sábado, 8 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 177


Alcântara Machado (O Monstro de Rodas)


O Nino apareceu na porta. Teve um arrepio. Levantou a gola do paletó.

- Ei, Pepino! Escuta só o frio!

Na sala discutiam agora a hora do enterro. A Aída achava que de tarde ficava melhor. Era mais bonito. Com o filho dormindo no colo Dona Mariângela achava também. A fumaça do cachimbo do marido ia dançar bem em cima do caixão.

- Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora

Dona Nunzia descabelada enfiava o lenço na boca.

- Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora.

Sentada no chão a mulata oferecia o copo de água de flor de laranja.

- Leva ela pra dentro!

- Não! Eu não quero! Eu... não... quero!...

Mas o marido e o irmão a arrancaram da cadeira e ela foi gritando para o quarto. Enxugaram-se lágrimas de dó.

- Coitada da Dona Nunzia!

A negra de sandália sem meia principiou a segunda volta do terço.

- Ave Maria, cheia de graça, o Senhor...

Carrocinhas de padeiro derrapavam nos paralelepípedos da Rua Sousa Lima. Passavam cestas para a feira do Largo do Arouche. Garoava na madrugada roxa.

- ... da nossa morte. Amém. Padre Nosso que estais no Céu...

O soldado espiou da porta. Seu Chiarini começou a roncar muito forte. Um bocejo. Dois bocejos. Três. Quatro.

- ... de todo o mal. Amém.

A Aída levantou-se e foi espantar as moscas do rosto do anjinho.

Cinco. Seis.

O violão e a flauta recolhendo de farra emudeceram respeitosamente na calçada.

Na sala de jantar Pepino bebia cerveja em companhia do Américo Zamponi (SALÃO PALESTRA ITÁLIA - Engraxa-se na perfeição a 200 réis) e o Tibúrcio (- O Tibúrcio... - O mulato? - Quem mais há de ser?).

- Quero só ver daqui a pouco a noticia do Fanfulla. Deve cascar o almofadinha.

- Xi, Pepino! Você é ainda muito criança. Tu é ingênuo, rapaz. Não conhece a podridão da nossa imprensa. Que o quê, meu nego. Filho de rico manda nesta terra que nem a Light. Pode matar sem medo. É ou não é, Seu Zamponi?

Seu Américo Zamponi soltou um palavrão, cuspiu, soltou outro palavrão, bebeu, soltou mais outro palavrão, cuspiu.

- É isso mesmo, Seu Zamponi, é isso mesmo!

O caixãozinho cor-de-rosa com listas prateadas (Dona Nunzia gritava) surgiu diante dos olhos assanhados da vizinhança reunida na calçada (a molecada pulava) nas mãos da Aída, da Josefina, da Margarida e da Linda.

- Não precisa ir depressa para as moças não ficarem escangalhadas.

A Josefina na mão livre sustentava um ramo de flores. Do outro lado a Linda tinha a sombrinha verde, aberta. Vestidos engomados, armados, um branco, um amarelo, um creme, um azul. O enterro seguiu.

O pessoal feminino da reserva carregava dálias e palmas-de-são-josé. E na calçada os homens caminhavam descobertos.

O Nino quis fechar com o Pepino uma aposta de quinhentão.

- A gente vai contando os trouxas que tiram o chapéu até a gente chegar no Araçá. Mais de cinqüenta você ganha. Menos, eu.

Mas o Pepino não quis. E pegaram uma discussão sobre qual dos dois era o melhor: Friedenreich ou Feitiço.

- Deixa eu carregar agora, Josefina?

- Puxa, que fiteira! Só porque a gente está chegando na Avenida Angélica. Que mania de se mostrar, que você tem!

O grilo fez continência. Automóveis disparavam para o corso com mulheres de pernas cruzadas mostrando tudo. Chapéus cumprimentavam dos ônibus, dos bondes. Sinais-da-santa-cruz. Gente parada.

Na Praça Buenos Aires, Tibúrcio já havia arranjado três votos para as próximas eleições municipais.

- Mamãe, mamãe! Venha ver um enterro, mamãe!

Aída voltou com a chave do caixão presa num lacinho de fita. Encontrou Dona Nunzia sentada na beira da cama olhando o retrato que a Gazeta publicara. Sozinha. Chorando.

- Que linda que era ela!

- Não vale a pena pensar mais nisso, Dona Nunzia...

O pai tinha ido conversar com o advogado.

Fonte:
Alcântara Machado. Brás, Bexiga e Barra Funda.

Rita Delamari (Cristais Poéticos)


A POESIA EM NÓS

No frio de nossos dias,
o calor da tua presença
aquece!

Das nossas bocas, 
palavras com veemência
e sintonia.

Tua voz rouca
e esse olhar em sorriso, 
minha tristeza fenece!

Em nossos ouvidos,
uma bela sinfonia
enlouquece!

É tudo tão preciso
Nesse nosso universo, 
sem ponto ou reticências.

Escrevemos os nossos versos, 
sem métrica, com ou sem rimas: 
é o nosso amor, fazendo poesia.
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CHUVA NO OUTONO

Nas folhas 
soltas a voar, 
ela demora a enxergar
que fora o vento,
e tão somente,
que levou consigo
uma lágrima de saudade 
na chuva de outono.
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ESCOMBROS

Meu peito inflama
com uma chama
que me invade 
de incertezas. 

A cada tombo 
me levanto
e organizo 
meus escombros.
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MÃE NATUREZA

Da natureza, tudo se extrai...   
Vida em meio a tanta devastação, 
um rio de poluição se vai 
e se abrupta na correnteza.

Uma mãe, no centro 
dessa imensidão,
os seus filhos
jamais abandona. 

Vida, vivos seres de tanta beleza,
Ela se consome em preocupação...
Observa o oceano: 
ainda rico em profundeza.
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ORVALHO

O orvalho da noite
chora testemunhando
tão profunda dor,
que dói como açoite.

Doida esta, a de amor...
Um choro que 
não é solitário,
ainda tenho sorte:

pelo orvalho
do choro que cai,
vem exalar seu perfume,
a flor!
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SEUS OLHOS

Os seus olhos são
como dois diamantes...
Parecem pedras preciosas,
que juntas estão

assim como nós,
na união de amantes,
nas horas gostosas
em que ficamos a sós...

E carregam um brilho
trazendo a sua beleza:
verdes e marcantes,
puros e fascinantes,
como a própria natureza.
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SOFREGUIDÃO

Ouço a voz do silêncio, 
a paz que acalenta a noite, 
a força do vento
que parece um açoite... 
Mas, não, é a magia
da minha feliz solidão, 
como um sussurro 
no infinito, na imensidão
de uma saga que, juro, 
não é angústia...  
É vida, é sofreguidão!
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Rita Delamari, nascida Rita do Rocio Alves dos Santos é graduada 1º Sargento da Reserva na Polícia Militar do Paraná  (PMPR). Começou seus escritos na adolescência. Cursou Redação Técnico-Científica com formação acadêmica em Pedagogia. A poesia se enraizou, durante o período em que seguiu a carreira militar: “meu encanto na poesia, minha centelha à posteridade.” É membro efetivo do Centro de Letras do Paraná, 2017.
Seus livros: Das pedras as flores, Ed. Íthala, 2011; Da janela do quarto, Ed. Blanche, 2015; Contornos e contrastes, Marianas Edições, 2018.
Participou de diversas antologias, dentre elas: Cronistas do Centro de Letras do Paraná (Coleção Literária de Autores Paranaenses, 2018), Histórias que vi, vivi e ouvi II (Associação Literária Lapeana, 2019) e Conexões Atlânticas IV (Ed. In-Finita Lisboa-Portugal/2019). Seu poema “Engrenagem” foi publicado em livro, com os vencedores do Concurso Literário Fazenda Rio Grande-PR/2018 (1º lugar, gênero poesia, categoria comunidade).

Fonte:
Poemas e Biografia enviados por Isabel Furini

Homero (Odisseia)

Odisseia é um dos dois principais poemas épicos da Grécia Antiga, atribuídos a Homero. É uma sequência da Ilíada, outra obra creditada ao autor, e é um poema fundamental no cânone ocidental. Historicamente, é a segunda - a primeira sendo a própria Ilíada – obra da literatura ocidental.

A Odisseia, assim como a Ilíada, é um poema elaborado ao longo de séculos de tradição oral, tendo tido sua forma fixada por escrito, provavelmente no fim do século VIII a.C. A linguagem homérica combina dialetos diferentes, inclusive com reminiscências antigas do idioma grego, resultando, por isso, numa língua artificial, porém compreendida. Composto em hexâmetro dactílico era cantado pelo aedo (cantor), que também tocava, acompanhando, a cítara ou fórminx, como consta na própria Odisseia (canto VIII, versos 43-92) e também na Ilíada (canto IX, versos 187-190).

O poema relata o regresso de Odisseu, (ou Ulisses, como era chamado no mito romano), herói da Guerra de Troia e protagonista que dá nome à obra. Como se diz na proposição, é a história do “herói de mil estratagemas que tanto vagueou, depois de ter destruído a cidadela sagrada de Troia, que viu cidades e conheceu costumes de muitos homens e que no mar padeceu mil tormentos, quanto lutava pela vida e pelo regresso dos seus companheiros”.

Odisseu leva dez anos para chegar à sua terra natal, Ítaca, depois da Guerra de Troia, que também havia durado dez anos. 

A trama da narrativa, surpreendentemente moderna na sua não-linearidade, apresenta a originalidade de só conservar elementos concretos, diretos, que se encadeiam no poema sem análises nem comentários. A análise psicológica, a análise do mundo interior , não era ainda praticada. As personagens agem ou falam; ou então, falam e agem. E falam no discurso direto, diante de nós, para nós – preparando, de alguma forma, o teatro. Os eventos narrados dependem tanto das escolhas feitas por mulheres, criados e escravos quanto dos guerreiros.

A influência homérica é clara em obras como a Eneida, de Virgílio, Os Lusíadas, de Camões, ou Ulysses, de James Joyce, mas não se limita aos clássicos. As aventuras de Ulisses, a superação desesperada dos perigos, nas ameaças que lhe surgem na luta pela sobrevivência, são a matriz de grande parte das narrativas modernas, desde a literatura ao cinema.

Em português, bem como em diversos outros idiomas, a palavra odisseia passou a referir qualquer viagem longa, especialmente se apresentar características épicas.

A Odisseia se inicia in medias res (latim para "no meio das coisas"), com sua trama já inserida no meio de uma história mais ampla, e com os eventos anteriores sendo descritos ou através de flashbacks ou de narrativas dentro da própria história. O dispositivo foi imitado por diversos autores de épicos literários posteriores, como por exemplo Virgílio, na Eneida, bem como poetas modernos como Alexander Pope (The Rape of the Lock).

A ação está repartida em três tempos principais: situação de Penélope e Telêmaco em Ítaca e viagem de Telêmaco; chegada de Odisseu ao país dos feaces, onde narra as suas aventuras (recuo da ação, em vários anos); regresso de Ulisses a Ítaca e morte dos pretendentes.

Perante a presunção da morte de Ulisses, a sua esposa Penélope e o seu filho, Telêmaco são obrigados a lidar com um grupo de insolentes pretendentes, os Mnesteres ou Proci, que competem pela mão de Penélope em casamento. Telêmaco tenta assumir o controle da sua casa e aconselhado por Atena, viaja em busca de notícias do seu pai desaparecido.
A cena então muda: Odisseu é cativo da bela ninfa Calipso, com quem ele passou sete dos dez anos em que esteve perdido. Após ser libertado pela intercessão de sua padroeira, a deusa Atena, ele parte. Porém, a sua jangada é destruída por Poseidon, furioso por Odisseu ter cegado o seu filho, Polifemo. Quando Odisseu alcança a praia de Esquéria, lar dos feácios, é auxiliado pela jovem Nausícaa, de quem recebe hospitalidade; em troca, satisfaz a curiosidade dos feácios, narrando a eles - e ao leitor - as suas aventuras desde a partida de Troia. Os feácios, hábeis construtores de navios, emprestam-lhe uma embarcação para que ele regresse a Ítaca, onde recebe a ajuda do pastor de porcos Eumeu, se encontra com Telêmaco e reconquista o seu lar, reencontrando a sua esposa, Penélope e matando os seus pretendentes.

Quase todas as edições e traduções modernas da Odisseia são divididas em 24 livros. Esta divisão é conveniente, porém não é original; foi desenvolvida pelos editores alexandrinos do século III a.C. No período clássico diversos dos livros (individualmente e em conjunto) recebiam seus próprios títulos; os primeiros quatro, que se concentravam em Telêmaco, eram comumente conhecidos como a Telemaquia; a narrativa de Odisseu, no livro 9, que contém seu encontro com o ciclope Polifemo, era tradicionalmente chamada de Ciclopeia; e o livro 11, que descreve seu encontro com os espíritos dos mortos no Hades, era conhecido como Nekyia. Os livros 9 a 12, onde Odisseu reconta suas aventuras para seus anfitriões feácios eram referidos como os Apologoi, as "histórias" de Odisseu. O livro 22, no qual Odisseu mata todos os pretendentes, recebia o título de Mnesterophonia, o "massacre dos pretendentes".

Estrutura

Os últimos 548 versos da Odisseia, que correspondem ao livro 24, são tidas por muitos acadêmicos como uma adição feita por um poeta posterior; diversas passagens dos livros anteriores parecem preparar para os eventos que ocorrem nele, portanto se de fato forem uma adição posterior, o editor responsável teria alterado algum texto antigo já existente.

Telêmaco, filho de Odisseu, tem apenas um mês de idade quando seu pai sai para combater em Troia, numa guerra da qual ele não quer fazer parte. No ponto em que a obra se inicia, já se passaram dez anos após o fim da Guerra de Troia - que por sua vez durou dez anos - Telêmaco tem 20 anos e está dividindo a casa de seu pai ausente, localizada na ilha de Ítaca, com sua mãe e uma multidão de 108 arruaceiros, "os pretendentes", cuja meta é persuadir Penélope de que seu marido está morto, e que ela deve se casar com um deles.

A deusa Atena, a protetora de Odisseu, discute seu destino com Zeus, rei dos deuses, no momento em que o inimigo do herói, o deus do mar, Poseidon, se ausenta do monte Olimpo. Escondida como um chefe táfio chamado Mentes, ela visita Telêmaco e o encoraja a procurar notícias de seu pai. Ele oferece sua hospitalidade, e ela pode observar o comportamento inapropriado dos pretendentes, jantando no meio de arruaças enquanto o bardo Fêmio lhes interpretava um poema narrativo. Penélope opõe-se ao tema de Fêmio, o Retorno de Troia, por lembrá-la de seu marido desaparecido, porém Telêmaco refuta suas objeções.

Naquela noite, Atena, disfarçada como Telêmaco, encontra um navio e uma tripulação para o verdadeiro Telêmaco. No dia seguinte, este reúne uma assembleia de cidadãos de Ítaca, para discutir o que deveria ser feito com os pretendentes. Acompanhado por Atena (agora disfarçada como seu amigo, Mentor), ele parte para a Grécia continental, onde é recebido por Nestor, o mais respeitável dos guerreiros gregos de Troia, já de volta a seu lar, em Pilos. De lá, Telêmaco parte por terra, acompanhado pelo filho de Nestor, para Esparta, onde encontra Menelau e Helena, já reconciliados; estes descrevem como retornaram à Grécia depois de uma longa viagem, que passou pelo Egito e, de lá, pela ilha mágica de Faros, onde Menelau encontrou o velho deus do mar Proteu, que o contou que Odisseu havia sido aprisionado pela ninfa Calipso. Telêmaco também descobre o destino do irmão de Menelau, Agamenon, rei de Micenas e líder dos gregos em Troia, assassinado logo depois de retornar ao seu lar, por sua esposa Clitemnestra e seu amante Egisto.

A obra chega então à história de Odisseu, que passou sete anos no cativeiro, na ilha de Calipso. Esta é persuadida a libertá-lo pelo deus mensageiro, Hermes, enviado por Zeus. Odisseu constrói uma jangada e recebe roupas, comida e bebida de Calipso; acaba naufragando, no entanto, por obra de Poseidon, e é obrigado a nadar até a ilha de Esquéria onde, nu e exausto, ele se esconde numa pilha de folhas e adormece. Na manhã seguinte, desperto pelas risadas de garotas que se aproximam, vê a jovem Nausícaa, que veio com suas criadas lavar roupas à beira do mar. Odisseu pede ajuda a ela, que o encoraja a procurar a hospitalidade de seus país, Aretê e Alcínoo. Odisseu que inicialmente não se identifica, é bem recebido; permanece no local por diversos dias, participa de um pentatlo e ouve o cantor cego Demódoco executar dois poemas narrativos. O primeiro é um incidente obscuro da Guerra de Troia, a "Disputa ente Odisseu e Aquiles", enquanto o segundo é a narrativa de um caso de amor entre dois deuses do Olimpo, Ares e Afrodite. Odisseu pede então a Demódoco que retorne ao tema da Guerra de Troia, que conta sobre o Cavalo de Troia, um estratagema no qual Odisseu havia desempenhado um papel crucial. Incapaz de esconder suas emoções ao narrar o episódio, Odisseu finalmente revela sua identidade, e começa a contar a fantástica história de seu retorno à Troia.

Após uma incursão pirática em Ismara, na terra dos cicones, Odisseu e seus doze navios são desviados do curso por tempestades. Visitam então os letárgicos Comedores de Lótus, e são capturados pelo ciclope Polifemo, do qual escapa apenas após cegá-lo com um pedaço afiado de madeira. São recebidos por Éolo, senhor dos ventos, que dá a Odisseu um saco de couro contendo todos os ventos (com a exceção do vento oeste), um presente que deveria lhe ter garantido a viagem de volta para casa; seus marinheiros, no entanto, abrem de maneira tola o saco enquanto Odisseu dormia, pensando que continha ouro; todo o vento voou para fora do saco, e a tempestade resultante mandou os navios de volta para onde haviam vindo, quando Ítaca havia acabado de aparecer no horizonte.

Após pedir em vão para que Éolo o ajudasse novamente, Odisseu e seus companheiros reembarcaram nos navios e zarparam, viajando até encontrar o canibal Lestrigão. O navio de Odisseu acaba sendo o único a sobreviver ao ataque, e acaba indo parar junto à deusa-bruxa Circe, que transforma metade dos seus homens em porcos, após alimentá-los com vinho e queijo. Hermes, que havia alertado Odisseu a respeito de Circe, dá a ele uma droga chamada móli, que o fazia resistente à magia de Circe. Esta, atraída por esta resistência, apaixonou-se por ele e libertou seus homens a seu pedido. Odisseu e sua tripulação permaneceram na ilha por um ano, durante o qual festejaram, beberam e realizaram banquetes incessantes. Finalmente, os homens de Odisseu o convencem que é hora de partir para Ítaca; guiado pelas instruções de Circe, cruzam o oceano a atingem um porto na beira ocidental do mundo, onde Odisseu sacrifica aos mortos e invoca o espírito do velho profeta Tirésias para aconselhá-lo. Em seguida Odisseu encontra o espírito de sua própria mãe, que havia morrido de desgosto durante sua longa ausência; dela, descobre pela primeira vez notícias de sua própria casa e família, ameaçada pela cobiça dos pretendentes. Lá encontra também os espíritos de mulheres e homens famosos, entre eles Agamenon, que lhe informa sobre seu assassinato e lhe alerta sobre os perigos das mulheres. Ao retornar à ilha de Circe, são aconselhados por ela sobre as etapas restantes de sua jornada. Após costearem a terra das sereias, passam por entre Cila, um monstro de muitas cabeças, e o redemoinho Caribde, e chegam à ilha de Trinácia. Lá, os homens de Odisseu ignoram os avisos de Tirésias e Circe, e abatem o gado sagrado do deus sol, Hélio; este sacrilégio lhes traz como punição um naufrágio, onde todos morrem afogados, com a exceção de Odisseu, que consegue chegar à ilha de Calipso, ninfa que o força a se tornar seu amante por sete anos, até que ele consegue escapar.

Depois de ouvir com grande atenção a história, os feácios, marinheiros experientes, concordam em ajudar Odisseu a voltar para casa. Deixam-no à noite, enquanto está em sono pesado, num porto escondido em Ítaca. Lá ele consegue chegar à casa de um de seus antigos escravos, o pastor de porcos Eumeu. Odisseu se disfarça como um mendigo vagante, para descobrir como estão as coisas em sua residência. Após jantar, conta aos trabalhadores da fazenda uma história fictícia sobre si; afirma ter nascido em Creta, e ter liderado um grupo de cretenses que lutaram ao lado dos gregos na Guerra de Troia, e que havia passado sete anos na corte do rei do Egito, e depois naufragado na Tesprócia, de onde teria vindo a Ítaca.

Enquanto isso, Telêmaco navega para casa, vindo de Esparta, fugindo de uma emboscada preparada pelos pretendentes. Desembarca na costa de Ítaca e se dirige à casa de Eumeu; lá, pai e filho se encontram, e Odisseu se identifica para o filho (embora ainda não para Eumeu), e decidem que os pretendentes devem ser mortos. Telêmaco chega à sua casa primeiro; acompanhado por Eumeu, Odisseu retorna ao seu lar, ainda fingindo ser um mendigo, e presencia as arruaças dos pretendentes. Encontra-se com Penélope, e testa suas intenções com uma história inventada sobre seu nascimento em Creta onde, segundo ele, teria se encontrado com Odisseu. Ao ser interrogado, acrescenta que também havia estado recentemente em Tesprócia, onde fora informado sobre as viagens recentes de Odisseu.

Sua identidade é descoberta pela caseira, Euricleia, quando ela lava seus pés e descobre uma antiga cicatriz que Odisseu tinha, fruto de uma caçada a javalis; ele a faz jurar segredo. No dia seguinte, instigada por Atena, Penélope convence os pretendentes a competir por sua mão, numa competição de arco-e-flecha, utilizando o arco de Odisseu - que participa da competição, ainda disfarçado, e, após ser o único com força suficiente para dobrar o arco, a vence. Odisseu passa então a disparar flechas contra os pretendentes; com a ajuda de Atena, Telêmaco, Eumeu e Filoteu, um pastor, todos são mortos; Odisseu ainda executa, juntamente com Telêmaco, doze das criadas da casa que haviam feito sexo com os pretendentes,e, após mutilá-las também executam o pastor de cabras Melâncio, que havia caçoado de Odisseu e o maltratado. Odisseu então finalmente se identifica para Penélope, que, hesitante, o aceita após ele descrevê-la a cama que teria construído para ela após se casarem.

No dia seguinte Odisseu e Telêmaco visitam a fazenda de seu velho pai, Laerte, que também só aceita sua identidade após ver Odisseu descrever corretamente o pomar que Laerte lhe dera certa vez. Os cidadãos de Ítaca, no entanto, seguem Odisseu e Telêmaco ao longo da estrada, planejando vingar as mortes dos pretendentes, seus filhos. O líder do grupo afirma que Odisseu havia causado a morte de duas gerações de homens de Ítaca - seus marinheiros, nenhum dos quais havia sobrevivido à jornada de volta, e os pretendentes, que ele havia agora executado. A deusa Atena intervem pessoalmente, e convence ambos os lados a abandonar a vingança. Ítaca finalmente está em paz novamente, e a Odisseia é concluída.
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O traço heroico de Odisseu está em sua mētis, ("esperteza"), tanto que várias vezes é descrito como "Par de Zeus em Conselhos". Sua argúcia se manifesta no uso de sorrelfas, blefes e discursos enganosos. Os ardis podem ser tanto físicos (alterando sua aparência) como verbais, como fez ao contar para o ciclope Polifemo que seu nome era Oútis, "Ninguém", e fugir após cegá-lo; quando os outros ciclopes perguntaram a Polifemo o motivo de seus gritos, ele responde que "Ninguém" lhe está machucando, e os outros assumem que "Se sozinho como você está [Polifemo] ninguém usa violência sobre si, ora, não há como escapar do mal enviado pelo grande Zeus; então melhor rezar a seu pai, o senhor Poseidon". A falha de caráter mais evidente em Odisseu é sua soberba, ou húbris. À medida que navega para longe da ilha dos ciclopes, Odisseu grita seu próprio nome, bravateando que ninguém pode derrotar o "Grande Odisseu". Os ciclopes então jogam metade de uma montanha sobre seu barco, e rezam para seu pai, Poseidon, dizendo que um de seus filhos foi cegado; irado, o deus dos mares o impede de voltar para casa por muitos anos.

Personagens:

Odisseu (conhecido também pela forma latina, Ulisses), herói da guerra de Troia e que quer voltar para junto dos seus familiares;
Penélope, esposa de Odisseu, prima de Helena de Troia;
Telémaco, filho de Odisseu e Penélope;
Laerte, rei de Ítaca e pai de Odisseu, de onde vem o epíteto "Laércio", o mais usado para se referir a seu filho ao longo da obra;
Eumeu, porqueiro;
Euricleia, fâmula de Odisseu;
Antinoo, um dos pretendentes e o mais malino;
Eurimaco, um dos pretendentes, imitador de Antinoo.
Alcínoo, rei dos feácios;
Areta de Cirene, esposa de Alcínoo;
Nausícaa, princesa dos Feácios;
Laodamante, irmão de Nausícaa, desafiador de Odisseu nos jogos;
Hálio, idem;
Clitóneo, idem;
Equeneu, velho herói;
Demódoco, aedo, contador lírico de histórias;
Anfíloo, atleta;
Euríalo, atleta, desafiador de Odisseu nos jogos.
Zeus, rei dos deuses;
Atena, deusa da sabedoria e estratégia (a favor de Odisseu);
Circe, a feiticeira, filha do deus Hélio com a mortal Persa (a favor de Odisseu);
Poseidon, deus dos mares, antagonista principal e maior inimigo de Odisseu;
Éolo, deus dos ventos, anfitrião de Odisseu e seus amigos em sua ilha; 
Hermes, mensageiro dos deuses;
Hélio, o deus do sol, de quem os companheiros de Odisseu mataram o gado;
Calipso ninfa, filha de Atlante, apaixonada por Odisseu;
Leucothea, deidade marinha que salva Odisseu de um naufrágio.
Cila, monstro com doze pernas e seis cabeças, cada uma com três fileiras de dentes, habitava o interior de uma gruta cavada no rochedo;
Ciclopes, (literalmente "Olho redondo", "Olhicircular") em particular Polifemo (lit. "que fala muito", "Multifalaz"), filho de Poseidon e da ninfa Toosa. Gigante de umolho só, dedicado ao pastoreio e que vive em estado selvagem;
Caríbdis, monstro das profundezas marinhas que três vezes ao dia sorvia e vomitava a água do mar . Sua morada ficava a curta distância de Cila;
Hárpias, em Homero, dois monstros com corpo metade mulher e metade pássaro, habitantes de uma ilha na qual há bonança. Com seus cantos, encantam os homens que passem perto, devorando-os depois;
Lotófagos ("Comedores de Lótus"), povo fantástico que vive próximo as regiões da Líbia na África e se alimentam de flores de lótus, a qual provoca certo esquecimento.
Lestrigões gigantes antropófagos e arremessadores de rochas 

Os eventos na sequência principal da Odisseia (excluindo-se a narrativa de Odisseu) se dão no Peloponeso e naquelas que são atualmente chamadas de ilhas Jônicas.

Existem controvérsias quanto à real identificação de Ítaca, terra natal de Odisseu, que pode ou não ser a mesma ilha que é atualmente chamada pelos gregos de Ithake. As viagens de Odisseu narradas aos feácios, e a localização da própria ilha destes, Esquéria, apresentam problemas geográficos ainda mais fundamentais aos estudiosos: tanto acadêmicos antigos quanto modernos dividem-se quanto à existência ou não dos lugares visitados por Odisseu depois de Ismaros e antes de seu retorno à Ítaca.

Traduções

No Brasil há algumas traduções feitas a partir do original grego, a maioria delas poéticas .

A primeira é de Manuel Odorico Mendes, feita no século XIX, mas publicada somente em 1928, postumamente, em que, seguindo a tradição épica em português, emprega o verso decassílabo, porém branco. A tradução é marcada pela extrema concisão - com total de versos sendo menor que o do texto original -, estruturas sintáticas incomuns, decorrentes muitas vezes dessa concisão, preciosismo lexical, neologismos e latinismos - sobretudo para traduzir os epítetos gregos, como em "Aurora dedirrósea" [Aurora de dedos róseos]. Outra característica (na verdade, comum até sua época) é a substituição dos nomes gregos pelos correspondentes latinos: Zeus, por Júpiter, Poseídon por Netuno, Atena por Minerva, Odisseu por Ulisses, etc.

Sua tradução foi reeditada pelas editoras da USP e Ars Poetica, na coleção "Texto e Arte", com organização, notas suplementares e prefácio de Antonio Medina Rodrigues

A segunda tradução, da década de 40 século XX (a primeira edição com data incerta, mas publicada muito provavelmente em 1941), é de Carlos Alberto Nunes, cujo principal critério foi a tentativa de transpor o a métrica original do poema (hexâmetro dactílico) para o português, resultando num verso de dezesseis sílabas poéticas, cujo ritmo é a sequência de seis grupos (chamados "pés") de sílabas, sendo cada um composto por uma sílaba tônica seguida de duas átonas (o sexto grupo, em geral, com uma tônica seguida de apenas uma átona), no seguinte esquema: ó o o | ó o o | ó o o | ó o o | ó o o | ó o (o); ou seja, com acentuação na 1ª, 4ª, 7ª, 10ª, 13ª e 16ª sílabas. Para correta leitura do hexâmetro vernaculizado de Nunes, entretanto, é necessário atentar ainda para a cesura, normalmente ocorrendo uma vez, no meio do verso (terceiro pé), ou, menos frequentemente, duas vezes no mesmo verso.

A tradução de Nunes foi publicada originalmente pela editora Atena. O texto foi posteriormente revisado pelo próprio tradutor e republicado diversas vezes por outras editoras. Entretanto, desde que passou a ser editada pela Ediouro, o texto publicado foi o revisado por Marcus Reis Pinheiros, cuja intervenção por vezes deturpa a métrica empregada pelo tradutor. A edição mais recente foi publicada pela editora Nova Fronteira, com o texto revisado por Pinheiros.

Em 2011, Trajano Vieira, seguindo os passos de Haroldo de Campos, publicou sua tradução (ou transcriação) da Odisseia, tendo como critério resgatar a sonoridade do poema grego e sua complexidade poética e lexical. Em sua tradução, vencedora do Prêmio Jabuti, emprega o verso dodecassílabo.

Mais recentemente, a Cosac & Naify publicou, em 2014, a tradução de Christian Werner, que adotou o verso livre e cuja característica, segundo o próprio tradutor, foi conferir à tradução "clareza, fluência e poeticidade". O tradutor se preocupou em reproduzir o traço da oralidade do poema, mantendo a repetição de diversas fórmulas e estruturas na tradução.

Há também a tradução de Donaldo Schüler, editada pela L&PM em três volumes, de 2007. Não sendo propriamente poética (apesar de dispor o texto em versos), é marcada pelo extremo coloquialismo.
Eis seu proêmio:

Em Portugal, foi publicada pela editora Cotovia, em 2003, a tradução feita por Frederico Lourenço, que objetiva uma maior literalidade, clareza e fluência e, para tal, empregou versos livres. Sua tradução recebeu o prêmio D. Diniz pela Fundação Casa de Mateus e o grande prêmio de tradução do PEN Clube Português e da Associação Portuguesa de Tradutores. Foi publicada no Brasil, em 2011, pela editora Penguin-Companhia (na coleção Clássicos Penguin).

Odisseia no Perseus Project (em grego clássico). 
O site, além de conter diversas traduções paralelas para o inglês, permite que o usuário confira a tradução de palavra por palavra, apenas clicando sobre elas.

Fonte:

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 176


Carlos Drummond de Andrade (Maneira de Olhar)


Recomendaram-lhe que se deitasse cedo, para acordar à hora da passagem do ano. A julgar pela insistência da recomendação, o ano não passa se os garotos ficarem de vigília. E como havia de ser, se não passasse? Era a vida do mundo inteiro que se perturbava. Tudo que estava para acontecer a partir de meia-noite bruscamente ficaria retido em malas, pacotes, na escuridão. Seria complicar tanto a vida dos outros, e a sua própria, que o menino se decidiu a acatar a ordem ingrata. Ou a fingir acatamento. Iria deitar-se, que remédio? Fecharia os olhos, pois esse é o testemunho de sono que as mães procuram no rosto dos filhos. Mas dormir de verdade, isso não. Imóvel, como nas ocasiões em que brincava de morrer, continuaria atento ao que ocorresse noite afora, pelo mundo solto. Queria devassar o mistério da passagem do ano, que ninguém sabe explicar.

A bá falara numa faixa de luz, que corta o céu de lado a lado, verdadeiro arco-íris, tão intenso que ninguém pode botar-lhe os olhos em cima; corusca, ouve-se um coro de anjos, tudo some de repente: o ano velho se foi, chega o ano novo. Mas seu tio, piloto da Varig, voou numa noite de 31 de dezembro e não confirmou a luz e os anjos; o ano-novo desce é de paraquedas, bem no centro da praça General Osório; traz na mochila talco, escova de dentes, pombas. “Pra que pombas?” “Pra soltar em sinal de alegria.” Quanto ao ano velho, acaba feito balão que perdeu gás, muito chocho.

Como as pessoas são mentirosas. A história certa eles não contam, e cada um vai inventando uma história que desmente a outra. Sua mãe, que lhe pede não mentir nunca, sua própria mãe não estaria mentindo? Por mais que lhe perguntasse como é a cara do ano velho, e a cara do novo, não tivera resposta.

Ela respondera com um sorriso, desses de que a gente gosta, mas não esclarecem nada, são modos de esconder: “Você mesmo verá como é. Depende da maneira de olhar”. Conversa com outros garotos a respeito não adianta. Cada qual diz mais bobagem que o outro; aprendem a mentir com os grandes.

Cerrou a porta, determinado. Preparou-se, deitou-se, esperou o beijo suave. Quis ainda puxar conversa, a mãe passou-lhe os dedos na face, repuxando-lhe a pele num dengue: “Dorme, coraçãozinho de manteiga”. Ela apagou a luz e saiu, veludo andando. Será que aguento ficar acordado até meia-noite? Quanto tempo é meia-noite? Da cama não se vê nada. Tenho de ir para a janela. Claro que o ano passa no ar, fico espiando. Mas tem tanta gente na rua, tanto carro buzinando, ninguém olha para cima. Estão acostumados? É ruim ficar acostumado: não se vê mais nada, as coisas vão se apagando. Eles conversam demais, seria tão bom que todo mundo ficasse calado, pensando, sentindo; o quê? sentindo. Como vão perceber que o ano passou, se falam sobre outras coisas, riem, cantam, gritam?

Depende mesmo da maneira de olhar — a mãe dissera. Agora estão sambando. As estrelas bem que continuam calmas. Elas sabem de tudo, veem aquilo que, cá de baixo, na confusão, uma criança só pode perceber se ficar de olhos arregalados, quietinha. Por maior que seja a boa vontade… E essa moleza que desce das estrelas e entra sorrateira nos braços, nas pernas, esse peso que faz baixar as pálpebras, como quem fecha cortina, devagar.

Acordou no chão, apavorado com o estrondo. Houve um desastre durante a passagem, o mundo acabou? Do salão vinham gritos, em que lhe parecia reconhecer vozes familiares. Seus pais estariam morrendo? Correu para a porta, abriu-a, atravessou o corredor, parou à entrada da sala. Teve uma imagem conjugada de garrafas, risos, cantos, beijos, copos. Estavam todos salvos, pais e amigos, mas tinham perdido o jeito comum, o jeito diurno. As vozes eram as mesmas e não eram. Arrastavam um pouco, palavras não terminavam, todas as pessoas manifestavam exagerada ternura umas pelas outras, abraçando-se ruidosamente.

A mãe viu-o de longe: “Filhinho!”, avançou com jeito engraçado, envolveu-o numa carícia, o pai tentou fazer o mesmo e não acertou, os outros bateram palmas. Seus olhos ainda não estavam abertos de todo, sentia vontade de chorar.

“Ele passou?”, disse baixinho ao ouvido. Sim, tinha passado, então não vira? Quis perguntar como é que passara, não teve ânimo. Um pouco tonta, mas docemente, a mãe levou-o de volta para o quarto, agasalhou-o, encostou rosto no rosto — o bafo casava-se a perfume —, rogou-lhe que dormisse outra vez, coraçãozinho de manteiga. O ano passara sem que ele visse. Bem que a mãe prevenira: “Depende da maneira de olhar”. Ele não acertara com a maneira.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

Isabel Furini (Poemas sobre Anjos)


ANJOS

Formas imaginárias dançam com o vento.
No silêncio do quarto faço uma oração
para dissolver as mágoas
- depois durmo.

Meus sonhos invadem obscuros arquétipos.
Inventam metáforas, sinais simbólicos,
signos alegóricos
e desperto com anjos nos olhos.
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O ANJO AMBIVALENTE

Um anjo desceu do lado escuro
da Lua crescente,
e invadiu meu subconsciente
enquanto eu sonhava com as areias do deserto.

Arrebatada perguntei de maneira impertinente:
- Anjo, você acha que no túmulo
acaba a vida como um sol poente?

Sua resposta foi ambivalente:
- Pode ser que a alma continue
ou desapareça no túmulo silente.
Sou um Anjo, nunca esquadrinhei
os meandros da criação divina;
eu não conheço todas as respostas,
mas sou um Anjo e o mundo me fascina.


Depois, apoiou-se no zodíaco de Dendera e falou:
- A vida humana é como uma trilha na selva.
O homem é só um microcosmo e até as paixões
estão escritas com tinta nas estrelas.

São as estrelas as grandes condutoras
deste Universo de papel e fantasia
que ancora sonhos e esperança e amor e ódio e poesia.

É preciso ser um leitor das estrelas muito atento,
perscrutar o céu, contemplar auroras,
compreender os relatos mitológicos,
pensar no zodíaco, nos quadrantes,
analisar as sinastrias e os círculos astrológicos.

É preciso avançar com cautela
(calmamente)
e perseguir o rasto da sincronicidade
entre os gestos humanos e as estrelas.
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ANJOS SOBRE OS OMBROS 
(yin yang)

o grande enganador, o Anjo da escuridão, fala: 
- escreva poemas de rancor
o Anjo da Luz ergue a cabeça e proclama:
- escreva só poemas de amor

o Anjo da escuridão revida:
- você não percebeu que é só rancor a vida?
em todos os locais há ciúmes, há falsidade e há inveja?
e o Anjo da luz troveja:
- será que você não almeja ser poeta maior,
desses que só cantam à vida e ao amor?

pergunto-me:
devo escolher entre o dia e a noite
ou entre o verão e o inverno
ou será necessário aceitar o luminoso e o sombrio?

porque muitos fingem bondade extrema
enquanto pelas costas os amigos esfaqueiam
pois a sombra da qual Jung falava
está além do sonho puritano
e essa sombra faz parte do universo humano.
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UM PEDIDO AO ANJO

lança sobre mim o teu olhar
transparente

preciso do resplendor de teus olhos
para afastar as sombras
e saciar a infinita sede de minha alma

capturo tua ternura e vejo
o reflexo de tua aura sobre o barro e a noite

e quero pronunciar mais um desejo:
que tu permaneças sempre de meu lado
(na vida e na morte)
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O SORRISO

Um cálice de vinho
sobre a pequena mesa
nos reflexos do vinho
um antigo Anjo
cantando em um circo
o santo Anjo
tem nos lábios
um sorriso
feito de pão e de vinho

um sorriso suave
sorriso de criança
e nos olhos têm duas aves
que dançam
sobre as águas
do rio de Heráclito

(silenciosamente)
as águas passam
e só fica o sorriso do Anjo
eterno
como o movimento da galáxia.
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PISAR NO PÉ DE UM ANJO?
(Poema infantil)

O poeta caminha entre nuvens
E pisa no pé de um anjo.

Isso não é um ato irreverente.
Esse poeta não é insolente.

Os anjos são invisíveis
E o poeta não é um vidente.

O anjo olha o poeta e disse:
- Não tema, está perdoado,

Sei que os homens são cegos,
E eu já estou resignado.

Fonte:
Poemas enviados pela poetisa

Contos e Lendas do Mundo (Dinamarca: A Constelação das Plêiades)

Era uma vez um homem que tinha seis filhos aos quais não dera nomes, como as pessoas costumam fazer, limitando-se a chamar-lhes, de acordo com a idade, Primeiro, Segundo, Terceiro, Antepenúltimo, Penúltimo e Último. 

Quando o Primeiro completou dezoito anos e o Último doze, o pai mandou todos percorrerem o mundo, para que aprendessem um ofício. Eles puseram-se a caminho e, durante algum tempo, seguiram juntos, mas não tardaram a chegar a um dupla encruzilhada, da qual partiam seis caminhos diferentes. Reconheceram então que deviam se separar e cada um optaria pelo seu próprio percurso. Decidiram igualmente que, dois anos exatos mais tarde, voltariam a reunir-se naquele local, de onde regressariam à casa paterna.

Com efeito, no dia combinado, encontraram-se de novo aí e regressaram juntos a casa do pai, o qual perguntou a cada um que arte aprendera. 

O Primeiro disse que se tornara mestre de construção naval e era capaz de construir barcos que se deslocavam sozinhos. 

O Segundo embarcara, ascendera a piloto e sabia comandar qualquer tipo de barco ou veículo. 

O Terceiro apenas aprendera a escutar, mas conseguia, num reino, ouvir o que se passava noutro. 

O Antepenúltimo tornara-se atirador, e cada um dos seus disparos atingia o alvo com precisão. 

O Penúltimo aprendera a trepar, pelo que podia escalar uma parede como se fosse uma mosca, e não havia encosta rochosa suficientemente escarpada para o desencorajar.

Depois de se inteirar das capacidades dos cinco, o pai admitiu que não era mau de todo, mas, não obstante, esperava mais deles, pois, em última análise, o que tinham aprendido também outros eram capazes de fazer. Por fim, quis saber o que aprendera o Último, no qual sempre depositara as suas maiores esperanças, por se tratar do seu filho preferido.

O Último alegrou-se por finalmente ser a sua vez e anunciou, muito satisfeito, que se convertera em mestre do roubo. Ao ouvir aquilo, o pai ficou tão furioso, que o agarrou pelas orelhas e bradou:

— Que vergonha! Atraíste a desonra sobre mim e toda a família!

Aconteceu então que um mago de má índole roubou ao rei do seu país a jovem e encantadora filha. E o monarca prometeu-a como esposa — além de metade do reino como dote — a quem a descobrisse e arrebatasse ao raptor. Ao tomarem conhecimento disso, os seis irmãos decidiram tentar a sorte. 

O mestre de construção naval construiu um navio que navegava autonomamente. O piloto pilotou-o por terra e por mar. O de ouvidos apurados escutou em todas as direções e acabou por anunciar que detectara a princesa no interior de uma montanha de cristal, para onde se dirigiram. O escalador trepou a toda a velocidade e, uma vez no topo, avistou o mago, que dormia, com a horrível cabeça pousada no regaço da princesa. A seguir, reuniu-se aos irmãos, chamou o ladrão magistral, fê-lo subir para as suas costas e conduziu-o ao topo. O ladrão magistral tirou a princesa de baixo da cabeça do mago sem que este percebesse, após o que o escalador transportou ambos até ao navio.

Depois de se encontrarem todos a bordo, zarparam. Entretanto, o de ouvidos apurados não parava de prestar atenção aos movimentos do mago. Ainda não se tinham distanciado muito, quando comunicou aos irmãos:

— Acaba de acordar... Espreguiça-se... Dá pela ausência da princesa... Começa a dirigir-se para aqui!

A princesa revelou então um medo intenso e declarou que estariam todos perdidos, a menos que houvesse um atirador excelente a bordo, pois o mago podia deslocar-se pelo ar até qualquer lugar e não tardaria a alcançá-los. Acrescentou que era invulnerável e as balas não o molestavam, salvo se o atingissem num pequeno ponto negro que tinha no peito, não maior que o buraco de uma agulha.

E, na verdade, o mago surgiu a sobrevoar o navio a toda a velocidade. Sem perda de tempo, o atirador visou-o com a arma, disparou e atingiu-o em pleno sinal preto no meio do peito. Quase simultaneamente, o mago explodiu em milhares de pedaços incandescentes, que dispersaram fumegantes, em todas as direções, sendo por esse motivo que se encontram tão grandes quantidades de pederneira em todas as partes do mundo.

Os seis irmãos chegaram por fim a casa com a princesa, que depois conduziram à corte do pai. Todos se tinham apaixonado por ela e cada um podia afirmar que, sem a sua intervenção, nunca se salvaria. O rei viu-se então perante um grande dilema, por não saber a qual devia entregar a filha. E ela achava-se em idênticos apuros, já que não conseguia determinar qual amava mais.

Odin, pai dos deuses, contudo, não quis que houvesse divergências contundentes entre eles, pelo que fez com que os seis irmãos e a princesa morressem na mesma noite. Depois, distribuiu os sete pelos céus, convertidos em estrelas, que são as que agora conhecemos por Plêiades. A mais brilhante é a princesa e a menos visível o pequeno ladrão.

Fonte: