !
Isaías Teves
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Jamais somo as amarguras
de minha vida sofrida…
eu somo em dobro as ternuras
para viver bem a vida...
Ivone Taglialegna Prado
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A grande dor que apunhala,
a mágoa que me angustia,
é ver, no fundo da sala
tua cadeira vazia...
Janske Niemann Schlenker
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Para voltar não me peças.
Seria uma insensatez
eu crer nas tuas promessas
e arrepender-me outra vez!
José Tavares de Lima
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Abençoado é o momento
quando alguém, de coração,
liberta o ressentimento
e diz: – Perdoo-te, irmão!
Jupyra Vasconcelos
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A natureza se vinga
de toda agressão sofrida
e essa revolta respinga
no centro de nossa vida!
Luiz Carlos Abritta
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À espera do teu regresso,
deixei a vida passar!...
Envelheci, mas... confesso:
valeu a pena esperar!
Maria Madalena Ferreira
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Em meu peito, soluçando,
escondo uma dor antiga,
para dizê-la, cantando,
nos versos de uma cantiga!
Matusalém Dias de Moura
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Debruçada na janela,
a espargir o seu fulgor,
a lua cheia revela
segredos do nosso amor!
Relva do Egypto Resende Silveira
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Canta o rio a sua sanha
entre as pedras do caminho,
enquanto a noite acompanha
os sonhos do ribeirinho...
Rita Marciano Mourão
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Alegria verdadeira,
neste mundo de ilusão,
é sonhar a vida inteira
sem tirar os pés do chão.
Roberto Resende Vilela
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O trabalho que mais traz
a paz pela qual se anseia
é aquele que a gente faz
em prol da ventura alheia.
Sandro Pereira Rebel
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Como pode alguém falar
tudo aquilo que se sente,
numa trova singular
e que espelha a alma da gente?!
Talita Batista
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A trova, grande tesouro
que só o trovador recria;
o sentimento vira ouro...
e os versos pura magia!
Vanda Alves da Silva

Fonte:
Informativos da Seção São Paulo

Lygia Fagundes Telles (A Janela)


A mulher estendeu-lhe a mão e sorriu. O homem pareceu não ter notado o gesto. Ficou imóvel no meio do quarto, os braços caídos ao longo do corpo, o olhar fixo na janela.

— Havia ali uma roseira.

Lentamente ela amarrou na cintura o cinto do penhoar de seda japonesa. Examinou mais atenta o homem alto e magro, um pouco arqueado, de cabelos grisalhos com reflexos de prata.

— Que roseira?

— Uma roseira — disse ele num tom velado, vagando o olhar pelo quarto. — Certa vez, deu mais de cem rosas. Umas rosas enormes, vermelhas...

— Como é que o senhor sabe?

— Meu filho morreu neste quarto.

Ela sentou-se na beirada da cama. O riso foi-se desfazendo nos lábios grossos, mal pintados.

— Seu filho?!

— Este era o quarto dele — disse o homem voltando para a mulher o olhar fatigado. Tinha olhos palidamente azuis e falava baixinho, como se receasse ser ouvido. Um olho era bem maior do que o outro. — Exatamente onde está sua cama ficava a cama dele.

Ela descruzou as pernas e lançou um olhar constrangido para a cama coberta de almofadas coloridas. Sorriu sem vontade.

— Imagine... Isso faz muito tempo?

— Não sei.

Encarou-o. Estendeu-lhe o maço de cigarro.

— Está servido?

— Não fumo.

— No que faz bem. Diz que fumo dá aquela doença que nem gosto de falar. Queria ver se deixava mas quando deixo engordo que nem louca — lamentou fazendo um muxoxo. — A gola do penhoar abriu-se no peito. Ela fechou a gola frouxamente, de maneira que voltasse a se abrir de novo. — O senhor... você não quer se sentar? — convidou, indicando a pequena cadeira vermelha ao lado da mesa de toalete. — Fique à vontade, meu bem.

Ele sentou-se, encolhendo as longas pernas para não tocar nas da mulher. Entrelaçou as mãos. Vestia-se corretamente, mas a roupa parecia larga demais para seu corpo.

— Eu precisava rever essa janela.

— Só a janela?

O homem fixou na mulher o olhar desesperado.

— Meu filho morreu aqui.

— Deve ter sido horrível — disse ela depois de um breve silêncio. Soprou, nostálgica, a brasa do cigarro. Encarou o homem. E tentou uma risadinha: — Sorte a minha de ter escolhido este quarto, só assim podia te conhecer... Sabe que você é o meu tipo? Vem, senta aqui comigo!

— Era ele quem cuidava da roseira.

No cômodo ao lado alguém ligou um toca-discos. A música arrastou-se na surdina, era um samba-canção. Pigarreando forçadamente, a mulher teve um meneio de ombros. A gola do penhoar abriu-se até os bicos dos seios. Cruzou as pernas deixando cair no chão a sandália dourada. Descobriu os joelhos roliços.

— Mas então? Você trabalha por perto? Me dê sua mão, deixa eu adivinhar o que você faz... Sei ler mão, uma vez disse pra um cara, você vai ganhar na loteria! E não é que ele ganhou mesmo? Me dá sua mão e eu já digo o que você faz, dá aqui, amor...

– Não trabalho — murmurou ele percorrendo com o olhar o teto do quarto. Deteve-se na janela. — Não é estranho? Assim sem a roseira ela parece menor.

Esticando o braço nu, a mulher esmagou no cinzeiro a brasa do cigarro. Enfiou as mãos nos cabelos encaracolados, puxando-os para trás. Examinou o homem, intrigada.

— Quando me mudei não tinha nenhuma roseira.

— Morreu exatamente um mês depois dele.

— Pois quando cheguei aqui nem o canteiro tinha. Isso já faz três anos. Sou de Rio Preto, já contei?

O homem tirou do bolso uma pequena caixa de injeção e ficou a rodá-la entre os dedos. Repuxou a boca numa contração.

— Na véspera de morrer ele ainda me pediu que eu abrisse a janela, queria sentir o perfume... Enquanto pôde, debruçou-se nela. Depois, quando perdeu as forças, ficava olhando da cama. Um galho da roseira insistia em entrar pelo quarto adentro. Era um galho tão áspero, tão violento, eu o afastava, mas ele vinha novamente cheio de espinhos e folhas... Nunca tive coragem de cortá-lo.

A mulher foi afundando na cama até recostar-se no ângulo do espaldar com a parede. Puxou uma almofada e nela apoiou o cotovelo. Apertou os olhos. E ficou mordiscando a unha do polegar. Falava agora em voz baixa, no mesmo tom abafado do visitante.

— Que é que você tem aí dentro? Injeção?

— Nada — sussurrou ele, abrindo a caixa. Ergueu a face Perplexa: — Está vazia.

Uma porta bateu com estrondo. A mulher teve um estremecimento.

— Sempre me assusto quando uma porta bate — desculpou-se. — Fico nervosa à toa...

— Queria que me perdoasse — pediu ele num tom mais baixo ainda. — Mas é que eu precisava ver essa janela.

— Fique à vontade, imagine... O que é de gosto, regalo da vida!

— Era muito importante para mim voltar aqui.

— Já entendi, essas coisas eu entendo, pode deixar... Você é estrangeiro?

— Meu pai era dinamarquês.

— Dinamarquês — repetiu a mulher inexpressivamente. Inclinou-se para apanhar o cigarro. — Logo que você entrou, achei que devia ser estrangeiro. Posso saber seu nome?

Ele baixou a cabeça. As veias da fronte dilataram-se, tortuosas. Assim, de cabeça baixa, parecia um velho.

—As casas deviam ter mais janelas.

Passos ressoaram pesadamente no cômodo vizinho. A música foi interrompida, fazendo a agulha riscar o disco. A mulher encolheu as pernas. Cobriu com uma almofada os pés nus. Fechou no pescoço a gola do penhoar.

— A Brigite é apaixonada por esse disco, repete ele umas cem vezes por dia. Agora está mudando de lado. Quer que eu vá pedir pra parar?

— Não se incomode — ele sussurrou estendendo a mão espalmada na direção da mulher. Recolheu depressa a mão quando a viu estremecer. —Assustei-a?

— Que nada! É que sou mesmo assim, ando nervosa, acho que é o calor, está hoje um calor, não está? Mas posso pedir pra ela diminuir, vou num minuto...

— É aqui que está o botão para diminuir o som — disse ele apontando para o ouvido. — Todos os botões estão em nós mesmos.

Recomeçou a música acompanhada por uma voz de mulher, cantarolando meio distraída.

— O senhor sabe as horas? Marquei hora na Mirtes.

– Não tenho relógio. Mas por que me chamou de senhor? — ele quis saber examinando-a com uma expressão afetuosa. – Nos reuníamos junto da lareira. Foi na casa desse avô que eu vi a neve pela primeira vez. Cobria tudo, não se podia nem abrir a vidraça. Então ficávamos na sala, brincando perto da lareira. Tinha um corcundinha de roupa amarela e chapéu de guizos. Os dentes eram de ouro. Eu rolava com ele no tapete, fazendo-lhe cócegas só para ver seus dentes...

— Também tenho um dente de ouro — começou ela em meio de um risinho. — Só que é lá no fundo. Às vezes dói, o bandido.

— Começa hoje a primavera. Você teria rosas lindíssimas.

A mulher ficou de joelhos na cama. Estava pálida. Os lábios trêmulos. Falava agora como ele, delicadamente.

— Olha, espere um pouco que vou buscar um refresco pra nós, tá? A Nanei fez uma delícia de refresco, uvaia com bastante açúcar, bem geladinho.

Ele descruzou as mãos e ficou a olhar para os dedos longos, abertos num espanto. A voz rouca saiu entrecortada.

— Não seria preciso mais do que uma pequena janela. Poderia então respirar. E quem sabe o galho de roseira...

Ainda de joelhos, sem ruído, a mulher foi deslizando para o chão. Abriu a porta.

— Fique bonzinho, volto num instante, tá? Escurecia. A sombra arroxeada do crepúsculo dava uma coloração de vinho velho à coberta vermelha da cama. O vento soprou mais forte, fazendo farfalhar o saiote de papel de seda da bonequinha vestida de bailarina, dependurada no espelho por um fio. No toca-discos, a agulha riscava obstinadamente o disco que chegara ao fim. O homem não se moveu na cadeira vermelha, tão integrado na penumbra quanto os objetos em redor.

— Demorei muito? — perguntou a mulher entrando sorrateira. — É que fui buscar laranjas, o refresco tinha acabado, fiz outro, está na geladeira — acrescentou atropeladamente.

Mantinha-se junto da porta, a mão torcendo o trinco. — Vou acender a luz, está escuro demais, credo!

— Não, por favor, está tão bom assim — pediu ele com doçura. Falava num tom quase inaudível: — E nesta hora que começa o perfume, a gente sente melhor no escuro.

— Perfume de quê?

— De rosas.

Ela encostou a cabeça na porta, os olhos muito abertos, a respiração curta. Vinha agora do corredor um ruído arrastado de passos. Vozes de homens e mulheres cruzaram-se precipitadas. Abriu-se a porta. Um enfermeiro entrou a passos largos, seguido por outro enfermeiro. Três mulheres de ar assombrado ficaram espiando do lado de fora. Alguém acendeu a luz.

O homem levantou-se e tapou os olhos com a mão. Aos poucos foi levantando a cabeça, os olhos ainda apertados. Pôde então encarar o enfermeiro que desdobrava uma camisa de força. Estendeu tranquilamente as mãos. Tinha na fisionomia uma expressão de profunda tristeza.

— É preciso?

O enfermeiro teve um sorriso contrafeito. Encolheu os ombros enquanto dobrava a camisa. E aproximou-se com brandura.

— Então vamos.

Ele teve um último olhar para a janela. Depois voltou-se para a mulher, descalça e encolhida num canto. Falou tão baixo que só ela pôde ouvi-lo.

— Porquê?...

O segundo enfermeiro tomou-lhe o braço e em silêncio o cortejo foi saindo para a rua.

Como se obedecessem a um secreto sinal, as três mulheres precipitaram-se para dentro do quarto, rodeando a companheira que continuava colada à parede, fechando no peito a gola do penhoar.

— Que horror! — exclamou a mulher de lenço amarelo amarrado na cabeça. — Como é que você não morreu de susto? Fechada com um louco aqui dentro? Só de pensar fico toda arrepiada, olha aí!

– Mas até que ele tinha uma cara bem simpática — disse a loura de brincos. — Era meio parecido com aquele artista de cinema, aquele meio velho, como é mesmo o nome dele? James...

— Ah! não quero nem saber, Deus que me livre de topar com um louco — interrompeu-a a mulher de lenço. — E como é que você descobriu que ele tinha fugido? Puxa vida, que você dava até para trabalhar na polícia! Isso prova que a gente devia ter um revólver no quarto. Metralhadora, minha filha.

— Coitado, fiquei com tanta pena... E nem fez nada, não foi? — perguntou a loura, voltando-se para a amiga. — Podia ter abusado, não abusou. Palavra que fiquei com pena, ele lembrava muito aquele artista, nós vimos a fita juntas, o nome começava com James...

Repentinamente a mulher pareceu despertar no canto onde se encurralara. Abarcou as três mulheres num olhar enfurecido. Empurrou-as para fora do quarto:

— E chega, ouviram? Chega! Vão-se embora, me deixem em paz!

— Mas que bruta! A gente estava só querendo...

— Chega! — gritou ela, fechando os punhos. — Saiam todas, vamos, você aí também, fora! Fora!

Bateu a porta com estrondo. Por um momento prosseguiram ainda as vozes das mulheres falando exaltadas, ao mesmo tempo. Em seguida, num tropel, desandaram para a rua.

Viu-se no espelho, desgrenhada e descalça. Desviou depressa o olhar da própria imagem. Apagou a luz. E sentando-se na cadeira onde o homem estivera sentado, ficou olhando a janela.

Fonte:
Lygia Fagundes Telles. Antes do Baile Verde: contos. Publicado em 1970.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Varal de Trovas 482

 


Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 12: Patacoadas


O  CIDADÃO PIRES DA CONCEIÇÃO XICRINHA  requereu numa das varas de família do Rio de Janeiro, seu divórcio, tendo em vista que não podia, segundo ele,  oferecer nada de bonito e elegante à sua esposa, a bela e esfuziante Pedralinda Pedregulhosa da Costa Xicrinha, ao passo que ela tinha de tudo do bom e do melhor.  

De fato, linda e maravilhosa, no albor dos vinte, Pedralinda Pedregulhosa da Costa Xicrinha era filha de mamãe e de papai. Apesar de saber do divorcio repentino, num primeiro momento rodou a baiana, subiu nas tamancas, virou bicho. No dia da audiência, mais calma, contratou a sua mãe, advogada porreta e sogra de Pires da Conceição Xicrinha. Os dois (nora e genro) pareciam  gato e rato numa briga desigual.   

No dia aprazado, todos reunidos na sala de audiência, a mãe advogada pediu a palavra, depois que o juiz abriu a boca e deu por aberta a contenda e mandou aquelas palavras idiotas de sempre, coisas para bois cansados e com sono dormirem logo que se recolhem a seus aposentos reais:

JUIZ:

- Senhora Pedralinda, não existe a possibilidade de ser repensado o pedido aqui protocolado e o casal terminar com os entraves e partir para uma possível reconciliação?

Antes que a autora respondesse, a mãe dela, dona Aurora Tribufú da Costa tomou a dianteira.

MÃE:

- Na, né, ni, na não, excelência...

O juiz escaneou a senhora de cima em baixo ajeitando os óculos para melhor contemplar a beldade que bruscamente o interrompera.

JUIZ:

- A senhora, quem é?

Aurora Tribufú da Costa, mãe de Pedralinda Pedregulhosa da Costa Xicrinha se levantou num salto e, igualmente, encarou o juiz:

- Sou a mãe dela, senhor juiz.

JUIZ:

- Senhora, quem precisa decidir é a sua filha. Por favor, fique em silêncio.

A senhora Aurora Tribufú da Costa vociferou:

- Um momento, Excelência. Eu preciso esclarecer que...

O juiz, soltou um latido esquisito e estridente dando sinais de fúria, como se tivesse sido mordido por um leão esfomeado:

- Senhora, como é seu nome?

MÃE:

- Meu nome é Aurora Tribufú da Costa. E o seu?

JUIZ:

- Isto não vem ao caso. Então, dona Aurora, a senhora como mãe, não pode interferir. Fique calada, ou pedirei que saia desta sala.

A MÃE (DE NOVO):

- Protesto, Excelência.

O JUIZ (BATEU NA MESA):

- Como é que é?

A MÃE  (AGORA, VISIVELMENTE TRÊMULA E NERVOSA):

- Eu protesto. Sou a mãe dela.

JUIZ:

- Não importa. Fique de boca fechada. A senhora não pode meter o bedelho.

A MÃE (SOCOU TAMBÉM A MESA, EM REAÇÃO AO ATO DO MAGISTRADO):

- Excelência, sou a mãe dela, como disse e outro detalhe. Sou advogada e estou aqui devidamente constituída defendendo os direitos de minha filha, tendo em vista o marido dela (este ai – falou apontando o sujeito) querer dar uma de João sem braço em cima da minha menina. Se Vossa Excelência olhar no processo, verá a minha procuração.

O JUIZ (COÇOU A CABEÇA):

- Por que não disse logo que era advogada da separanda?

A MÃE:

- O senhor não perguntou...

JUIZ:

- E por que a sua filha não pode responder ao que perguntei?

MÃE (DESABAFANDO):

- Meu genro, excelência, esta coisa aí, o Pires da Conceição Xicrinha é um pobretão metido a riquinho. Aliás, um riquinho fajuto. Alegou, em sua petição, que nada pode oferecer de bonito e elegante à minha querida filha.

E COMPLETOU, CHEIA DE IRA:

- Estou farta de ouvir, nos fóruns da vida, e nas audiências que faço, que os maridos que se queixam alegando que as suas mulheres são bonitas demais para eles, é porque não tem dinheiro suficiente para bancar os gastos mais prementes dos quais elas necessitam no dia a dia. Ou seja, este sujeitinho ai, em resumo, quer dar o golpe. Com a separação, pretende mamar metade dos bens que dei a ela. Eu mato este sujeito, eu mato... Tenho dito...

Juntando as palavras ao gesto, a mãe da jovem abriu a bolsa e empunhou uma 380 novinha em folha. O juiz, apavorado, se escondeu debaixo da mesa. O genro  preferiu voar para uma sala  contígua, sendo seguido por sua advogada. A promotora de justiça desmaiou.

A escrivã, antes de sair de cena, derrubou o computador que se espatifou, no chão causando uma explosão.  Alguém, lá fora, ouvindo a discussão acalorada e os gritos de socorro, chamou os policiais que meteram  os pés na porta e  contiveram a advogada.  Completamente endiabrada, a tresloucada partiu para cima do genro, arma empunhada, prometendo,  a brados retóricos, manda-lo para a terra dos pés juntos. Acabou presa.  

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Laurindo Rabelo (Poemas Escolhidos) III

A SRA. D. TERESA MARIA CAETANA DA TRINDADE

(Oferecida a sua madrinha D. Teresa Trindade por ocasião de seu aniversário)

Que importam anos? Uma flor existe
Que, quanto mais por ela o tempo corre
Mais seu aroma e seu verdor aumenta;
Com o tempo revive, nunca morre.

É a virtude, raio que no mundo
Do céu dardeja o sol da eternidade,
Em si bem como Deus o tempo encerra,
Anos não conta, nem aumenta a idade.

O homem que a contempla, embora viva
Séculos a contemplar-lhe a formosura,
Mais aroma lhe sente, e vê na forma
Mor garbo, mais beleza e mais doçura.

Não, as cãs da velhice não enfeiam
A fronte da matrona virtuosa;
Diadema de prata nela brilha,
Qual na da mocidade brilha a rosa.

Se a grinalda de rosas da donzela
É bela por dizer graça e meiguice,
Exprime mais solenes predicados
A coroa de prata da velhice.

Mostra uma virtude ainda nascente,
As galas, o trajar da juventude,
E a outra, coroa de triunfos,
Que já colheu dos anos a virtude.
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O DESALENTO
(Ao meu amigo Leopoldo Luís da Cunha)

Quando eu morrer, minha morte
Não lamentes, caro amigo,
Que o sepulcro é um jazigo
Onde eu devo descansar;
A minha triste existência
É tão pesada, é tão dura,
Que a pedra da sepultura
Já me não pode pesar.

Uma lágrima, um suspiro,
Eis quanto custa o morrer;
Custa-nos sempre o viver
Prantos, suspiros, sem fim!
Que tormento fora a vida,
Se não fosse transitória!?...
Não me risques da memória,
Porém não chores por mim.

Enchem trevas o sepulcro,
Mas ninguém delas se queixa;
Quando o morto os olhos fecha,
Não quer luz, quer sossegar;
Aquele fundo silêncio,
Aquele extremo abandono,
Dão-lhe tão profundo sono,
Que nem pode despertar.

Já tive medo da morte,
Agora tenho da vida;
Sinto minha alma abatida,
Sem vigor o coração;
Já cansado de viver,
Para a morte os olhos lanço;
Vejo nela o meu descanso,
A minha consolação.
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DOIS IMPOSSÍVEIS

Jamais! quando a razão e o sentimento
Disputam-se o domínio da vontade,
Se uma nobre altivez nos alimenta
Não se perde de todo a liberdade.

A luta é forte: o coração sucumbe
Quase nas ânsias do lutar terrível;
A paixão o devora quase inteiro,
Devorá-lo de todo é impossível!

Jamais! a chama crepitante lastra,
Em curso impetuoso se propaga,
Lancem-lhe embora prantos sobre prantos,
É inútil, que o fogo não se apaga.

Mas chega um ponto em que lhe acena o ímpeto
Em que não queima já, mas martiriza,
Em que tristeza branda e não loucura
À razão se sujeita e harmoniza.

É nesse ponto de indizível tempo
Onde, por misterioso encantamento,
O sentir a razão vencer não pode,
Nem a razão vencer ao sentimento.

No fundo de noss’alma um espetáculo
Se levanta de triste majestade,
Se de um lado a razão seu facho acende
De outro os lírios seus planta a saudade.

Melancólica paz domina o sítio,
Só da razão o facho bruxoleia
Quando por entre os lírios da saudade
Do zelo semimorto a serpe ondeia!

Dois limites então na atividade
Conhece o ser pensante, o ser sensível:
Um impossível — a razão escreve,
Escreve o sentimento outro impossível!

Amei-te! os meus extremos compensaste
Com tanta ingratidão, tanta dureza,
Que assim como adorar-te foi loucura,
Mais extremos te dar fora baixeza.

Minh’alma nos seus brios ofendida
De pronto a seus extremos pôs remate,
Que mesmo apaixonada uma alma nobre
Desespera-se, morre, não se abate.

Pode queixar-se inteira a felicidade
De teu olhar de fogo inextinguível,
Acabar minha crença, meu futuro,
Aviltar-me! jamais! É impossível!

Mas a razão, que salva da baixeza
O coração depois de idolatrar-te,
Me anima a abandonar-te, a não querer-te,
Mas a esquecer-te, não, sempre hei de amar-te!

Porém amar-te desse amor latente,
Raio de luz celeste e sempre puro
Que tem no seu passado o seu presente,
E tem no seu presente o seu futuro.

Tão livre, tão despido de interesse,
Que para nunca abandonar seu posto,
Para nunca esquecer-te, nem precisa
Beber, te vendo, vida no teu rosto.

Que, desprezando altivo quantas graças
No teu semblante, no teu porte via,
Adora respeitoso aquela imagem
Que deles copiou na fantasia.
 
Fonte:
Laurindo Rabelo. Poesias completas.

Carla Rejane Silva (Silêncio absoluto)


Estranho este silêncio vindo de dentro para fora. Não escuto nada, nem mesmo as batidas do meu coração. Logo ele, que vivia em festa... Em desespero, procuro sair deste marasmo infundado, busco escapar desta loucura-lamúria que me deixa surda de sentimentos. Quisera eu, simples mortal, quisera poder entender, ao pé da letra, o que vai dentro de minha alma.

Meu ser tenebroso me tira toda aquela vontade de escutar. Meu coração silencioso, derrama lágrimas de sangue por mim.  E me pergunto, a toda hora: quando terei paz? Me questiono, a toda hora, em que momento da minha vida, me sentirei plena e realizada?

Eu, que outrora fui cheia de alegria e contentamento abundante... Que vivia com um sorriso largo e contagiante bailando nos olhos, um sorriso  que transbordava até a  boca, de repente... Do nada, me vi vazia de tudo.

E a minha boca, hoje, esta boca que só tinha palavras sinceras e verdadeiras, que declamava a vida em versos, se fechou. Por algo incompreensível, ela se tornou muda, atrelada a uma surdez sem tamanho.

Este estilhaçar sentimental e cruel, me tirou tudo, me roubou o essencial. Até mesmo o prazer que eu tinha, de ouvir aquele som maravilhoso que me fazia delirar, em forma de brisa leve... Se esvaiu...

Enfim, tudo o que bailava, até então, dentro do meu ‘outro eu’, ou seja, aquele recôndito escondido, que conservava um imenso amor, um grandioso querer, quase abissal, se quedou igualmente inerte.

De repente, sem motivo algum, o sombrear das mazelas da vida, me tiraram o meu desejo de viver entre os mais esfuziantes  e perfeitos. E pior, de conviver com os  eternos, ao som mavioso do uivar da louca e desenfreada paixão.

Fonte:
Texto enviado pela autora

Estante de Livros (Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto)

O Autor


Lima Barreto estreou na literatura em 1909 com a publicação de Recordações do Escrivão Isaías Caminha. A crítica especializada considera-o o nosso grande escritor pré-modernista. Sabe-se que o Pré-Modernismo no Brasil não chegou a efetivamente antecipar a densidade temática e a revolução da linguagem do Modernismo, mas refletiu, e em especial Lima Barreto, uma preocupação de retratar o social e o indivíduo inserido no meio em que ele vive. Digno de nota é o fato de o escritor jamais ter esquecido sua biografia, sendo sua obra uma espécie de extensão de seus dramas individuais, sobretudo o ressentimento que sua condição de mulato reafirmou e as dificuldades que teve de enfrentar numa sociedade preconceituosa como a do Rio de Janeiro do final do século XIX. Lima Barreto faz registro dos conflitos sociais e pessoais de maneira simples e sincera, tomando o leitor como cúmplice de seus sentimentos em relação às injustiças e aos seus anseios por conquistar um mundo melhor.

Realista por convicção e por afinidade e marxista ou maximalista por adoção e modismo. Lima Barreto viveu na época em que o Rio de Janeiro conheceu suas primeiras greves e os primeiros distúrbios sociais de massa que mobilizaram o operariado crescente, fatos que não escaparam da análise do arguto escritor. Suas atividades de jornalista ajudaram-no a registrar, com certa precisão, os fatos que estavam ocorrendo. Graças à prática, conseguiu um estilo mais despojado, longe da tendência parnasiana que invadia as Letras na época. A adjetivação torna-se econômica, a linguagem flui com clareza e precisão, se bem que não é possível presenciar a renovação no interior da frase ou na utilização de uma linguagem coloquial como fariam os modernistas.

Introdução ao tema

A problemática abordada em Recordações do Escrivão Isaías Caminha é o preconceito racial. Segundo Lima Barreto, um indivíduo nas condições de Isaías Caminha poderia ser massacrado pelo preconceito, embora tivesse todas as condições intelectuais para vencer. O escritor confessa ter sido muitas vezes brutal tanto com o personagem quanto com o meio que retratava, mas, acrescenta ele, sempre foi movido pela sinceridade, pois quer ver triunfar a verdade na sua literatura. Portanto, o escritor está dentro dos padrões da literatura engajada que inundou a literatura do final do século XIX. Assim, toda a ficção de Lima Barreto tem muito da realidade que ele registrava após profundas observações da vida durante os primeiros momentos da República.

Enredo

Isaías é o narrador e o personagem principal da obra, transformando-se, no decorrer da narrativa, numa espécie de alter ego do escritor que lhe deu conformação, pois nele e através dele pode o leitor contemplar boa parte da vida, da ilusões e das ideologias de Lima Barreto. O narrador inicia colocando seu círculo familiar desde a infância, sempre retrocedendo, para ressaltar sua inteligência, destacando a sabedoria do pai e a humildade da mãe. Como foi bom estudante, saiu do liceu com um currículo exemplar. Ao considerar as perspectivas de futuro, encontrou no Rio uma opção para o seu crescimento intelectual, encantado com a possibilidade de vir a ser um doutor. Seu tio Valentim recorreu ao coronel Belmiro que escreveu uma carta de recomendação endereçada ao deputado Dr. Castro. Isaías parte para o Rio com a crença inabalável de que obteria sucesso.

Quase menino, contando apenas dezoito anos, Isaías desembarcou no Rio, após longa e difícil viagem. Travou conversa com um comerciante de farinha, o padeiro Laje da Silva, que o acompanhou nas primeiras investigações pela nova cidade. Também conheceu de passagem o jornalista Dr. Ivã Gregoróvitch Rostóloff, ilustrado e simpático repórter, que impressionou Isaías Caminha devido a sua versatilidade linguística.

A situação do protagonista vai ficando dramática, pois não conseguia encontrar-se com o deputado Castro e seu dinheiro foi-se reduzindo rapidamente.

Isaías enfim encontrou uma oportunidade para apresentar a carta ao Dr. Castro, e teve uma outra grande decepção porque o deputado se recusou a ajudá-lo. Deve-se observar que Lima Barreto é um escritor com tendências ao Naturalismo.

A maior humilhação de Isaías veio quando foi intimado a ir à delegacia. Por alto soube de um roubo no hotel onde morava. Crente de que iria depor, sofreu ao perceber que ele era o acusado. Como estava acostumado com a valorização de sua condição, possível através da fama de bom estudante, e de ser muito inteligente, ao ser chamado de 'mulatinho' pelo funcionário da delegacia, ficou ferido em sua susceptibilidade. Ao ser agredido verbalmente, o delegado o encaminha para a prisão. Só se livra da cadeia por ser conhecido do jornalista Gregoróvitch.

Após o incidente, deixou o hotel, procurando abrigo em um quartinho de fundos. Lá conheceu o poeta revolucionário Abelardo Leiva, que se dizia socialista e era secretário do Centro de Resistência dos Varredores de Rua. O poeta vivia pobremente, mas curtia sua miséria, gabava-se de ter participado de duas greves e de ter conscientizado o operariado. Através dele frequentou as reuniões do apostolado positivista e ouviu as prédicas de Teixeira Mendes, em quem Isaías Caminha reconhece um impostor. É também através dele que desvenda o mistério da cidade que o acolheu tão friamente. A situação do protagonista fica cada vez pior.

Não havia mais dinheiro para seu sustento. Confessa ter-se abandona à miséria, pois mal comia ou comia mal e sua sobrevivência em parte era devida ao conterrâneo Agostinho Marques.

Por fim, Isaías reencontra o jornalista Gregoróvitch, a quem confessou suas agruras e os sofrimentos pelos quais estava passando. Gregoróvitch lhe arranja um lugar como contínuo no jornal O Globo. A partir desse momento, a obra praticamente gira em torno das observações que o personagem-narrador faz da rotina do jornal.
 
As observações de Isaías continuam, colocando não só a rotina ao jornal, como também suas próprias ideias e sua vivência. De certa maneira, esse contínuo simples e humilde tornou-se uma espécie de observador passivo dos homens que trabalhavam naquele ambiente, uma vez que pouco participava da rotina do jornal.

Gradativamente, Isaías vai percebendo que a rotina do jornal era uma sucessão de enganos e estavam todos, desde o redator-chefe até o mais íntimo dos operários, à mercê de um diretor tirano e voluntarioso e conferiram a ele o tratamento dispensado a um deus, cultuando-o, venerando-o, obedecendo-o cegamente. Cabe também a Isaías Caminha depositar confiança e admiração pela atuação de Loberant. Pôde constatar, ainda, qur todos se desprezavam entre si, dando aberturas à criação de uma atmosfera falsa e carregada, embora procurassem manter as aparências a qualquer custo. Os personagens de Recordações do Escrivão Isaías Caminha são montados de tal forma que parecem firmar a ideia de que, na cidade, os homens são movidos por interesses escusos e dirigidos pelas aparências. As observações de Isaías continuam sendo oportunas e ele, inteligente e astuto, aproveita-se delas num intenso processo de aprendizagem.

Um incidente viria a mudar a vida do contínuo: Floc, o crítico literário do jornal, suicida-se em plena redação.

Para não ser desmoralizado, o dono do jornal passa a protegê-lo e, pela primeira vez, o rapaz tem a oportunidade de mostrar seus reais dotes jornalísticos.

A referência às suas origens deixou Isaías fora de si, com vontade de agredir o colega. Conteve-se no momento, mas depois, na rua, não hesitou e deitou por terra aquele que o havia ofendido. Foram todos parar na delegacia; Isaías estava aliviado, mas satisfeito de ter-se vingado.

Pela primeira vez na vida, tinha consciência de que não havia se deixado humilhar. Loberant, desse dia em diante, deu mais apoio a seu tutelado. Todos da redação do jornal passaram a considerá-lo e a respeitá-lo. O diretor do jornal, como que movido pelo remorso de tê-lo deixado tanto tempo como contínuo, passou a cobrir-lhe de dinheiro e atenções, levava-o a toda a parte elogiando-lhe o talento, a inteligência e a cultura. Isaías manifestou vontade de abandonar o Rio, satisfazer seus desejos mais simples, casar-se, ter filhos.

Comentário crítico

Em tom retrospectivo, Isaías narrou suas memórias com a convicção de ter vencido em parte os problemas e as humilhações que o meio social preconceituoso lhe delegava, mas mais consciente de estar vivendo uma situação falsa ou de exceção.

A prosa realista de Lima Barreto em Recordações do Escrivão Isaías Caminha está ainda engatinhando na arte de compor a linguagem. Seu trabalho artístico chegaria a páginas perfeitas em obras escritas posteriormente, presenteando a Literatura Brasileira com verdadeiras obras-primas como Triste Fim de Policiarão Quaresma. Em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto é pré-modernista por apresentar tonalidades críticas ao se voltar para o retrato do mundo das aparências e das falsidades. Não é possível esquecer de que muitas das observações aí feitas, ainda hoje são válidas, principalmente no retrato da nossa devassidão política, do jogo de interesses e das relações falsas que deixam os homens à mercê dos mais poderosos.

Personagens principais

Ricardo Loberant - diretor do jornal, tipo alto magro que soube trabalhar para fazer valer sua vontade de ver crescer o jornal. O jornal onde trabalhava 'trazia novidade: além de desabrimento de linguagem e um franco ataque aos dominantes, uma afetação de absoluta austeridade e independência [...] O Globo levantou a crítica, ergueu-a aos graúdos, ao presidente, aos ministros, aos capitalistas, aos juízes, e nunca houve tão cínicos e tão ladrões'. Dirigia o jornal mais polêmico do Rio de Janeiro na época e, sem dúvida, um dos mais vendidos devido à frieza e ao senso crítico que desenvolvia. Sua autoridade deixava marcas profundas em seus subalternos.

Leporace - arrogante secretário do jornal, 'sumidade em literatura e jornalismo, árbitro do mérito, distribuidor de gênios e talentos.'

Frederico Lourenço do Couto - assinava artigos com o pseudônimo de Floc. Era respeitado por entender de literatura e assuntos internacionais, por isso era considerado a alta intelectualidade do jornal. Não se metia em polêmicas ou em escândalos. Isaías comparava-o a uma águia.

Gregoróvitch - esse russo era a artilharia do jornal. Em estilo arrojado e violento, tecia críticas aos adversários.
 
Uma série de outros personagens vão desfilando aos olhos dos leitores, que se mantêm acesos com as descrições dos mais diferentes tipos, sempre apresentados como se fossem instrumentos principais ou secundários de uma batalha.

Fonte:
Site Algo Sobre

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Pergaminhos da Saudade – 2 –

 


Júlia Lopes de Almeida (A Primeira Bebedeira)


– Não saias hoje, meu filho! A noite está tão feia! Que necessidade tens tu de te expor ao tempo?

– Descanse, minha mãe, que eu voltarei cedo...

– Mas repara que é hoje o dia do meu aniversário, que há de vir alguém ver-me, e a tua ausência será censurada...

– Descanse, minha mãe, que eu voltarei cedo...

– A noite está escura e o caminho é tão mau...

– Descanse, minha mãe...

– Que voltarás cedo, não é assim? Pois faze o que quiseres, na certeza de que me dás um desgosto... Adeus!

– Até já, mamãe.

E o moço saiu. Caía uma chuva miudinha, peneirada, leve, e no céu tenebroso não luzia uma estrela. De longe em longe a luz de um lampião iluminava um bocado da rua barrenta, ladeada de mato, sem calçada. Sentia-se o respingar delicado das gotinhas de chuva nas folhas, e ao longe, nuns charcos, umas rãs coaxavam. Ao cabo de um quarto de hora o moço batia com a bengala nas grades de um jardim.

Ouviu abrir-se e fechar-se rapidamente uma porta; depois, uns passos ligeiros quebrando a areia do jardim e uma voz doce dizer-lhe:

– Não posso demorar-me agora... meu tio está em casa!

– Que importa? e eu não deixei minha mãe, hoje, dia de seus anos?

– Ah! mas isso é diferente... os homens fazem tudo que lhes apraz!...

– Mas eu tenho muito que lhe dizer, Albertina!

– Volte logo, às dez horas... falar-lhe-ei da janela...

– Escute...

– Não posso... estão-me chamando, adeus!

E o vulto embuçado da bela Albertina tornou a desaparecer entre os arbustos do jardim. Depois ouviu-se de novo abrir e fechar rapidamente uma porta, e ficou tudo silencioso.

Contrariado, o moço lembrou-se da promessa que fizera à mãe; mas, como voltar, se a Albertina lhe dizia que a fosse ver às dez horas?

Decididamente era preferível fazer a vontade à última. A mãe que se resignasse...

Para não esperar ali, na rua, tolamente, lembrou-se de ir passar uma hora no botequim do bairro, onde tinha a certeza de encontrar amigos.

Assim foi. Junto a uma mesinha de pedra conversavam alto, rindo, três colegas seus, rapazes ainda muito novos, imberbes como ele, afetando um ar de estroinas, de boêmios românticos, convictos de gozarem assim a sua mocidade, apenas desabrochada e já tanto murcha pelas extravagâncias.

Logo que o viram entrar, fizeram os outros grande algazarra; manifestaram espanto, atirando ao ar frases bombásticas salpicadas de adjetivos flamejantes e das mais conhecidas locuções latinas. Abriram--lhe lugar e encheram-lhe o cálice de conhaque. Estabelecida a palestra, o da direita ofereceu-lhe charutos, o da esquerda apresentou-lhe um fósforo aceso, e o que estava em frente renovou-lhe o conhaque do cálice. E este criticava-o por achá-lo acanhado, esquerdo; aquele, porque mostrava pouca prática das rapaziadas alegres; aquele outro, porque lhe percebia na fraseologia uma chateza das palestras familiares, inspiradas pelos conselhos da mamãe nos serões caseiros.

– Um pouco de atrevimento, um pouco ao menos! meu caro! dizia um; e logo outro:

– Audaces fortuna juvat*...

– Isto de homens maricas só servem para uma coisa: envergonhar a espécie!

– Apoiado...

– Apoiado!

Aquelas advertências humilhavam o rapaz. Realmente ele começava a achar-se ridículo, parvo e infeliz. Não encontrava justificação para a sua timidez; daria tudo para convencer os colegas de que era folgazão e gozava a vida; de que tinha proezas, e não obedecia à família tanto quanto supunham. Chegou mesmo a falar na independência do seu caráter, na sua maneira altiva de tratar os superiores e nos recursos monetários que não lhe faltavam nunca... Ia bebendo.

– Bravo! à tua saúde!

– Bravo!

– Bravo!

Os copos esvaziavam-se, os olhos brilhavam e as palavras escorriam fluentes, entre casquinadas de risos e tilintar de vidros. Entraram depressa em assuntos de amor: um confessou fazer a corte a uma velha que lhe dava presentes, e mostrou, vaidoso e risonho, o alfinete da gravata cravejado de pedras finas.

– Quando a desenganares avisa-me, dizia um outro; ando muito falto de joias.

Sucessivamente foram-se desenrolando, entre o fumo e o cheiro forte do álcool, as histórias amorosas de todos eles, até que chegou a vez da Albertina.

O nome da pobre moça foi inúmeras vezes repetido, e, como alguém duvidasse da veracidade do conto, o rapaz tirou do bolso uma carta, e, abrindo-a com um gesto decidido, bateu com ela na mesa, sobre o conhaque entornado.

– Dá cá! deixa-me ver quantos erros traz... pediu-lhe um dos companheiros.

Ele entregou o papel e, recostando-se na cadeira, ouviu risonho e triunfante toda a carta da moça, declamada num tom enfático, embora por vezes muito arrastado.

Choviam comentários; rebentavam a cada período gracejos brutais; e ele, que até então resguardara honestamente, com toda a delicadeza e cuidado, o seu amor, expunha-o agora, sem vexame, aos companheiros indiscretos, gabando-se muito!

– E que tal, é rica? perguntava um.

– E é formosa? inquiria outro.

Ele ia respondendo afirmativamente a todos, rindo-se, com o olhar quebrado, os braços sobre a mesa, a voz alterada e o copo entre os dedos. De vez em quando parecia compreender a realidade; queria então reagir, lutar, esconder o seu amor num melindroso recato; mas a cabeça pendia-lhe para o peito, as ideias bailavam-lhe no espírito como folhinhas num redemoinho de vento, e tudo quanto era digno, justo, e que habitualmente guardava concentradamente no coração, consentia que girasse agora, de um modo grosseiro, nesse pequeno círculo de amigos insensatos! Varriam-se-lhe depressa todos os escrúpulos!

O conhaque ia arrastando as sutilezas da sua alma, afogando os seus deveres, enegrecendo a sua consciência. Deu-lhe para falar. Contou a sua vida íntima, segredos de família que não transpareciam cá fora: o pai fugira por dívidas; um tio roubara em casa de um amigo... Arremedou depois a voz da Albertina e a maneira da mãe ralhar com a criada.

Os outros já lhe não prestavam atenção, iam bebendo, silenciosamente, até que o dono do botequim os pôs na rua.

A chuva cessara; corria uma viração forte, embalsamada do aroma das chácaras. Os amigos seguiram abraçados, cantando alto, para a esquerda; ele subiu a rua, não errando, milagrosamente, o caminho de casa. Mal seguro nas pernas, dobrando frequentemente os joelhos, cambaleante, ora na calçada, ora no meio da rua, aproximou-se da morada de Albertina, que o esperava a um canto da varanda. Vendo-o naquele estado, ela, sem dizer nada, escondeu-se e fechou horrorizada a janela. Ele pôs-se então a gritar de baixo que não estava bêbado, que não estava! caluniava-o quem afirmasse isso! E como a Albertina não se resolvesse a aparecer, ele desatou a chorar alto, muito alto, num berreiro desesperador.

Passou assim algum tempo, até que, já cansado, continuou o seu caminho. A calçada acabara-se; o solo agora era desigual, barrento, coberto de lama e de poças d’água. Por um prodígio estranho conseguiu conservar o equilíbrio; ia de bordo em bordo, muito agoniado, com grandes tonturas e dores de cabeça. Ao pé de casa havia uma ladeirinha escorregadia... aí não se pôde suster, os joelhos dobraram-se-lhe, vieram-lhe ao mesmo tempo os vômitos, e ele caiu.

Palpitavam-lhe com força as artérias das fontes, martelando-lhe pancadas dolorosas; não podia mover o corpo, muito pesado; e começava de ter a percepção da sua vergonha. Um cão lambeu-lhe e bafejou-lhe a cara; a viração fria da noite pareceu-lhe depois cortar com uma chicotada a face, molhada da baba do animal.

Estava assim, coberto de imundície, quando a mãe surgiu, com um xale pela cabeça, à porta da habitação, a observar se o filho viria perto ou não; dando com ele, assim caído, julgou-o doente ou ferido, e ajoelhou-se depressa a apalpá-lo.

Chamou-o devagar, cariciosamente; não ouvindo resposta, abaixou-se mais, procurando, trêmula, escutar-lhe a respiração; mas, ao chegar a cabeça à boca do filho, recuou espavorida, sentindo o cheiro do álcool. Ele fitava nela os olhos, pasmadamente.

Não passava ninguém; fazia frio, estava escuro, e latiam ao longe os cães; no entanto a pobre mulher esforçava-se por erguer nos seus braços débeis o corpo pesado do filho, e o seu maior desejo era poder abrigá-lo no seio escondendo-o de todas as pessoas e de todas as coisas!

Conseguiu levá-lo sozinha, através do corredor escuro, para o seu quarto; deitou-o, deu-lhe remédios e, enquanto ele dormia, ressonando alto, ela, numa agonia muda, vigiava à porta, para que alguém não fosse surpreendê-lo assim...
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*Audaces fortuna juvat – A sorte favorece os audazes.

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 6 –


Envoltos em brancos véus,
meus velhos sonhos plebeus,
pedem mais justiça aos céus
contra injustos fariseus!
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É tarde, as horas se vão;
mesmo insone, eu tento ainda,
abraçar-me à solidão
da noite que nunca finda!
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Fui rever nossas mãos presas,
por votos celestiais;
no altar, vi juras acesas
em dois velhos castiçais!
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Mesmo apesar da distância,
vivo a paz da meninice,
nos raios de sol da infância,
no pôr do sol da velhice!
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Mesmo sem ouro em meu ninho;
em meu rancho tudo brilha.
Deus fez de luz e carinho
os olhos de cada filha!
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No jardim da flor mundana,
nasce uma divina flor;
é, essa linda flor humana,
filha das sobras do amor!
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No silêncio em que medita,
o olhar triste do ancião,
mede a distância infinita
entre a infância e a solidão!
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Num silêncio que desgosta,
dentro da noite e sem sono
o monge busca a resposta
para o seu próprio abandono!
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O pôr do sol é bem-vindo;
mas mesmo que a idade cresça...
Vou meu ocaso iludindo
sem que a velhice padeça.
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O que fere e te maltrata,
redobra essa dor imensa;
é a dor da presença ingrata
desta tua indiferença!
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O teu olhar me insinua.
No outono da vida é aquele,
onde o amor se perpetua
e me faz escravo dele!
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O velhinho, em meio a trama,
do tempo em que passa em vão...
Na solidão, nem reclama
das horas de solidão!
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Peço sempre sem temor,
por ser do amor, tão fiel,
que o fiel do nosso amor
seja o da lua de mel!
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Pernas bambas, passo manco,
lá vai o velho andarilho...
Eis a foto, em preto e branco,
do manco de olhar sem brilho!
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Pintor nenhum, com certeza,
há de ter tinta nem cor,
que pinte a cor e a beleza
que a planta pinta na flor!
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Por fingir que te mereço,
ao longe, escuto o gemido
do tempo, cobrando o preço
pelo meu tempo perdido!
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Por mais que esse amor perdure,
diz-me a voz dos olhos teus:
Não há remédio que cure
a cicatriz de um adeus!
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Por te esperar, tanto em vão,
de tanto por ti sonhar;
minha velha solidão
desistiu de te esperar!
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Quando a noite, enfim, me acalma,
e o seu silêncio me alcança;
põe nas trevas de minha alma
gotas de luz de esperança!
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Quando esse orgulho indecente
junta-se às mãos da ganância,
enforca os sonhos da gente
nas garras da intolerância!
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Quem canta espantando a dor
e esquece as queixas e as penas;
põe mais essências de amor
na dor das mágoas pequenas!
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Sábio, que em silêncio zela,
pela humildade que o guia;
diz que o silêncio revela
os dons da sabedoria!
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Se a noite de alma inquieta,
traça os rumos de quem sonha;
os sonhos desse poeta,
não há noite que os componha!
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Tempo, por que me castigas?
Tu pões a cada sol posto,
novas rugas inimigas
marcando o passo em meu rosto!
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Todos nós temos nos braços,
as marcas de alguns dilemas;
dentre tantos, falsos laços
presos a falsas algemas!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Santos Dumont (Raciocínios Infantis)


DOIS MENINOS BRASILEIROS, dois ingênuos meninos do interior, que nada mais conheciam a não ser o movimento das lavouras primitivas, desprovidas de qualquer dessas invenções feitas para aliviar o esforço do trabalho humano, passeavam pelo campo, conversando.

Tal era a sua ignorância a respeito de máquinas que jamais sequer haviam visto uma carroça ou um carrinho de mão. Cavalos e bois é que carregavam as coisas necessárias à vida da propriedade, que os tardos lavradores indígenas valorizavam com a enxada e a pá.

Eram garotos refletidos, mas os assuntos que discutiam no momento excediam, em muito, tudo quanto eles tinham podido ver ou ouvir.

– Por que não se arranja um meio de transporte melhor que o lombo dos animais? – dizia Luís. – No verão passado atrelei cavalos a uma velha porta e sobre esta carreguei sacos de milho; assim, transportei de uma só vez mais do que dez cavalos poderiam transportar. É verdade que foram precisos sete cavalos para arrastar a carga, além de dois homens ao lado, para impedi-la de escorregar.

– Que quer você? – ponderou Pedro. – Tudo se compensa na natureza. Não se pode tirar alguma coisa do nada, nem muito pouco.

– Coloque rolos debaixo desse trenó e uma pequena força de tração chegará.

– Ora!... Os rolos se deslocarão; será indispensável pô-los sempre nos lugares, e perderemos neste trabalho o que houvermos ganho em força.

– Mas – observou Luís –, fazendo um furo no centro dos rolos, você poderá fixá-los ao trenó em pontos fixos. Ou então, por que não adaptar peças circulares de madeira aos quatro cantos do trenó? Olhe, Pedro, o que vem lá em baixo, na estrada. Exatamente o que eu imaginava, de maneira ainda mais perfeita. Basta um cavalo para puxá-la folgadamente!

Uma carreta aproximava-se. Era a primeira que aparecia na região. O condutor parou e pôs-se a conversar com os meninos. As perguntas surgiam umas atrás das outras.

– A essas coisas redondas – explicou o homem – chamamos rodas.

– O processo deve esconder qualquer defeito – insistiu Pedro. – Olhe em torno. A natureza emprega esse instrumento que você chama roda? Observe o mecanismo do corpo humano; repare a estrutura do cavalo. Observe...

– Observe que o cavalo, o homem e a carreta com as suas rodas estão nos deixando aqui – interrompeu Luís, rindo. – Você não se rende à evidência do fato consumado, e me enfastia com seus apelos à natureza. Será que o homem realizou algum dia verdadeiro progresso que não fosse uma vitória sobre ela? Por acaso não é lhe fazer violência o derrubar uma árvore? Nesta questão, atrevo-me a ir mais longe: suponha um gerador de energia mais poderoso do que este cavalo...

– Muito bem; atrele dois cavalos à carreta.

– É de uma máquina que estou falando – retificou Luís.

– De um cavalo mecânico, de pernas muito poderosas?...

– Não. Antes, de um carro-motor. Se descobrisse uma força artificial, eu a faria atuar sobre um determinado ponto em cada roda. A carreta levaria por si mesma o seu propulsor.

– Ora, isto seria o mesmo que alguém tentar elevar-se do solo pelos cordões dos sapatos – comentou Pedro, em ar de troça. – Escute, Luís: o homem está na dependência de certas leis físicas. O cavalo, é verdade, carrega mais que o seu peso, mas a própria natureza o fez com pernas apropriadas a este trabalho. Tivesse você a força artificial de que fala, e do mesmo modo seria obrigado, na sua aplicação, a se conformar com as leis físicas. E aí fico! Você a faria exercer-se sobre longas hastes, que empurrariam a carreta por detrás.

– É sobre as rodas que penso levar a força.

– Pela natureza das coisas, haveria uma perda de energia. É mais difícil movimentar uma roda aplicando a força motriz no interior da circunferência que dirigindo-a sobre o exterior, como, por exemplo, impelindo ou arrastando uma carreta.

– Para diminuir o atrito, eu faria correr o meu veículo motor sobre trilhos de ferro muito lisos. A perda de energia seria assim compensada por um ganho de velocidade.

– Trilhos de ferro bem lisos! – exclamou Pedro, com uma gargalhada. – As rodas patinariam. Só se houvesse rebordos nos aros e ranhuras correspondentes nos trilhos. Outra coisa: como impediria você que o veículo saísse dos trilhos?

Distraidamente, os meninos tinham andado muito. Um silvo agudo os fez estremecer. Diante dos olhos surgia-lhes a linha de um caminho de ferro em construção. Por entre as colinas avançava um trem de lastro com uma velocidade que lhes parecia enorme.

– Uma avalanche!... – exclamou Pedro.

– A realização do meu sonho – corrigiu Luís.

O trem estacou. Uma turma de trabalhadores desceu e foi empenhar-se na faina de assentamento dos trilhos, enquanto o maquinista explicava aos dois curiosos garotos o funcionamento da sua máquina.

De volta a casa, Luís e Pedro discutiam sobre a maravilha de que acabavam de ter a revelação.

– Se o homem aplicasse o mesmo uso aos rios – lembrou o primeiro –, tornar-se-ia senhor da água como já é da terra. Bastaria inventar rodas que pudessem agir na água, fixas a um grande pranchão, análogo ao corpo de uma carreta, e a máquina a vapor as faria andar nos meios fluviais.

– Não diga tolices! – protestou Pedro. – Os peixes flutuam? Na água devemos viajar com eles, não à superfície, mas em baixo. O seu pranchão, cheio de ar leve, emborcaria ao primeiro movimento, e as rodas, pensa você que teriam meios de girar num corpo líquido?

– Qual é sua ideia?

– Que o seu veículo aquático fosse construído com uma meia dúzia de peças articuladas, de forma a poder serpear na água qual um peixe. Um peixe navega. É navegar o que você quer. Pois estude o peixe. Há peixes que se servem de barbatanas propulsoras e de nadadeiras. Você poderá imaginar um sistema de longas palhetas, que batam na água como fazem os nossos pés e as nossas mãos quando nadamos. Mas não me fale em rodas de carretas na água!

Os dois brasileirinhos achavam-se agora à margem de um grande rio. O primeiro navio que singrava suas águas aparecia ao longe. Mas, para os nossos jovens amigos era apenas, ainda, uma forma indistinta.

– Olhe ali! – apontou Pedro, com o braço estendido. – Um enorme vulto escuro com metade do corpo boiando! Uma baleia. Qual é o peixe cuja metade do corpo emerge quando nada? A baleia; veja como ela esguicha água.

– Não é água, é vapor ou fumaça.

– Nesse caso – continuou o outro – é uma baleia morta. O vapor é da sua decomposição. Por isso é que ela flutua tão alto!

– Não é baleia nem nada parecido – resmungou Luís, sempre perseverante no seu ponto de vista. – É decididamente uma carruagem aquática a vapor.

– Soltando fumaça como uma locomotiva?

– Justamente.

– Com certeza seu bojo é, igualmente, de ferro como o da locomotiva.

– Não vê que o fogo a queimaria?...

– Ferro vai ao fundo. Atire um machado ao rio, se quiser ver.

O navio atracou. Dirigindo-se para ele, os meninos experimentaram a alegria de encontrar no tombadilho um velho amigo da família, plantador das vizinhanças, que os saudou, convidando:

– Subam, meninos! Venham conhecer o navio!

Os dois garotos não se fizeram de rogados. Instantes depois estavam a bordo examinando demoradamente a máquina. Por fim, foram sentar-se à proa, com seu obsequioso guia.

– Pedro – segredou o companheirinho –, será que os homens não poderão inventar um navio para navegar no céu?

O fazendeiro olhou com ar apreensivo para o autor da pergunta, que baixou os olhos, enrubescendo.

– Anda construindo castelos no ar? – perguntou-lhe.

– Não faça caso – tranquilizou Pedro. – Ele sempre fala assim, de coisas aéreas. É mania.

O velho sorriu, e sentenciou convicto:

– O que sonha é impossível. O homem não pilotará nunca um navio no espaço.

– Mas – insistiu Luís – no São João, quando se acendem as fogueiras, costumamos soltar balões de papel cheios de ar quente. Se encontrar um meio de construir um balão muito grande para levantar consigo um homem, uma viatura leve e um motor, não poderia ele ser dirigido no espaço do mesmo modo que um navio nas águas?

– Meu caro amiguinho, não diga disparate – replicou o velho com vivacidade, ao perceber, ainda que tardiamente, que o capitão do navio se aproximava.

Este ouvira, porém, a observação, e longe de considerá-la disparatada justificou-a:

– O grande balão que você idealiza existe já desde 1783. Infelizmente porém, posto que capaz de levantar um ou mais homens, não pode ser dirigido. Está à mercê do mais leve sopro da brisa. Em 1852, um engenheiro francês chamado Giffard experimentou uma derrota gloriosa com a sua tentativa de balão dirigível munido de um motor e de um propulsor, tal como sonhou Luís. O mais claro resultado das suas experiências foi evidenciar a impossibilidade de dirigir um balão nos ares.

– Nessas condições, não haveria senão uma coisa a fazer: construir uma máquina inspirada no modelo de um pássaro – sugeriu Pedro, categórico.

– Pedro é um menino de bom senso – observou o velho fazendeiro. – Pena que Luís não se pareça com ele e se deixe dominar por visões. Mas, diga-me, Pedro, por que motivos você prefere o pássaro ao balão?

– Motivo muito simples. E de uma lógica elementar. O homem voa? Não. O pássaro voa? Voa. Por conseguinte, se o homem quiser voar, tem que imitir o pássaro. A natureza fez o pássaro e ela não se engana. Se o pássaro fosse apenas um saco cheio de ar, possivelmente eu ficaria com o projeto de um balão.

– Bem pensado – confirmaram ao mesmo tempo os dois homens.

Luís, porém, não se deu por convencido. Do seu canto, murmurou, com a incredulidade de um Galileu:

– Ele será dirigível!

Fonte:
Alberto Santos-Dumont, Os meus balões; tradução do original francês por A. de Miranda Santos. – 2. ed. – Brasília : Senado Federal, Conselho Editorial, 2016. Primeira publicação em 1904, com o título “dans l’ air”.