A menina de biquíni cor de morango sentou-se na areia e o rapaz de cabeleira e calção estampado disse que, com aquelas pernas compridas desabrochando no corpo, ela parecia uma rosa que nascia de dois talos.
A menina jogou para trás o longo cabelo liso e descolorido e, olhando para ele, bem duro, respondeu que não fazia fé nesses cabeludinhos e estampadinhos de hoje em dia — falavam muito, mas no fim não eram de nada.
Aí o moço se ofendeu muitíssimo, plantou-se em frente dela com as mãos nos quadris e apostrofou. Apostrofou assim:
“— Não, minha flor da areia, estás muito sobre a iludida. Você me vê com este calção não figurativo e esta camisa de estamparia azul-elétrico e a minha cabeleira nouvelle vague, e pensa que pode vir com indireta, Fique sabendo que macho também se enfeita — ou antes — macho é que se enfeita! Se duvida, veja só os pássaros: os machos são coloridos, e as fêmeas são sempre mixinhas. Pavão, tiê, faisão, tudo. E bicho grande também. Quer comparar leão com leoa? Tal qual o faisão com a faisoa. Jacaré com jacaroa. Bem, jacaré não sei direito, falei só por causa da rima.
E tem mais. Aquele rei da França, Luís não sei de quantos — Catorze, era. Calção curto, perna de fora, laço por toda parte, e onde não era laço, era renda. Casaca de cetim, colete de brocado, calção de veludo, chapéu de plumas raras. Peruca — peruca! — de cachos pelos ombros. Sapato de salto alto. E se pintava — sim, sei de fonte limpa que se pintava. Pois, com perdão da palavra, machão era aquele. Amantes, favoritas, marquesas, duquesas. sem falar na coitada da rainha chegava para todas. E filhos, então. Quando morreu teve que deixar um testamento só de filhos naturais, fazendo tudo duque e conde. Com mais de setenta anos ainda casou secretamente — secretamente, veja só! — E o Luís seguinte, bisneto dele — o cara viveu tanto que só sobrou pra sucessor um bisneto —, ainda era pior. Roupa mais sofisticada, salto mais alto — pois foi ele quem botou na moda esse sapato Luís Quinze que ainda hoje em dia vocês usam, minha filha. E esse fez um parque só de garotas. Tinha tanta mulher, mas tanta, que o palácio não chegava, precisava um parque. Sem falar na Madame Pompadour e na Madame Du Barry, que ele aturou até ficarem coroas, mas só por causa do prestígio — que ele gostava mesmo era dos brotinhos do parque.
Você, me vendo assim, não sabe que eu tenho a minha cultura. Pois tenho, Queimei pestanas duas noites na Biblioteca lendo na Enciclopédia toda essa página dos Luís de França, para dar resposta a quem me chateia. E ainda li muita coisa das obras completas do Casanova, que era outro cara que só vivia pra mulher e que se enfeitava mais do que fantasia do Municipal. Basta dizer que se empoava todo, até no cabelo.
Esse pessoalzinho do nosso tempo refuga enfeite, achando que homem pra ser homem só pode andar de cores neutras — por quê? Em que é que uma bonita casaca cor de cereja tirava a virilidade de um Luís ou de um Casanova?
Outra coisa é o cabelo. De vez em quando tenho atrito com algum engraçadinho que diz piada com o meu cabelo. Quando cabelo grande for coisa feia, tem muita gente mal — a começar pelos doze apóstolos, que, além da barba, usavam mas eram cachos. E Hércules, e Júpiter, e o Átila? Parece que ninguém vê as fitas italianas.
Pedro .Alvares Cabral seria algum mariquinhas? Pode olhar na estátua! Lampião, seria outro mariquinhas? Tudo de cabelão pelo ombro! E índio, haverá macho mais macho que índio? E índio americano usa até birote com lacinho e uma peninha em cima.
Não, o homem está na fibra e não na roupa ou no cabelo. E eu me esqueci de falar no Sansão! Você não viu no filme? Cortaram o cabelo dele, acabou-se o homem. Ah, eu vou aos meus cineminhas. Até o Brucutu não ia ao barbeiro. Nem Tarzã.
Eu não sou reservista de primeira porque tenho deficiência visual. Mas se sentasse praça no Exército, era com cabelinho e tudo e queria ver quem era capaz de botar minha cabeleira à cadete. Mostrava para eles o retrato do Caxias até de suíças. Cabeça pelada não é próprio de homem: ao contrário, é próprio só de preso e de doido.
Cada tempo tem seu tipo. Nós agora somos assim — cabeludinhos coloridos, diferentes. Deixa eu te atracar e você vai ver se debaixo desta camisa estampada não palpita um coração de marmanjo, movido a sangue de noventa octanas e com arremesso de cento e vinte cavalos de força.
O Titov não disse que o espaço era azul? Agora tudo é colorido, O homem do futuro há de ser de todas as cores — verde, amarelo, laranja, azul, vermelho. Como as bandeirinhas dos porta-aviões.
O que o homem precisa para vencer é peito. Peito e marra.
E isso — (aí ele expandiu o peito e abriu os braços, contra o sol), — e isso, minha flor da água salgada, isso você encontra aqui!”
E a menina de biquíni parece que não resistia à literatura: sorriu para aqueles braços abertos, levantou-se devagarinho e saiu de mãos dadas com o moço para fazer jacaré. Ou jacaroa.
Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.
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